O manifesto dos ‘economistas do mercado’, por Sérgio E. Ferraz

Desemprego, renda, recuperação da economia ? Não é bem isso que importa. O que preocupa mesmo os “economistas do mercado” é o “descontrole fiscal”.

O manifesto dos ‘economistas do mercado’

por Sérgio E. Ferraz

A renda per capita brasileira em 31 de dezembro de 2020 será 20% menor do que era no final de 2013, algo visto apenas  em guerras ou na esteira de grandes catástrofes naturais. No meio de uma pandemia, sem ministro da saúde, o país está em uma depressão econômica sem precedentes.

Desemprego, renda, recuperação da economia ? Não é bem isso que importa. O que preocupa mesmo os “economistas do mercado” é o “descontrole fiscal”. Isso em uma conjuntura global onde todos os parâmetros para as finanças públicas foram alterados pela crise sanitária e assim prosseguirão por uma boa soma de anos à frente.

São peculiares esses economistas. Sao os únicos profissionais de economia no mundo hoje a priorizarem essa preocupação. 4 Boeings caem todo dia em território brasileiro. Eles não percebem. Ou, o que é mais duro, talvez nem se importem.

No site da Folha de São Paulo publicam no domingo, 16.08, desinibidamente, manifesto que é terraplanismo econômico puro. Talvez seja o tipo de texto que vale a pena ler para se saber -com exatidão –  o que não vale a pena ler.

Cortar gastos em meio a uma depressão é o caminho, dizem os bravos estudiosos. Assim pensavam alguns economistas do Tesouro Inglês. 90 anos atrás, antes de serem derrotados por Keynes, por Roosevelt, pelo “New Deal” e pela realidade.

As “soluções” apresentadas para salvar o que consideram digno de salvamento resumem-se a duas.

A primeira é o corte de 25% dos salários dos servidores da União, estados e municípios. Suponho que generalizado, já que não se mencionam critérios. Ótima ideia. Como 80% do gasto nessa área está concentrado em saúde, educação e segurança, presumo que sejam essas áreas que os colegas querem retalhar e desorganizar no meio e na esteira de uma pandemia combinada com depressão econômica. Médicos, policiais e professores, a depender desses “especialistas”, iniciarão 2021 sendo tungados em um quarto de seus salários. Puro bom senso.

Ataque aos supersalários acima do teto? Taxar lucros e dividendos? Aumentar a alíquota do IR para os que ganham mais? Mudar o regime do Simples para que profissionais liberais – como os próprios – paguem imposto?

Não, nenhuma palavra sobre o assunto.

A segunda solução eles sequer a enunciam diretamente, talvez por embaraço, pudor ou vergonha inconsciente: falam genericamente em desindexar benefícios previdenciários. Traduzindo: deixar de reajustar o piso da previdência pela variação do salário mínimo. Em português claro: propõem arrochar as aposentadorias. Isso, repito, no meio de uma pandemia combinada com depressão e crise política aguda.

Revogar ou pelo menos diminuir os 250 bi de subsídios fiscais anuais que fluem para o empresariado bom de lobby? Fazer com que o agronegócio contribua minimamente em termos tributários? Taxar heranças?

Não, nenhuma palavra sobre o assunto.

Em tempo: esses mesmos economistas que assinam a defesa do teto vêm pautando a política econômica desde pelo menos o “Ponte para o Futuro”, sem qualquer resultado em termos de crescimento e emprego (1% de crescimento médio de 2017 a 2919, quando precisaríamos crescer pelo menos 4 vezes isso). Mas se consideram “competentes”.

No Brasil, parcela das elites – como essa que assina esse documento – perdeu o contato com a realidade. Não atinaram que suas ideias se tornaram com o tempo não apenas vencidas ou equivocadas, mas obscenas.

Vão jogar o país no abismo, mas não renunciarão ao seu conjunto peculiar, esotérico e repulsivo de dogmas.

Sérgio E. Ferraz, economista e doutor em Ciência Política/USP

Redação

3 Comentários

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  1. É muito bom ver uma análise econômica compromissada com a realidade.
    Me parece muito difícil encontrar economistas que não reproduzam as mesmas pautas desonestas e incorretas do neoliberalismo. Se alguém tiver recomendações de pensadores que não fazem isso, eu agradeço.

    1. Fernando Nogueira da Costa tem seus artigos frequentemente divulgados aqui no GGN. Ele sempre disponibiliza livros para download gratuito.

      Considero-o um economista que consegue analisar sem cair em discurso fácil de direita ou de esquerda, que também os faz.

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