Jorge Alexandre Neves
Jorge Alexandre Barbosa Neves professor Titular de Sociologia da UFMG, Ph.D. pela Universidade de Wisconsin-Madison, nos EUA. Professor Visitante da Universidade do Texas-Austin, também nos EUA, e da Universidad del Norte, na Colômbia.
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Têm olhos, mas não enxergam!, por Jorge Alexandre Neves

Ao lado do isomorfismo institucional normativo, a presença da esquerda no poder nos ajuda a entender o sucesso das políticas sociais.

Rovena Rosa – Agência Brasil

Têm olhos, mas não enxergam!

por Jorge Alexandre Neves

          Há duas décadas, tenho utilizado a fundamentação sociológica para analisar políticas sociais, no Brasil. Parte dessa fundamentação vem do conceito de isomorfismo institucional normativo proposto pelos sociólogos Paul DiMaggio e Walter Powers  (https://periodicos.fgv.br/rae/article/view/37123?source=/ojs/index.php/rae/article/view/37123). Este conceito mostrou-se bastante útil para o entendimento dos casos do SUAS (https://www.scielo.br/j/soc/a/FHYwQcgfNnpdDLM5SP9rzNg/?lang=pt) e do SUS (https://www.scielo.br/j/sausoc/a/NBYB3VYD6hMjCpGyK8P7dTs/?lang=pt#). O que se observa, nestes dois casos, é que culturas profissionais fortes – de sanitaristas, no caso do SUS, e de assistentes sociais, no caso do SUAS – contribuem sobremaneira para gerar coesão e controle nesses dois sistemas de nossa administração pública.

          O SUAS, portanto, tem na cultura profissional do serviço social o seu amálgama. Ninguém melhor do que assistentes sociais para trabalhar e, principalmente, lidar com o SUAS. Obviamente, até pela proximidade disciplinar, nós sociólogos também viajamos bem nessas águas. Todavia, nas últimas semanas, três artigos publicados na Folha e no UOL mostraram que os economistas, realmente, escolheram ficar de fora do isomorfismo institucional normativo do SUAS.

          Em 29 de dezembro último, a coluna da economista Laura Machado, na Folha (https://www1.folha.uol.com.br/colunas/laura-machado/2023/12/por-que-a-populacao-em-situacao-de-rua-cresce-apesar-da-reducao-da-pobreza.shtml), trouxe uma análise surpreendente pobre e desinformada sobre o crescimento da população em situação de rua em cidades ricas do Brasil, como São Paulo. Minha maior surpresa veio do fato de que a autora foi Secretária de Desenvolvimento Social do Estado de São Paulo. Uma profissional, mesmo economista, que ocupou cargo de tal relevância na área das políticas sociais teria que conhecer melhor a área. Ela traz algumas informações interessantes: a) o tamanho da população de rua tem crescido fortemente nas grandes cidades das regiões mais ricas do Brasil (Sul, Sudeste e Centro-Oeste), mas não nas regiões mais pobres, marcadamente no Nordeste; b) há países da Europa nos quais a população em situação de rua tem crescido, mas há outros onde isso não ocorre, como seria o caso da Finlândia. Em seguida, a autora se debruça sobre o entendimento das razões pelas quais a população de rua não tem crescido no Nordeste, logo a região mais pobre. Ela, então, vai em busca da explicação na própria pobreza. Sua hipótese é a de que os níveis elevados de pobreza na região Nordeste favorecem a solidariedade (economista tentando fazer sociologia, em geral, é um desastre!). Qual seria, então, a explicação para o mesmo fenômeno ocorrer na Finlândia? A pobreza? Obviamente que não!

          Se a autora entendesse um pouquinho de políticas sociais – bem como da lógica científica da análise comparativa – se daria conta de que ela deveria buscar a causa em algo que é comum entre a região mais pobre do Brasil e um dos países mais ricos do mundo: a elevada qualidade das políticas sociais! A Finlândia ficou famosa por sua chamada “revolução educacional”. Todavia, o que muitos esquecem é que esta se ancorou em um sistema de políticas sociais de altíssima qualidade (isso pode ser observado a partir dos 05 minutos deste vídeo, em particular na fala do Sociólogo da Educação Pasi Sahlberg: https://www.youtube.com/watch?v=5vN9mnuAQQ0&ab_channel=ClaudiaWallin). Respeitando as devidas proporções, o mesmo pode ser observado na Região Nordeste do Brasil. É de amplo conhecimento na área das políticas sociais a afirmação de que “no que se refere às políticas sociais, o Piauí é São Paulo e São Paulo é o Piauí” (se entendesse dessa área a referida autora saberia disso). Essa afirmação foi corroborada por trabalhos de cientistas sociais, que mostraram, justamente, que a qualidade das políticas sociais tem uma correlação negativa com o nível de renda dos municípios (ver: http://ppgcp.fafich.ufmg.br/defesas/438D.PDF e https://www.scielo.br/j/dados/a/K3QMPxJTTjy8hLz5Wj98CMz/?lang=pt). O caso do estado indiano de Kerala (https://www.brasildefato.com.br/2020/05/25/licoes-de-kerala-estado-comunista-que-virou-noticia-mundial-no-combate-a-pandemia) é o caso mais famoso entre os especialistas da área de um local de baixa renda com excelentes indicadores sociais. Não por acaso, a alusão ao caso de Kerala nos traz outro elemento de confluência com a Finlândia e a Região Nordeste do Brasil: a presença de forças políticas de esquerda na administração pública (não é por acaso que os avanços mais importantes na educação básica brasileira também tenham vindo da Região Nordeste, nas últimas décadas). Ao lado do isomorfismo institucional normativo, acredito que a presença da esquerda no poder nos ajuda a entender o sucesso das políticas sociais.

          Mais recentemente, a mesma autora publicou um artigo dando continuidade ao anterior em sua coluna na Folha (https://www1.folha.uol.com.br/colunas/laura-machado/2024/01/o-que-podemos-aprender-com-a-pratica-do-padre-julio.shtml), bem como outro economista publicou uma coluna no UOL com conteúdo parecido (https://economia.uol.com.br/colunas/felipe-salto/2024/01/15/viva-padre-julio.htm). Os dois textos buscaram mostrar que as políticas sociais têm muito o que aprender com as ações do Padre Júlio Lancellotti. Por um lado, penso ser importante louvar a iniciativa dos dois artigos, pois colaboram para formar uma base de apoio para o Padre Júlio, que tem sido vítima de ataques perversos da extrema direita. Todavia, ambos os textos mostram o desconhecimento dos autores sobre as políticas sociais, no Brasil. Na verdade, o SUAS já aprendeu há muito tempo com ações como as do Padre Júlio e outros religiosos progressistas. Uma característica em comum do SUAS e do SUS que identificamos em nossos trabalhos é justamente a de que ambos são sistemas organizacionais que aprendem muito rápido (o isomorfismo institucional normativo funciona como correia de transmissão do conhecimento e das inovações).

          A Região Nordeste não tem sofrido com o aumento da população de rua porque conta com administrações municipais e estaduais com melhores desempenhos em políticas sociais. Simples assim! E não são só políticas sociais, pois a região conta com uma política econômica do BNB, o CrediAmigo, que tem um papel extraordinário de complementação das políticas sociais (ver: https://www.scielo.br/j/rsocp/a/YgsNw3gz9hywSmghfJgtyvk/?lang=pt). Para ver a realidade, não basta ter olhos, é preciso querer enxergar!

Jorge Alexandre Barbosa Neves – Ph.D, University of Wisconsin – Madison, 1997.  Pesquisador PQ do CNPq. Pesquisador Visitante University of Texas – Austin. Professor Titular do Departamento de Sociologia – UFMG – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

Jorge Alexandre Neves

Jorge Alexandre Barbosa Neves professor Titular de Sociologia da UFMG, Ph.D. pela Universidade de Wisconsin-Madison, nos EUA. Professor Visitante da Universidade do Texas-Austin, também nos EUA, e da Universidad del Norte, na Colômbia.

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