Vale do Rio Doce: do “mar de lama” à construção da Nação (I)

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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“Coragem! Mais vale errar se arrebentando do que poupar-se para nada.” Darcy Ribeiro

do Blog dos Desenvolvimentistas

Vale do Rio Doce: do “mar de lama” à construção da Nação (I)

Por Roberto Requião e Rennan Martins

Passei boa parte de minha infância, quando em férias, pescando e nadando no Rio Doce, na casa do meu tio, que tinha um hospital em Colatina, interior do Espírito Santo. Naquela época, a região ainda era um paraíso tropical; meu tio nos contava dos navios mercantes que chegavam até lá, no meio do estado, onde o Rio ainda tinha 7 metros de profundidade. Hoje o cenário é desolador. Não bastasse a estiagem sem precedentes, temos agora o maior desastre ambiental de nossa história: o rompimento das barragens da Samarco, uma coligada da Vale e da superpoderosa BHP – de capital inglês e australiano.

Quando meu tio era vivo, ainda havia uma empresa que, além de orgulho nacional, era muito querida na região: a Companhia Vale do Rio Doce – CVRD. Foi uma empresa criada para desenvolver o Vale do Rio Doce e ligar Minas ao mar, integrando sua economia e a do Espírito Santo de forma moderna ao resto do país. Para os brasileiros, era o fundamento de nossa luta para a industrialização e uma inserção soberana do país no mundo.

Hoje essa empresa não existe mais, bem como não busca mais o interesse público e fez questão de desvincular seu nome do Rio Doce; sua origem e fonte principal dos seus lucros e capital acumulados.

Somente a Samarco, um braço menor da Vale, registrou em 2014 – ano de baixa na cotação dos minérios – R$ 2,8 bilhões em lucros. Se somarmos a multa aplicada pelo Ibama (por conta da tragédia), de R$ 250 milhões, aos royalties recebidos pelo município de Mariana, no ano de 2015, de R$ 20 milhões, não chegaremos a 10% desses lucros.

Até bem pouco tempo, a queridinha dos privatistas, Vale, distribuiu, só em 2011, nada menos que US$ 4 bilhões em dividendos a seus acionistas. Considerando, ainda, que 46,2% do capital votante da Vale é composto por investidores estrangeiros, chegaremos à conclusão de que os lucros dos minérios foram, além de privatizados, exportados. A maioria dos acionistas, portanto, distantes da tragédia, são imunes aos efeitos desse desastre sem tamanho. A indiferença desse grupo se exibe brutalmente, quando atentamos para o fato de que, mesmo com esses gordos rendimentos, nem pensaram em instalar uma sirene em Bento Rodrigues, ao pé da mega-barragem de rejeitos tóxicos.

Soma-se a essa realidade fantástica e mais absurda que uma ficção, o fato de as exportações de minérios receberem subsídios na forma de isenções tributárias, desde a lei Kandir, promulgada por FHC. A mineração no Brasil, hoje, é uma verdadeira sangria das veias de nosso país e continente; as corporações mineradoras não só negligenciam a segurança, como não remuneram o Estado brasileiro e seu povo pelo uso dos serviços ambientais fornecidos pelos solos e rios. É o que em economia chamamos de externalidade negativa. As atividades de produção primária usam e por vezes degradam os recursos naturais, deixando o prejuízo a ser assumido pelo meio ambiente e sociedade.

Se no Brasil assistimos à barbárie dos mercados, na Europa e Oriente Médio temos a barbárie dos impérios, que atinge não só Paris, mas principalmente Damasco, Mosul, Trípoli, Beirute… A cada momento nos solidarizamos com centenas de vítimas. O que não ocorre, o que a narrativa hegemônica não nos permite, é adentrar as causas e razões desse ciclo insano de violência contra os povos e a Terra.

Desde os anos 70 vivemos uma ofensiva que se propõe a retirar todo e qualquer constrangimento do caminho de um Capital que se dedica a dilapidar os Estados e os direitos sociais e trabalhistas, assim como todo o conjunto de instituições democráticas que ainda tentavam manter as atividades econômicas minimamente compromissadas com a sociedade. A posição submissa do governo brasileiro frente ao crime da Vale e da BHP mostra o que aconteceu com a nossa chamada “democracia”, e o reduziu a um mero serviçal do grande capital.

A ascensão do capitalismo desregulado e financeirizado produziu uma geração de gestores que nada entendem de atividades produtivas. Limitam-se a análise de tabelas, gráficos e modelos, nos quais impera o objetivo de obter o máximo de lucros e distribuir dividendos sempre maiores a acionistas insaciáveis. Tal imperativo manda às favas qualquer consideração com a sustentabilidade e os direitos humanos. Manifesta-se, com frequência, em desastres ambientais e humanitários decorrentes da superexploração e das intervenções militares levadas a cabo pelo cartel petrolífero, por sua infinita necessidade de controlar reservas.

O imbróglio, que ameaça nos fazer degenerar em tirania financeira transnacional, é descrito com precisão por Saul Leblon, em recente artigo:

Quando o que está em jogo é a incompatibilidade entre a ganância estrutural dos mercados e a dos impérios, de um lado; e a sobrevivência do interesse público, de outro, a boa intenção exclamativa, a exemplo da caridade cristã, não é capaz de afrontar os perigos que acossam as bases da sociedade e o seu futuro.

A desordem mundial, movida a incertezas, brutalidades psicopatas, insegurança social permanente e colapsos recorrentes movidos a forças intangíveis, não retrocederá se não for afrontada com anteparos do interesse público dotado de ferramentas à altura do desafio: Estados nacionais democraticamente fortalecidos.

 

Imediatamente após este desastre, muitos se perderam na discussão estéril sobre quais tragédias merecem mais atenção; primeiro os ataques terroristas, agora os crimes de parlamentares que se transformaram em gângsteres. Sintomas de um mundo que vive em busca do lucro, mas também diversionismos nos telejornais para tentar fazer o povo esquecer que essa tragédia da Vale gerará um prejuízo irreparável ao Rio Doce, que morreu. Um prejuízo que para ser pago de forma justa, a Vale teria que ser reestatizada,  mas não. Depois de décadas de busca de autonomia, na chamada era Vargas, voltamos a herança colonial desdobrada em dependência, materializada numa estrutura econômica que ignora preceitos socioambientais em nome de lucros exorbitantes, não importando se no caminho serão soterradas vidas, casas e sonhos. Nada mais é sagrado, só os lucros das empresas estrangerias e dos bancos que nos exploram.

No Velho Mundo, a OTAN lida com o monstro que criou para impor sua agenda aos povos do Oriente Médio, que, dizem, agora se voltou contra seu criador. Lá, assim como aqui, as intervenções se deram e se dão visando ao domínio de recursos e estes somente seriam “racionalmente” geridos, se voltados para o Mercado, dizem eles. Uma racionalidade criminosa, provavelmente.

A solução não passa por fortalecer os mecanismos mercadistas e imperiais. A inserção subserviente e o colonialismo mental já deixaram mais que evidente seu caráter inumano e reprodutor da lógica belicista que aflige a sociedade, na forma de crimes ambientais e contra a humanidade.

A solução, como anteriormente apontada, passa inexoravelmente pelo fortalecimento democrático dos Estados nacionais e de empoderamento de seus instrumentos econômicos e tecnológicos soberanos. Fica evidente que a exploração de recursos naturais deve estar submetida não à lógica dos acionistas, mas à do interesse nacional, inserida numa estratégia de longo prazo e em prol do povo.

Se a exploração mineral assim deve ser pensada e praticada, a recuperação da bacia do Rio Doce, tarefa árdua e obrigatória, também se insere nesse panorama. E é nesse sentido que presto apoio à proposta do fotógrafo Sebastião Salgado, de criar um fundo de dezenas de bilhões de dólares com as multas ambientais e humanitárias que ainda precisam ser cobradas.

Precisamos somar forças ao projeto de um fundo, subsidiado pelos causadores deste desastre, e destiná-lo à recuperação das nascentes, matas de galeria e ciliares, bem como a investimentos sociais e econômicos que gerem emprego e renda, em toda a região da bacia hidrográfica.

Podemos ir além e obrigar as mineradoras e adotar uma solução tecnológica que já existe para converter as barragens – acumulações de rejeitos que ameaçam a vida de milhares de pessoas e do ecossistema – em material de construção de ótima qualidade. Isso serviria, primeiramente, às casas dos atingidos e depois a todo o setor de construção civil. O blogueiro e brizolista Fernando Brito divulgou o belíssimo projeto do professor Ricardo Piorotti Peixoto, da nossa querida Universidade Federal de Ouro Preto, que pesquisa e desenvolve tecnologias que utilizam dos rejeitos da mineração e da siderurgia na produção de argamassa, blocos de alvenaria e até concreto ultra forte.

A proposta do fundo de recuperação aliada ao projeto de uso dos rejeitos para construções populares, se gerido democraticamente e regulado na medida do interesse público, mostrará ao mundo que o futuro só chegará quando aprendermos a praticar os valores da solidariedade, cooperação e busca de uma soberania tecnológica que não seja monopólio do grande capital. A Companhia Vale do Rio Doce foi criada com essas motivações e terá que voltar a buscá-las, primeiro para o Rio Doce, depois para todos os brasileiros. A Companhia Vale do Rio Doce foi criada pública porque era a única forma de converter responsavelmente as riquezas do Vale do Rio Doce em usufruto do povo. Hoje ficou límpido, como eram as águas do Rio Doce da minha infância, que foi um erro sua privatização e que ela deve ser revertida.

Essa deve ser a primeira bandeira para a reconstrução da nação que deseja livrar-se do “mar de lama” em que nos meteu a entrega do patrimônio e do poder público ao grande capital e à busca doentia pelo lucro pessoal. Queremos de volta nosso Rio Doce e nossa querida CVRD, nossa Companhia Pública. Queremos de volta nosso orgulho nacional! Nossa Pátria para Nosso Povo!

***

Roberto Requião é Senador, no segundo mandato. Foi governador do Paraná por três vezes, prefeito de Curitiba e deputado estadual. É graduado em direito e jornalismo com pós-graduação em urbanismo.

Rennan Martins é jornalista, gestor ambiental e editor do Blog dos Desenvolvimentistas.

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Revisão técnica: Nicolle Carone

 

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

6 Comentários

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  1. OBS.:

    O ex.Presidente do Brasil FHC e o seu Congresso Nacional VENDIDO ao EXECUTIVO,deixaram que a VALE fosse SUCATEADA de propósito e DEPOIS com ARGUMENTOS MERCANTILISTAS com objetivo de ficar Rico em DETRIMENTO aos BENEFÍCIOS da NAÇÃO,  afirmando que a VALE estava FALIDA e não dava LUCRO doou a COMPANHIA nacional ao CAPITAL ESPECULATIVO INTERNACIONAL com SUPOSTO ARGUMENTO de QUITAR a DÍVIDA EXTERNA NACIONAL o que não ocorreu e nem sabemos o parecer desse dinheiro de ORIGEM DUVIDOSA e CRIMINOSA visto que a POPULAÇÃO e até a OAB não ACEITAVAM a VENDA da MESMA por um preço tão miserável em comparação a QUANTIDADE de MINÉRIO que havia na COMPANHIA…

    O FHC,NA ÉPOCA SILENCIOU O CONGRESSO NACIONAL e o JUDICIÁRIO sabe-se lá como,mas é fato que o CONGRESSO NACIONAL VENDIDO(MENSALÃO do FHC) e o JUDICIÁRIO OMISSO e CONIVENTE e AMORDAÇADO pelo EXECUTIVO,diferente da autonomia que tem hoje,ficou em SILÊNCIO ABSOLUTO e a MÍDIA BRASILEIRA que se LOCUPLETAVA também com o GOVERNO FHC,resolveu convencer o POVO que seria e é uma VANTAGEM ENORME o CAPITAL ESPECULATIVO ADMINISTRAR nosso PATRIMÔNIO,que nossos POLÍTICOS deveriam CUIDAR e administrá-lo com todo ZELO mas não o faz pois são os PIRATAS da era moderna no BRASIL,estão à serviço de doar TODAS NOSSAS riquesas ao CAPITAL ESPECULATIVO e é claro ficarem RICOS com as NEGOCIATAS CRIMINOSAS,visto que a maioria têm CONTAS em PARAÍSOS FISCAIS em nome de LARANJAS ou em seus próprios nomes.

    A Saúde,Educação e Segurança dos ELEITORES,só recebem ATENÇÃO quando eles querem DERRUBAR o CONCORRENTE do Poder político,pois no cotidiano parlamentar são OMISSOS e CRIMINOSOS visto que é DEVER e OBRIGAÇÃO do ESTADO tais PRERROGATIVAS…..

  2. Vale do Eike

    Este ROBERTO REQUIÃO sabe o que fala. Não perde tempo e espaço para detalhes sem importância.

    Gosto também do CIRO GOMES, que tem a lingua solta, mas não fala bobagem.

    1. Ciro e requião

      Com certeza os dois homens públicos mais preparados para reverter as calamidades praticadas contra a nação pelo rentismo que tomou conta de tudo. A atual ocupante da presidência parece ainda não ter decidido se vai assumir o cargo de fato, ou vai continuar fingindo que governa, para manter o emprego de gente como o desmoralizado “Zé da justiça”(?) e o “intombável” Tombini, o messias protetor do deus mercado. E a gente, perdendo amigos para defender o estado democrático. Haja!!

  3. CRÍTICA

    A venda da Vale foi CRIMINOSA,pois o Povo não foi CONSULTADO e nem à favor.

    Primeiro o FHC e o seu Congresso Nacional vendido trataram de deixar a VALE ser sucateada,logo em seguida a DIFAMAVAM constantemente e em seguida a doou ao CAPITAL ESPECULATIVO,claro é LÓGICO em troca DE barganha financeira,pois onde já se viu dizer que minério dá PREJUÍZO  a nação ?

  4. Alternativa para Rejeitos

    Concordo na sua maior parte com o texto do Senador Requião, incluindo com isso a retomada da VALE por parte do Estado brasileiro.

    Os aspectos econômicos, relativos a lucros e à perversidade do “negócio” mineral, são muito próximos da realidade e bem retratados pelas palavras do Senador.

    Discordo apenas de dois assuntos, e faço este contraponto apenas para somar opinião a este excelente artigo de Roberto Requião:

    1.    A degradação do Rio Doce não é culpa apenas da VALE, mas sim de anos e anos de assoreamento do rio, com presença de garimpeiros e, ainda, despejando 80% do esgoto – sem tratamento – gerado por quase 3 milhões de habitantes que moram na bacia do Rio Doce. Concordo com a necessidade de revitalizar o Rio, assim como também o São Francisco e outros, com políticas similares, em longo prazo, que tornem esses rios saudáveis e navegáveis.

    2.    Pelos meus cálculos, 8 a 16 milhões de casas populares (ainda usando intensivamente tijolos – do tipo MRV) poderiam ser construídas no Brasil, com a resultante de apenas um ano de geração de rejeitos em Samarco. Samarco opera há mais de 30 anos, com aproximadamente 20 MTPA de produção de concentrado. Brasil produz mais de 300 MTPA de concentrados, apenas de Ferro. Temos também barragens enormes noutras atividades minerais. Não é solução nenhuma imaginar que algo poderia ser feito para acabar com aquela enorme geração de rejeitos.

    3.    A melhor solução, a meu ver é reduzir a geração de rejeitos finos, mediante novas tecnologias de cominuição e liberação dos minérios. Parte substancial do rejeito (que fica granulado) volta à mina como backfill. Em 2010, tive o privilégio de receber premiação da Revista Minérios & Minerales pela iniciativa implantada em projeto de concentração de minério de ferro de baixo teor, que reduziu para 1/3 do tamanho original (em comparação a projeto “convencional”, como é a Samarco) a usina e o tamanho da barragem. Ainda, o projeto levou o CAPEX para menos da metade do original e o custo operacional da usina caiu para 1/3 dos seus valores originais.

    Técnicas de cominuição (britagem e moagem) seletiva e de pré-concentração são hoje as melhores opções para lidar com o assunto. Para quem não conhece muito de mineração explico, por exemplo, que um “pé de moleque” poderia ser fragmentado em pedaços menores de pé e moleque, até reduzir todo de tamanho e extrair a rapadura mediante método de concentração. O método que estamos implantando envolve a fragmentação por impacto, do mesmo “pé de moleque” (imagine jogar ele contra uma parede), esfacelando rapidamente a rapadura e, ainda, deixando inteiros os pedaços de amendoim, que são facilmente separados e depositados, quase sem risco algum para a natureza.

    No caso de minério de ferro, o que temos feito é arrancar o máximo possível de quartzo granulado, antes de entrar em dispendiosas operações de concentração; mesmo assim, evita-se a geração de ultrafinos, que são os que mais problemas geram no seu desaguamento e deposição. A minha empresa já testou com sucesso este método em diversos tipos de minério, desde ferro até terras raras. Em breve podermos ter boas noticias desta opção, pois estamos em conversações avançadas com empresas mineradoras de Brasil e do Chile. A realidade de hoje obriga a todos a sermos mais criativos.

  5. Mais uma tragédia sem culpados

    Agora a Dilma têm como auxiliar a Cassandra, que é ótima geologa, peça a ela um parecer sobre as áreas de risco do Brasil.

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