O genocídio do social, por Rogério Mattos

Na alucinose, os mecanismos psíquicos ligados ao ódio são formados por desejos irrefreáveis, que não admitem sua frustração, mesmo diante de dados elementares da realidade

O genocídio do social, por Rogério Mattos

Uma intervenção inoportuna?
O saudoso professor Luiz Alberto Moniz Bandeira, pouco antes de sua morte em 2017, noticiou ao jornalista Paulo Henrique Amorim o que parecia ser o incômodo das Forças Armadas com a instabilidade política permanente. Frente a uma divisão que entrevia entre os militares um cisão, isto é, a disputa entre uma ala mais nacionalista e outra entreguista, o professor conclamava a primeira a se manifestar, inclusive com uma intervenção armada. Por algumas ilusões daquele ano que hoje parece tão longínquo, 2017, acreditava-se que o general Vilas Boas, em contraposição ao general Mourão (à época, não se imaginava seu ingresso na política institucional), representava uma ala mais lúcida da ordem castrista, e que poderia liderar um movimento para reverter, à força, os retrocessos sociais do governo de Michel Termer. Moniz Bandeira foi duramente criticado, porém mais por uma questão de ordem do que de fundo. O historiador levou às últimas consequências a ilusão difusa a respeito de uma “facção nacionalista” das Forças Armadas. Se ela existe, acreditou, num cenário político de amplos retrocessos, os militares deveriam intervir e restabelecer a ordem não só política, mas econômica, profundamente alterada pelo golpe de Estado. Sua crença nos militares remetia a referências históricas mais longínquas: “Não vejo agora outra saída senão uma intervenção cirúrgica, como o general Henrique Teixeira Lott duas vezes fez em 1955, a fim de promover o retorno aos quadros constitucionais vigentes e assegurar a posse de Juscelino Kubitschek na presidência do Brasil”. O que estava em jogo, em suma, não era a manutenção das aparências democráticas do regime político. Para Bandeira, essas aparências poderiam ser jogadas fora com o objetivo de impedir um dano ainda maior. Infelizmente, a vanguarda militar nacionalista representada historicamente pelo general Lott provinha das antigas lutas que engendraram o Estado Novo, a vitória sobre o modelo agroexportador da república do café com leite e o início da industrialização brasileira. A preocupação atual era com o quadro de desalento econômico e social prometido pelas medidas do novo governo. Se existe algo de positivo no posicionamento do renomado historiador poucas semanas antes de sua morte e que, para afirmá-lo, fez passar por cima de alguns escrúpulos estabelecidos com a consolidação da democracia liberal, é a preocupação, então, com as medidas tomadas pelo governo Temer, como a “lei do teto”, as reformas trabalhista e previdenciária. Se acima afirmei que ele foi criticado por uma questão de ordem e não de fundo foi porque, frente ao ataque covarde e mortífero às camadas mais vulneráveis da população (que atinge também setores consideráveis da classe-média), Bandeira parecia reafirmar a velha tese de Walter Benjamin em Para um crítica da violência, segundo a qual a violência do Direito deve ser contraposta com um ato de violência pura, representado, em especial, pela greve geral. Na ausência de um cenário onde esta possa ser amplamente mobilizada, o historiador recorreu a antigos mitos nacionais. O discurso pró-militar do historiador desconsiderava toda a história recente do país. Porém, mais do que um questão de arcaísmo ou de pessimismo com o presente, Moniz Bandeira, talvez de forma errática, queria apontar para uma fresta onde entraria a esperança.

Viver entre minúsculas frestas

Na ocasião, em setembro de 2017, o governo de Michel Temer, ainda assediado pelas gravações de Joesley Batista, os vídeos do assessor do presidente, Rodrigo Rocha Loures, carregando malas de dinheiro e a apreensão de 51 milhões de reais no apartamento de Geddel Vieira Lima, então ministro, colocavam a presidência da república em estado de sítio. Apesar de tudo, não se vislumbrava uma saída adequada para o impasse. Os algoritmos sortearam o ministro recém indicado por Temer ao STF, Alexandre de Moraes, como relator do processo em que Dilma Rousseff pedia a anulação do impeachment. As mobilizações populares eram erráticas: se dividiam entre a palavra de ordem “fora Temer”, por “Diretas Já” (qual motivo desse grito quando ainda corria o processo de impeachment?) e apelos pela volta de Dilma. Ainda assim, a crescente falta de legitimidade do governo Temer e uma certa distensão no judiciário, com o habeas corpus concedido a José Dirceu, livre após mais de dois anos de detenção no Complexo Médico Penal de Pinhais (tempo que ele utilizou para escrever o primeiro volume de suas memórias), somada à incredulidade de que Lula pudesse ser condenado em 2ª instância de maneira tão rápida, davam alguma esperança. Lula foi condenado em 1ª instância em 12 de julho de 2017 e em 2ª instância em 24 de janeiro de 2018, um verdadeiro “case de sucesso” da justiça brasileira. O TRF-4 surpreendeu ainda mais, mesmo com todas as críticas às práticas da justiça de Curitiba, ao combinar o aumento da pena, que prescreveria. Sergio Moro condenou Lula a 9 anos de prisão (muitos alegam que em homenagem ao apelido pelo qual o ex=presidente era chamado em Curitiba, Nine, por não ter um dedo das mãos), o TRF-4 a 12 anos e 1 mês, o que, somado, da o número da sigla do Partido dos Trabalhadores, 13. Celeridade e crueldade como outrora agiram os chamados “esquadrões da morte”. Mas na época da fala pública de Moniz Bandeira a incredulidade ainda era a tônica frente aos arbítrios da justiça, mesmo com a Lava-Jato e o impeachment. A liberdade, mesmo que provisória, de José Dirceu, a esperança em eleições minimamente razoáveis em 2018, com Lula no páreo, e a atualidade de um governo golpista cercado por inúmeros escândalos, todos esses fatores pareciam trazer, mesmo que por um brevíssimo tempo, boas expectativas em relação a volta da normalidade institucional no país.

Alucinose e volta ao pacto primeiro

Essa pequena brecha por onde entrou um pouco de ar fresco nos duros dias que a esquerda vinha sofrendo desde consumado o golpe, mostra como, de maneiras variadas, também a esquerda sofreu com o que o psicanalista Wilfred Bion chamou de alucinose e Táles Ab’Sáber diagnosticou como a realidade psicopolítica brasileira: “uma distorção efetiva da capacidade de pensar fundada na necessidade de saturar a realidade com desejos que não suportam a frustração, bem como no impacto corrosivo dos mecanismos psíquicos ligados ao ódio sobre o próprio pensamento” (livro: “Michel Temer e o fascismo comum”, p. 53) . Embora o psicanalista brasileiro falasse, na ocasião exclusivamente da ascensão da extrema-direita e do discurso do ódio, pode ser visto o profundo estado de transe pelo qual passava todo o país. Os mecanismos psíquicos ligados ao ódio também se manifestaram nos setores de esquerda. Antes de ser derrubada, Dilma Rousseff perdeu ampla base social, em especial de elementos refratários ao Partido dos Trabalhadores, mesmo dentro dele, mas resistentes à política de suas lideranças. Às vezes usado como um blefe ou em tom de arrogância, o “é culpa da Dilma” virou um mote nacional. Cabe destacar o papel de dois elementos com ampla projeção na sociedade, um por causa de sua base em um movimento social que ganhou força nos últimos anos, Guilherme Boulos, e outro, com ramificações não desprezíveis na academia, a economista Laura Carvalho. Ambos escreviam na Folha de São Paulo em 2016 e, ao mesmo tempo em que, de um modo geral, defendiam bandeiras chamadas de progressistas, foram um dos mais duros críticos ao governo de Dilma Rousseff, mesmo quando sua administração ficava incontornavelmente insustentável. Na alucinose, os mecanismos psíquicos ligados ao ódio são formados por desejos irrefreáveis, que não admitem sua frustração, mesmo diante de dados elementares da realidade. O dado elementar no caso do segundo mandato de Dilma Rousseff é que houve o avanço violento das forças políticas que procuravam forçar o cancelamento do resultado eleitoral via questionamento no TSE, a multiplicidade de pedidos de impeachment, e a vitória de Eduardo Cunha para a presidência da Câmara num contexto de altíssima fragmentação partidária (fruto do cancelamento da cláusula de barreira e da fidelidade partidária pelo STF). Diante da campanha massiva contra a presidenta recém eleita, apoiada com toda a força pela mídia tradicional, Dilma optou por uma solução de compromisso, ou seja, um movimento muito parecido ao realizado pelo primeiro governo Lula ao colocar Henrique Meirelles no Banco Central e optar por manter parte da agenda econômica ortodoxa dos economistas do Plano Real. Isso ficou simbolizado pela nomeação de Joaquim Levy para o Ministério da Fazenda e, como subproduto, pela política de subsídios ao empresariado brasileiro. Não houve perdão por parte de apoiadores próximos à presidência frente ao que foi considerado não exatamente um recuo, mas um “estelionato eleitoral”. O que esses setores não compreenderam, além do fato de que a “solução de compromisso” ser algo próprio da política petista desde a Carta aos Brasileiros, é que toda a conjuntura política tinha mudado radicalmente. Em relação aos subsídios, quando a presidência enviava um pacote para ser aprovado no Congresso, Eduardo Cunha intervia e o ampliava ao seu bel prazer. Não se deve esquecer que ele votava duas, três ou quantas vezes fossem necessárias os seus próprios projetos, até que eles fossem aprovados. Uma ilegalidade claríssima, noticiada, porém que não despertava nenhuma reação mais enfática além dos círculos mais próximos ao Palácio do Planalto. Era o tempo das “pautas bombas”.

Desintegração econômica controlada e delírio social

Concomitante a isso, a “operação Lava-Jato” (algo que não existe juridicamente, mas como slogan publicitário), fechava antigas e importantes empresas de engenharia, paralisava obras em todo o país, criminalizava na opinião pública os investimentos estatais na economia (em especial nas obras de infraestrutura), e cada vez mais colocava na parede, numa campanha de difamação sem precedentes (talvez só comparável à que foi realizada durante a construção de Brasília), a Petrobrás e seu papel estratégico para o desenvolvimento nacional. Logo, por motivos internos, mas do que em razão do quadro de crise econômica internacional, o país passava por maus momentos. Crise econômica e crise institucional. Formaram-se verdadeiros blocos de oposição ao governo de Dilma: parte na esquerda, de outra parte no início da organização dos movimentos de extrema-direita no país, as movimentações cada vez mais evidentes dos militares contra o governo, além da total capitulação do judiciário nacional às práticas de perseguição política chamadas de lawfare. Tais grupos não se encontravam num primeiro momento ou não se encadeavam como um todo orgânico ainda em 2016. Em 24 de agosto de 2017, a Lava-Jato chegou a reunir representantes de partidos de esquerda como o PSOL com elementos da extrema-direita e do judiciário, além de artistas famosos, num encontro no Rio de Janeiro, dirigido pela esposa de Caetano Veloso, em homenagem ao lava-jatista Marcelo Bretas, juiz responsável pela prisão do pai de nossa energia nuclear, o Almirante Othon da Silva. Esses diferentes blocos, ainda hoje, tem pontos de contato, ainda que a ala militar do governo Bolsonaro não necessariamente esteja vinculada diretamente a ala extremista e miliciana do núcleo do governo, a justiça se divide entre garantismo jurídico e a consolidação do estado de exceção, os setores de esquerda menos vinculados seja aos grupos dirigentes ou a base social do Partido dos Trabalhadores continuam circulando entre apoios mais ou menos enfáticos às políticas dos grupos acima listados, sem contar a pauta da mídia, basicamente de apoio à agenda econômica neoliberal, mas que também faz uma oposição limitada, na maior parte das vezes cínica, ao governo empossado após a fraude eleitoral. Não posso deixar de mencionar a existência de setores dentro do PT coniventes com o golpe de Estado, mais preocupados com seus cargos políticos do que com um projeto de país. Fora os elementos de tendências liberais, também no partido, que sempre se posicionam de maneira ambígua ou mesmo reacionária, e engrossam o coro da agenda de destruição econômica controlada do país.

A opção pelo desespero: o genocídio do social

O que deve ser levado em conta apesar de todos os grupos acima identificados, é que o fenômeno de rejeição às políticas do Partido dos Trabalhadores, como um todo, esteve bastante difundida na sociedade. Cabe destacar o papel dos setores de classe-média não sob a ótica das críticas tradicionais que se faz à “burguesia”. A classe-média, composta de professores, advogados, médicos, engenheiros e tantas outras profissões que os colocam em cargos de chefia, tem a capacidade de influenciar um número expressivo de pessoas, desde as crianças nas escolas, os jovens na universidade ou no mercado de trabalho, até todos aqueles que lhes são subordinados no meio ambiente profissional. A adesão difusa da classe-média ao ódio à política ou a psicopatologia brasileira denominada “alucionose”, fez esquecer que não estamos tratando nesses anos tão difíceis da honestidade ou não de um líder popular como Lula ou das contradições do governo do PT. Dois projetos políticos claramente estavam sendo delineados nos momentos mais duros da rápida transformação do cenário público nacional. O que a intervenção do professor Moniz Bandeira enfatiza é o desespero não tanto de “manter um governo”. Não é algo pessoal. Frente à Ponte para o Futuro ou ao que veio depois, a doutrina econômica de Chicago de Paulo Guedes, o tão criticado ajuste econômico de Dilma Rousseff é simplesmente nada. O que estava sendo gestado e agora parece mais claro mesmo para parte considerável desses setores mais atrasados acima mencionados, é que um outro projeto de país procurava por todos os meios políticos ser imposto. A lei que estrangula os gastos públicos (PEC do Teto), a entrega do pré-sal e as privatizações, o ataque às garantias trabalhistas e previdenciárias, fora todo um pacote do mesmo teor que continua a pautar o debate nacional, representam o genocídio do social. Sem a compreensão de toda a abrangência do que isto significa, é natural ver o papel errático da população nos últimos anos e como agora, com graus maiores ou menores de responsabilidade e consciência, pode ser visto por essa parcela expressiva da sociedade, a verdadeira alucinação em que se caiu. Contudo, bem longe da imaginação dos intelectuais, o país dá passos largos em direção ao passado. Como este não se repete, caso a situação não mude drasticamente, nosso futuro tende a ser pior do que nas épocas mais sombrias de nossa história. Esse artigo faz parte da série Arquivos da Ditadura. Clique aqui para acessar. Rogério Mattos: Professor e tradutor da revista Executive Intelligence Review. Formado em História (UERJ) e doutorando em Literatura Comparada (UFF). Mantém o site http://www.oabertinho.com.br, onde publica alguns de seus escritos.
Redação

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