O templo, a censura e a Justiça, por Fábio de Oliveira Ribeiro

Os evangélicos e seus advogados querem expandir sua ideologia no espaço público e, de quebra, enriquecer à custa das pessoas que nutrem valores diferentes dos deles?

O templo, a censura e a Justiça, por Fábio de Oliveira Ribeiro

Chamou minha atenção a tentativa dos evangélicos de intimidar judicialmente o Porta dos Fundos. A ação de indenização bilionária que eles ajuizaram foi jogada na lata do lixo pelo Judiciário.

É evidente que os fanáticos religiosos repetem no Brasil uma estratégia que foi utilizada com sucesso nos EUA. Em seu livro “nas ruínas do neoliberalismo”, a filósofa Wendy Brown narra alguns casos em que os evangélicos norte-americanos usaram o poder Judiciário com sucesso para expandir na arena pública as suas convicções religiosas privadas.

“A liberdade religiosa de crer e louvar como se queira não deveria causar um ônus para terceiros, que é o motivo pelo qual Douglas NeJaime e Riva Siegel consideram tão problemática a recente guinada para as ‘escusas de consciência baseadas em cumplicidade’. O exercício da liberdade religiosa não deveria afetar aqueles exteriores à fé e geralmente não se refere ao exercício público ou comercial de valores religiosos, mas à proteção contra discriminação ou, no extremo, perseguição. Assim, indivíduos cuja fé designa o sábado como shabbat buscaram exceções às regras a respeito da qualificação para o seguro desemprego; aqueles cuja fé obrigava a cobrir a cabeça buscaram relaxar os requisitos das fotografias para documentos federais, nas quais cabeças cobertas são normalmente proibidas; os amish obtiveram as conhecidas isenções das obrigações de educar os jovens até os dezesseis anis. Cada uma dessas isenções estava baseada na conclusão de que a proteção ao culto religioso não prejudicaria o interesse público. Quando o livre exercício resvala em normas amplamente aceitas ou na lei geralmente aplicável, isso tem ocorrido devido a uma crença fundamental a respeito de práticas pessoalmente apropriadas de vestimenta, alimentação, família ou culto que aquelas normas e leis restringem ou violam. Historicamente, então, o exercício da liberdade religiosa não foi centrado no exercício público de valores religiosos, mas autoriza e protege a relação pessoal do indivíduo com a sua consciência e com o divino.

A liberdade de expressão é o anverso. Desprovida de sentido no domínio privado ou pessoal, a livre expressão significa o direito de dizer em público o que se quer dizer e somente o que se quer dizer. Trata-se do direito de falar de modo irrestrito e incondicionado mesmo que alguns possam ser estorvados ou lesados pela fala. O direito à liberdade de expressão ao mesmo tempo reconhece e subordina as questões de terceiros e da cultura pública àquele direito. Trata-se de um direito exercido em público e pode muito bem moldar o âmbito público e como este é vivenciado por outrem. E, mais importante, ele também traz consigo uma grande porção de nosso poder público individual em democracias, motivo pelo qual é fundamental para a cidadania democrática e por que estendê-lo às corporações traz tantas consequências.

O que se desenvolve hoje como estratégia legal e política de direita é isto: a liberdade de expressão dá as mãos para o livre exercício religioso, puxa-o para o mundo público e comercial e ali o reforça de modo singular.” (nas ruínas do neoliberalismo, Wendy Brown editora politeia, São Paulo, 2019, p. 169-170-171)

No caso do Porta dos Fundos, a Justiça brasileira felizmente não se comportou como a Justiça norte-americana. A pretensão indenizatória dos evangélicos foi rejeitada. Ela era de fato ilegítima. Caso contrário, qualquer cidadão brasileiro poderia, por exemplo, processar os bispos evangélicos e as igrejas deles sob a alegação de que se sentiu ofendido em razão do apoio que eles deram à candidatura presidencial de uma besta-fera que ofende jornalistas e que nomeou ministros que gostam de humilhar os brasileiros.

Descartar pedidos de indenização censória deduzidos por evangélicos, entretanto, não basta. É necessário que o Judiciário comece a condenar os autores dessas ações absurdas a pagar honorários de sucumbência levando em conta o valor milionário que foi pedido. Os evangélicos e seus advogados querem expandir sua ideologia no espaço público e, de quebra, enriquecer à custa das pessoas que nutrem valores diferentes dos deles? Então é justo que eles arquem com honorários de sucumbência compatíveis com os pedidos que deduzirem.

E se os evangélicos não ficarem satisfeitos, eles que se mudem para a América. Lá eles certamente terão a oportunidade de enriquecer de maneira ilícita censurando seus desafetos.

Fábio de Oliveira Ribeiro

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