Por que defender o Felipe Santa Cruz e não o Bolsonaro?, por Djefferson Ferreira

Filhos e netos que um dia me lerão: não deixais que a dor e o sofrimento alheio sejam como a música do caminhão do gás que, com o passar dos anos, não mais nos acorda e tampouco nos incomoda.

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Por que defender o Felipe Santa Cruz e não o Bolsonaro?

por Djefferson Ferreira

Este texto é uma espécie de homenagem à família Santa Cruz, Óscar Alberto Martínez Ramírez, imigrante que se afogou com sua filha de 1 ano e 11 meses, quando tentavam chegar aos Estados Unidos e Evaldo Rosa dos Santos, que teve o carro fuzilado por militares em Guadalupe, no Rio de Janeiro.

Trata-se, também, de um registro (ou compromisso) com meus filhos e netos, que sequer nasceram (mas que um dia aqui viverão) a fim de lembrar-lhes os atos dos quais nós, seres humanos, podemos ser capazes.

Filhos e netos que um dia me lerão: não deixais que a dor e o sofrimento alheio sejam como a música do caminhão do gás que, com o passar dos anos, não mais nos acorda e tampouco nos incomoda. Não vos pareçais com esses senhores que, diante de crianças trabalhando nos sinais, enaltecem o trabalho infantil. Indignai-vos!

Nunca vos deixes de reconhecer a ninguém – absolutamente ninguém – a condição de seu semelhante; se quereis honrar vossos nomes, quando ouvirem o bater na porta clamando-lhes socorro, abra-a, sem detença.

Tomai de exemplo, filhos e netos, tomai de exemplo Jesus, sujeito pobre, nascido no meio rural e engajado em questões sociais, mesmo que o preço disso seja a execução pelo Estado sob o aplauso de justiceiros, como bem escreveu Rauni Fontana.                                                                                                                                                              Desconfiai, portanto, dos moralistas, que falam de Jesus em canais de televisão, mas dentro das igrejas fazem símbolos de armas com as mãos e tramam as mais terríveis artimanhas para lucrar com a fé e o desespero alheios. Habituai-vos, então, a praticar a verdadeira fraternidade e alteridade. E o principal, a lição das lições: envergonhai-vos!

Afinal, é nela (a vergonha) que reside, segundo Jacinto Coutinho e Lenio Streck, o fundamento ético de uma sociedade verdadeiramente democrática. Por isso, se se quer alteridade, não basta a culpa, porque ela, de acordo com Calligaris, confere ao sujeito uma espécie de cheque pré-datado, que lhe permite “auto absolver-se”, para, depois, voltar a cometer as mesmas barbáries.[1] Com a vergonha, porém, a coisa é diferente; é diferente porque a vergonha cria uma cicatriz.

Dizendo de outro modo: a culpa é insuficiente porque ela permite que pessoas como o Bolsonaro se auto-absolvam, liberando-se para poderem, assim, no dia seguinte, voltar a falar as mesmas barbaridades. Por isso, só a “vergonha expulsa o demônio do corpo das pessoas”, porque, ao criar uma cicatriz – que não sai – ela funciona, de acordo com Calligaris, “como um regulador inafastável para as condutas futuras”.[2]

Por fim, para demonstrar-lhes as conseqüências do que acontecerá, caso deixemos de nos envergonhar diante de falas como a de Bolsonaro contra a família Santa Cruz, valer-me-ei dos estudos de um General, por intermédio de Calligaris,[3] que, em sua análise, tentou demonstrar que há(via) algo inato no ser humano que impede (ou dificulta) um ser humano de matar outro ser humano.

Pois bem, durante a segunda guerra mundial, o General Marshall concluiu que, em situações de combate, apenas 20% dos soldados americanos atiravam para matar. Ou seja: durante o combate, a maioria dos soldados atirava para o lado ou para o alto (e não contra o “inimigo”).

Isto, de acordo com o estudo, nos aproximava (seres “racionais”) dos animais (seres “irracionais”), na medida em que, se os animais “irracionais” gritam ou se agitam esperando que fujamos, para não nos matar, os soldados da segunda guerra atiravam para o alto ou para os lados, por não quererem matar os “inimigos”.

E, assim, concluiu: existe uma inibição (inata, talvez) a não matar o próximo!

Após a segunda guerra mundial, os americanos estudaram as pesquisas de Marshall… e modificaram o treinamento militar. Os estandes, agora, tinham o ambiente semelhante àquele que se pretendia invadir e os alvos, que antes eram de panos… agora eram bonecos parecidos com seres humanos.

Os alvos (agora bonecos idênticos a pessoas) apareciam repentinamente: motivo? O susto automatizava o atirador, isto é: na dúvida, ele agora… atirava. Resultado: na guerra da Coréia, os índices de soldados que atiravam para matar subiram, de acordo com a pesquisa, de 20% para 50%. Na guerra do Vietnã para 95% (Callligaris). Alguém arrisca dizer quanto subiu na guerra do Iraque? Aqui, aliás, se entende o porquê de alguns estandes das polícias brasileiras parecerem favelas. Daí explica-se porque, nas ruas das cidades, diante de inúmeras pessoas, policiais militares uniformizados sintam-se à vontade para gritar: “Homens de preto qual é sua missão? Invadir favela e deixar corpo no chão”.

Mas, o que tudo isso que foi dito tem a ver com a defesa da família Santa Cruz e a indignação com as falas de Bolsonaro? – é a pergunta que, naturalmente, hão de se fazer. Respondo: a nossa vergonha diante de tais falas é uma tentativa de impedir que nossos filhos e netos automatizem a barbárie, assim como fizeram os soldados americanos, também como fazem aqueles que dizem ser sua missão invadir favelas e deixar corpos no chão e, claro, como faz o Presidente ao desrespeitar Felipe Santa Cruz e seu pai, o qual fora morto pela ditadura militar.

Numa palavra final: defender o Felipe Santa Cruz é não perder a indignação e vergonha diante dos fatos ocorridos com Fernando Santa Cruz, Oscar Ramires, sua filha, Evaldo Santos, Marielle Franco e outros.

[1] CALLIGARIS, Contardo. Quinta Coluna – 101 crônicas. Publifolha: São Paulo, 2008, p. 181

[2] CALLIGARIS, Contardo. Quinta Coluna – 101 crônicas. Publifolha: São Paulo, 2008, p. 182

[3] CALLIGARIS, Contardo. Quinta Coluna – 101 crônicas. Publifolha: São Paulo, 2004, p.

Redação

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