Um domingo no Recife

 

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Por Leonardo Antônio Dantas Silva*

Amar cidades, só uma – o Recife. – Ledo Ivo

Para os naturais da terra ou para os que o adotaram como pátria-mãe, o Recife se torna um imenso e multifacetado brilhante. São tantas as cores, tantos os sabores, diversos os sons, curiosos nomes de ruas e recônditos pátios, escondendo monumentos e acariciados pela brisa que nos chega do alto-mar, que não dá para calar esta paixão latente e sempre presente na alma de todo recifense, a exemplo do poeta Antônio Maria, no Frevo nº 1 do Recife:

“Sou do Recife, com orgulho e com saudade”.

O fascínio que exerce a paisagem desta cidade sobre os seus moradores e visitantes foi sempre uma constante ao longo dos quatro séculos de sua história. Desde Gabriel Soares de Sousa e Ambrósio Fernandes Brandão, no século XVI, até os cronistas de nossos dias, o Recife se transforma num verdadeiro caleidoscópio a despertar as atenções do olhar do observador; ele se revela num simples abrir de janelas. 

Para o forasteiro, o Recife não é uma cidade que agrade à primeira vista. Faz-se necessário penetrar em seu âmago, na alma alegre de sua gente, para entender suas características únicas e a formação do ideário nativista de seu povo. Quando esteve no Recife, o escritor Alceu de Amoroso Lima, conhecido pelo pseudônimo de Tristão de Athayde, fez observações das mais interessantes, em artigo intitulado “Sereia dos trópicos”, publicado no jornal A Tribuna, edição de 23 de março de 1957, no qual ensinou como entender melhor o Recife:

[…] foi preciso pôr o pé em terra e, sobretudo, abrir as janelas do sobrado sobre a foz do rio para que um novo alumbramento se produzisse e a cidade singular de outrora revelasse, com a graça maliciosa de quem entreabre um manto, o que guardava de cantos secretos e renovados. Não mais de fora para dentro, como outrora, mas de dentro para fora é que se podia já agora compreender e tocar de perto o encanto sem par dessa sereia tropical. Encanto é coisa que as palavras não exprimem. Como não exprimem fisionomias ou mesmo paisagens. São, quando muito, aproximações e notas à margem. Os sentidos são os únicos que podem reproduzir “el embrujo” das coisas, das cidades ou das pessoas. E como a presença é uma síntese dos sentidos e da inteligência, só ela nos dá a sensação do encanto e do desencanto de a tentarmos exprimir verbalmente. O do Recife é feito de contradições: terra e mar, aristocracia e democracia, finura e espírito de bravura de caráter, graça florentina e violência sertaneja, riqueza e miséria.

Uma das descrições mais felizes da paisagem da cidade do Recife nos chega por meio da pena do recifense Joaquim Nabuco, em artigo publicado no jornal O Paiz (Rio de Janeiro), edição de 30 de novembro de 1887. Nabuco, ao servir de cicerone ao escritor português Ramalho Ortigão, pinta, com a mão de um mestre, as belezas de seu torrão natal, utilizando-se das mais contagiantes cores de sua palheta. Observando a planície do terraço da Sé de Olinda, enfatiza: 

[…] não é uma dessas vistas de altura, das quais o mar fica tão baixo aos pés do espectador, que perde o movimento e a vida, parecendo uma tela diáfana estendida sobre o fundo vazio do ar, vistas em profundidade, que dão vertigem e nas quais a perspectiva é tão longínqua como se víssemos por um óculo virado. A vista de Olinda é outra; é uma vista em comprimento, em que os planos sucedem-se uns aos outros como o desenvolvimento da mesma sensação visual, em que desde Olinda até ao Recife, e mais longe até o Cabo de Santo Agostinho, o olhar não precisa mover-se para apanhar a totalidade do cenário que se prolonga à beira do mar, salpicado das velas brancas das jangadas, penas destacadas das grandes asas da coragem, do sacrifício e também da necessidade humana! […] O que faz a grande beleza deste nosso torrão pernambucano é em primeiro lugar o seu céu, que muda a cada instante, leve, puro, suave, onde as nuvens parecem ter asas, e que não é o mesmo um minuto; é depois o nosso mar, verde, vibrátil e luminoso, as nossas areias tépidas e cobertas de relva, os nossos coqueiros, que se vergam desde o soco até ao espanador de um brilho metálico e dourado, com que parecem ao longe sacudir as nuvens brancas, as jaqueiras e as mangueiras cuja sombra rendada é um oásis de frescura e abundância… 

O que mais impressionava ao visitante e ao seu cicerone era a limpeza da cidade: 

O que primeiro fere a vista no Recife é a limpeza da cidade, a brancura de toda ela. Vê-se bem a cidade de um povo de rio, que vive n’água, como o pernambucano. É um reflexo da Holanda, que brilha aqui!
O branco era a cor predominante da cidade de então, que logo despertava a atenção dos viajantes e fazia do Recife “a mais bela do Brasil”. Ramalho Ortigão viu esse branco nas casas, nas pontes, nos edifícios, nos navios, nas velas e nas nuvens, sob luz forte de um sol tropical “que lhe dá o poder calcinante dos espelhos de Arquimedes, quando ele só é irresistivelmente belo ao luar, que dá a essa cal crua e reverberante um tom de pérola que faz a cidade parecer toda de mármore, mas de um mármore tirado das jazidas dos sonhos e da alvura imaterial dos fantasmas”.

E continua Nabuco: 

Eu verdadeiramente sinto que o eminente artista não se tenha demorado aqui à noite, para ver esse Recife, onde a imaginação de Castro Alves se povoou de todos os seus sonhos de poesia, de liberdade e de grandeza, o Recife do seu [poema a] ‘Pedro Ivo’, […] dormindo imensa ao luar!

Possuído do orgulho de ser do Recife, enfatiza Joaquim Nabuco, com o seu poder de observador: 

Para conhecer uma paisagem não basta vê-la, é preciso muito mais, é preciso que as duas almas, a do contemplador e a do lugar, cheguem a entenderem-se, quantas vezes elas nem mesmo se falam! Não é a todos que a natureza conta os seus segredos e inspira o seu amor, mas mesmo com os poucos de quem ela tem prazer em fazer pulsar o coração é preciso que eles se aproximem dela sem pressa de a deixar, com tempo para ouvi-la. Os viajantes nunca estão nessa disposição de espírito em que é possível estabelecer-se o magnetismo da paisagem sobre os sentidos, de fato sobre o coração. Felizmente Ramalho Ortigão é uma máquina fotográfica instantânea, que apanha num segundo o seu objetivo todo, e acontece que hoje as boas máquinas percebem e notam sombras na pele, que não se vêem a olho nu, e que servem para conhecer a enfermidade latente. Ele não terá sentido os eflúvios desta nossa terra, os quais talvez seja preciso ser pernambucano para sentir e que podem não ter realidade e magia senão para nós mesmos, mas a impressão que lhe causou a nossa Veneza há-de render-nos uma pintura que durará como as gravuras holandesas do século XVII.


*Coordenador de Pesquisa na empresa Instituto Ricardo Brennand e Conselheiro na empresa º Membro efetivo do Conselho Estadual de Cultura do Estado de Pernambuco.

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