Daniel Afonso da Silva
Daniel Afonso da Silva é doutor em História Social pela Universidade de São Paulo e autor de "Muito além dos olhos azuis e outros escritos sobre relações internacionais contemporâneas". [email protected]
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1964 e os outros anos terminados em 4, por Daniel Afonso da Silva

E ainda há tempo para o presidente Lula mudar e mudar-se, reconhecendo a temeridade de se esquecer da fúria dos anos terminados em quatro.

1964 e os outros anos terminados em 4

por Daniel Afonso da Silva

Tem sessenta anos que os anos brasileiros terminados em quatro carregam dilemas difíceis de sobrepujar. 1964, 1974, 1984, 1994, 2004, 2014 e 2024, assim, viraram cincerros como faróis de guiar. Muita vez, difíceis de suportar. Ninguém em sã consciência consegue algo nisso hierarquizar. Nada foi simples. Ou, pelo menos, nada foi tão simples como forçam, de lado a lado, contar.

1964 – tantos anos depois – virou uma cidade submersa. Ninguém com mais meditação que convicções considera aquilo como um simples, simplório, golpe. Isso já é nada dizer. Mas vale dizer. Não foi só a Marcha da Família nem só os movimentos do general Olímpio Mourão. Não foi só a Guerra Fria nem só o medo e apreensão da possibilidade da cubanização do Brasil. Foi tudo isso e muito mais integrado. As águas eram profundas e súbito viraram turvas. E nada de muito evidente se conseguia enxergar.

A transição demográfica que vinha forte desde 1934, 1944 e 1954 virou, em 1964, espetacular. Os movimentos de população eram formidáveis. Os fundos territoriais tornados cidades tempos atrás agora já eram metrópoles e megalópoles. A avant-garde das capitais brasileiras, agora, em 1964, já se espraiava por quase toda parte – e não apenas na Bahia do mestre Risério. Tudo isso somado gerava, sim, uma revolução. Eram forças tectônicas movendo toda a nação.

Era, sim, uma revolução. A despeito dos militares. E era, também, um momento de fruição. A despeito das aristocracias locais e regionais.

O capitalismo tardio do qual fala o professor João Manuel tornava a sociedade brasileira verdadeiramente diversa. A massa de imigrantes do início do século ao início da Guerra no Vietnã já estava por todas as partes estabelecida ou se estabelecendo. O oceano de negros e mulheres ausentes das sociabilidades positivas ia também se fixando e ganhando bem o seu pão. Segmentos médios começavam a, enfim, contar e o self-made à brasileira também deixava de ser miragem.

Nunca se viu tamanha mobilidade social no Brasil como entre os anos terminados em quatro de 1934 a 1964. E esse dado não pode jamais ser minorado. Pois dessa verdade emergiu a sintonia suficiente para a ebulição do Grupo Opinião, do Show Opinião e do Teatro de Arena.

Disso e por isso Boal viveu e vive, e todos sabem.

Disso e por isso, cantou-se, aos quatro ventos, que “apesar de você/amanhã há de ser/outro dia”. Notou-se também que o “Rio de Janeiro, fevereiro e março” “continua lindo”, “continua sendo”. Que “Lá em Londres, vez em quando me sentia longe daqui/Vez em quando, quando me sentia longe, dava por mim/Puxando o cabelo/Nervoso, querendo ouvir Celly Campelo …”. Tudo como Verdade Tropical. Tudo para “lapidar o sonho até gerar o som” para, em seguida, caetanear o que há de bom”.

A sociedade brasileira estava vibrante depois de 1964 como nunca fora nos precedentes anos terminados em quatro a partir de 1824.

Veio 1974.

O Manda Brasa venceu e a Arena começou a se fragmentar. Era o regime militar em entropia. A composição das cadeiras do Senado, assim, sinalizava – salvo melhor avaliação – a mudança mais profunda da estrutura política brasileira desde 1934. 1974 isso e foi assim. “A noite” já trazia no “rosto sinais/De quem tem chorado demais”. Avizinhava-se o momento do basta.

Vieram as Diretas Já. 1983-1984.

Quem quiser pode ir avistar. Os vitrais da Catedral da Sé, em São Paulo, ainda hoje, em 2024, vibram com o furor daqueles dias. “Feito canção/Qualquer coisa assim.”

1994: mais ou menos relevante que 84, 74, 64?

Veja-se.

Quando o presidente Itamar Franco assumiu as funções no dia 2 de outubro de 1992 a inflação brasileira era de 30% ao mês. Os brasileiros estavam machucados pelo ippon imperfeito do presidente Collor e muitos haviam sucumbido às balas de prata dos planos heterodoxos anteriores. Quando o presidente Fernando Henrique Cardoso encerrou o seu primeiro mandato em fins de 1998, o acumulado anual da inflação era 1,6%, todas as famílias urbanas comiam carne com frequência e suas crianças mereciam chocolates Garoto pois Washington Olivetto tinha convencido todos os pais brasileiros com “compre Baton, compre Baton, seu filho merece Baton”.

Tudo porque a lei 8.880, que Dispõe sobre o Programa de Estabilização Econômica e o Sistema Monetário Nacional, institui a Unidade Real de Valor (URV) e dá outras providência, foi instituída no dia 27 de maio de 1994.

1994: o momento de ouro da criação do Plano Real e da reconstrução da moeda brasileira.

Precisa mais?

Dez anos depois, em 2004, tudo parecia se consolidar. A esperança tinha vencido o medo. O Brasil era, enfim, uma ilha de prosperidade num mar tormentoso. Tudo era alegre. Bonito. Feliz. Próspero. Tanto que o mundo registrou – e o Secretário Geral das Nações Unidas, Kofi Annan, confirmou em 2003 anunciando 2004 – que “Toda menina baiana tem um jeito, que Deus dá” como nunca antes na história do país.

Mas veio 2014.

O periódico londrino The Economist já tinha perguntado Has brazil blown it? Os estrondos das noites de junho de 2013 ainda se faziam ouvir e continuariam ensurdecedores até o 8 de janeiro de 2023.

2014 foi um ano aziago. Foi o ano da humilhação da Copa. E que dizer do jingle “Coração Valente” que fez a presidente Dilma reeleger?

O que se viu depois de 2014 é melhor esquecer.

2024: que dizer?

Ainda é cedo. Nem bem chegou. E ainda há tempo para o presidente Lula da Silva mudar e mudar-se. A começar reconhecendo a temeridade de se esquecer da fúria dos anos terminados em quatro. Especialmente, 1964.

Mudaria o Natal ou mudei eu?”

Daniel Afonso da Silva é doutor em História Social pela Universidade de São Paulo e autor de “Muito além dos olhos azuis e outros escritos sobre relações internacionais contemporâneas”.

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Daniel Afonso da Silva

Daniel Afonso da Silva é doutor em História Social pela Universidade de São Paulo e autor de "Muito além dos olhos azuis e outros escritos sobre relações internacionais contemporâneas". [email protected]

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