Filipe Porto
Filipe Porto é mestrando em Relações Internacionais pela Universidade Federal do ABC e pós graduado em Jornalismo Internacional pela FAAP. É pesquisador associado do Observatório de Política Externa Brasileira (OPEB/UFABC) e do Núcleo de Avaliação da Conjuntura (EGN/Marinha do Brasil), com ênfase nas relações da China com o mundo. @filipeporto_ [email protected]
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Uma década da Nova Rota da Seda da China, por Filipe Porto

A Nova Rota da Seda funciona como via de mão dupla, onde objetivos domésticos e internacionais são complementares.

Uma década da Nova Rota da Seda da China

por Filipe Porto

Na primeira semana de setembro, a Iniciativa do Cinturão e Rota (ICR), também conhecida como “Nova Rota da Seda”, completou 10 anos de existência. Trata-se de um projeto chinês destinado a construir infraestrutura transcontinental e promover a interconectividade do país com o globo, cujo a imensidão do seu escopo e as implicações geopolíticas que carrega revelam a importância de refletirmos sobre a data e o projeto.

Em 2013, quando o Presidente chinês Xi Jinping lançou a iniciativa, a política externa da China já passava por turbulências, a saber pelas tensões no Mar do Sul da China e no Mar da China Oriental. Pequim enfrentava o aumento da rivalidade com Washington, especialmente devido à Parceria Transpacífico.

O acirramento das tensões bilaterais sino-estadunidenses e os seus transbordamentos para temas outros além do comércio nos leva a acreditar que vivemos atualmente um momento de deslocamento do eixo geopolítico do Ocidente para a Ásia. O crescente peso econômico de nações como a China e a Índia permanece significativo, e não existe sozinho; está vinculado a novas capacidades desses países em influenciar a governança global e projetar seus interesses por mudanças. 

No âmbito interno, não podemos perder de vista a problemática do excedente produtivo industrial chinês e a crescente crise climática. 

Em 2021, a capacidade de produção na indústria do aço chinesa excedeu 1,2 bilhão de toneladas métricas anualmente, superando amplamente a demanda interna. A indústria de cimento também enfrentou desafios, com uma estimativa de sobrecapacidade de cerca de 400 milhões de toneladas métricas por ano. No setor de fabricação de painéis solares, a China detém mais de 70% da capacidade de produção global, suscitando preocupações relacionadas ao excesso de oferta.

Além disso, a capacidade de produção de carvão da China ultrapassou 4 bilhões de toneladas métricas anualmente, muito além do seu consumo interno.

Paralelamente, a crise climática estava se intensificando globalmente, e a China estava sob crescente pressão internacional para reduzir suas emissões de gases de efeito estufa. A degradação ambiental, como poluição do ar e da água, também estava afetando a qualidade de vida da população chinesa, forçando o país a repensar sobre os impactos do seu modelo de desenvolvimento. 

Esses casos de sobrecapacidade ainda tiveram impactos nos mercados globais, na dinâmica de preços e nas preocupações ambientais, levando a intervenções governamentais para abordar esses desequilíbrios dentro e fora da China. Diante da interdependência complexa do comércio global, no qual as cadeias globais de valor estão concentradas em grande parte na China, ou dependem do país — em alguma medida —, a estabilidade doméstica se torna uma questão de segurança nacional e de preocupação global.

É nesse contexto que surge a Nova Rota da Seda. Sua operacionalização pode ser definida dentro do conceito de “Agenda Estratégica e de Futuro”, criado por Karin Costa Vazquez. Nessa agenda, a Nova Rota da Seda funciona como via de mão dupla, onde objetivos domésticos e internacionais são complementares. A título de exemplo, os excedentes produtivos de setores como aço, cimento e energia encontram demanda nos projetos da iniciativa devido ao elevado grau de  investimento em infraestrutura nos países destino. 

Até 2021, a China havia assinado Memorandos de Entendimento com 140 países e 32 organizações internacionais em toda a África, América do Norte, América Latina, Ásia, Europa e Pacífico. Um total de US$962 bilhões foram investidos na ICR Desde então, a iniciativa consolidou três objetivos principais: promover o crescimento ao compartilhar as experiências de desenvolvimento chinesas, se envolver com outras economias e contribuir para a “re-globalização”. 

A justificativa de que a ordem global centralizada nos EUA e na Europa não atende aos desafios contemporâneos globais serve como uma retórica convincente para os países do Sul Global, de modo geral, na medida em que a iniciativa fornece alternativas que minimizem os riscos e maximizam as oportunidades para o desenvolvimento sustentável e inclusivo. 

Para a China, de modo específico, esse objetivo é primordial frente a ofensiva dos países centrais, que consideram a ascensão chinesa uma ameaça. Contribuir com o modelo de interconectividade do mundo por meio da garantia da estabilidade das linhas de comunicação marítimas e terrestres fundamentais para o comércio internacional do país surge como necessidade no seio da Nova Rota da Seda.  

Estados Unidos e a Europa ainda mantêm uma posição de maior influência, prestígio e preferência em comparação com a China em várias esferas, como na adoção de inteligência artificial, tecnologias de ponta e inovações digitais. A China depende, por exemplo, de acesso ao mercado holandês devido à empresa ASML, única detentora no mundo da tecnologia e dos equipamentos de litografia usados na fabricação de chips avançados. 

Embora a China tenha feito progressos significativos em direção à sustentabilidade e às energias renováveis, Estados Unidos e Europa ainda mantêm liderança em áreas essenciais, como na capacidade de geração de energia renovável. A União Europeia estabeleceu metas mais ambiciosas do que a China para reduzir as emissões em pelo menos 55% até 2030, em relação aos níveis de 1990, enquanto os Estados Unidos comprometeu-se a alcançar emissões líquidas zero até 2050.

Passados dez anos, a integração da Nova Rota da Seda nas agendas nacionais e internacionais da China evoluiu para um enfoque mais amplo e estruturado. Empresas chinesas estão expandindo suas atividades e investimentos globais em setores vinculados à economia sustentável, infraestrutura digital e construção. 

Ainda é cedo para dizer que a reconfiguração do poder político e econômico do Ocidente para Ásia terá a China como destino final, mas há algo simbólico em todos esses movimentos:: o estabelecimento Nova Rota da Seda inevitavelmente acentuou a competição estratégica sino-estadunidense e se apresentou como uma opção bem-vinda para os países aderentes. Se a China quer de fato estabelecer uma “comunidade com futuro compartilhado para a humanidade” de forma a alterar o status quo e ampliar as vozes do Sul Global, celebrar o décimo aniversário da Iniciativa do Cinturão e Rota faz bastante sentido.

Filipe Porto é mestrando em Relações Internacionais pela Universidade Federal do ABC e pós graduado em Jornalismo Internacional pela FAAP.  É pesquisador associado do Observatório de Política Externa Brasileira (OPEB/UFABC) e do Núcleo de Avaliação da Conjuntura (EGN/Marinha do Brasil), com ênfase nas relações da China com o mundo. @filipeporto_ [email protected]

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

Filipe Porto

Filipe Porto é mestrando em Relações Internacionais pela Universidade Federal do ABC e pós graduado em Jornalismo Internacional pela FAAP. É pesquisador associado do Observatório de Política Externa Brasileira (OPEB/UFABC) e do Núcleo de Avaliação da Conjuntura (EGN/Marinha do Brasil), com ênfase nas relações da China com o mundo. @filipeporto_ [email protected]

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