A Idade Média Digital
por Salvio Kotter
Neofundamentalismo evangélico
Temos todos observado nas últimas décadas, com crescente preocupação, o avanço do neofundamentalismo evangélico. Este fenômeno não se limita a uma expressão de fé; ele busca influenciar ativamente esferas políticas e sociais, calcado em interpretações literais, extremas ou até mesmo distorcidas de textos sagrados. Este movimento conserva características medievais, como a busca da purificação pela fé cega e a rejeição de valores considerados modernos ou secularizados. A internet facilitou enormemente a disseminação dessas ideias, viabilizando e até ensejando a formações de comunidades virtuais em que tais visões de mundo são não apenas compartilhadas, mas também fortalecidas e amplificadas.
Feudalismo digital
Paralelamente ao neofundamentalismo evangélico, assistimos ao nascimento de um novo tipo de feudalismo, o digital, protagonizado pelas Big Techs. Detentoras das glebas virtuais e de uma influência sem precedentes sobre o espaço digital, essas empresas têm consolidado seu poder mediante práticas que replicam as dos senhores feudais da Idade Média, ao arrendarem espaços para que produzamos conteúdos que geram renda a ser compartilhada com os detentores das glebas, que a qualquer momento, caso não gostem do que estejamos produzindo, censuram e até mesmo nos expulsam da gleba que nos arrendaram. Todos senhores de sangue azul e pele alva. Enquanto isso, as Big Techs controlam o que vemos, o que consumimos e até como nos comunicamos, criando um ecossistema em que os usuários têm pouca ou nenhuma autonomia, embora tenham a ilusão de serem protagonistas. Esse domínio estende-se ao arrendamento de espaços digitais também para a publicidade, influenciando diretamente a economia global, enquanto fatura com, controla e censura as informações a serem compartilhadas.
Mesmo a mídia alternativa está maniatada. Se fizer um vídeo contra o neonazismo ucraniano ou o genocídio israelense, dando às coisas os nomes que elas têm, não só o vídeo, mas o próprio canal poderá ser banido. Significa dizer que, depois de absorver a quase totalidade da massa de investimentos em propaganda no país, as gigantes da tecnologia nos vigiam do ponto de vista ideológico. Afinal, são big techs ou big brothers?
Neofundamentalismo e Feudalismo Digital em Sinergia
A intersecção entre o neofundamentalismo evangélico e o feudalismo digital os potencializa mutuamente, e representa um desafio sem qualquer precedente à nossa sociedade. As ferramentas digitais oferecem aos movimentos neofundamentalistas uma plataforma sem paralelo para disseminar suas ideias, atingindo públicos globais (e fatura alto com isso), à medida que algoritmos tendenciosos amplificam conteúdos extremistas e simplificam a formação de câmaras de eco ideológicas.
Assim, está criado o ciclo vicioso em que as tecnologias facilitam a propagação de visões de mundo que anseiam por um retorno a um passado idealizado, enquanto simultaneamente pavimentam o caminho para uma nova era de obscurantismo, tudo isso viajando à velocidade da luz por conexões de fibra-ótica.
Ecos Medievais e a Nova Treva
A junção desses fenômenos gera a antevisão de uma nova Idade Média, caracterizada não apenas pela centralização do capital e do poder nas mãos de poucos, mas também pelo retorno de um pensamento dogmático e avesso ao questionamento. A possibilidade de escorregarmos para uma era de obscurantismo, em que valores iluministas como a racionalidade, a liberdade individual responsável, assim como a busca pelo conhecimento sejam postos de lado, torna-se uma preocupação crescente e exasperante. A hipnose coletiva proporcionada por modelos de comunicação baseados em algoritmos que reforçam convergências ideológicas e a dependência tecnológica, fortalece sobremaneira essa tendência.
Entre luz e sombra
As implicações desta possível nova Idade Média, marcada pelo obscurantismo digital e espiritual, são vastas. A interação entre o neofundamentalismo evangélico e o feudalismo digital ameaça comprometer os avanços sociais, políticos e tecnológicos que definiram as últimas décadas. À medida que caminhamos para o futuro, cabe-nos escolher entre ceder à hipnose coletiva e ao retrocesso ou buscar maneiras de sustentar os princípios de liberdade, pluralismo e progresso. Pelo poder que têm, as Big Techs precisam ser encampadas pelo poder público, pela ação política desvelada que têm praticado, os pastores fundamentalistas precisam ser contidos. As ações e o caminho a tomar não são simples nem lineares, mas o reconhecimento da encruzilhada em que nos encontramos é o primeiro passo para garantir que alguma luz da razão ainda ilumine esse nosso e o caminho das gerações vindouras, com as quais temos desde sempre um compromisso atávico, é dizer, intransferível.
Sálvio Kotter passou por formações bem variadas, como Administração de Empresas, Música Erudida, Grego Antigo e Latim. Publicou vários livros, de ficção e não-ficção e é editor da Kotter Editorial, especializada em literatura, filosofia e política.
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Religião em tudo, tudo caótico.
Perfeita sua analogia, conseguiu descrever muito bem os tempos sombrios que estamos vivendo.
A saída seria criar alternativas para os meios que existem hoje.
Não é fácil mas precisa lembrar que as “bigs” nasceram quase sempre em garagens, ou seja fizeram seu mercado do nada.
Nada impede um novo “youtube” , “X” (que fim levou o Threads ?) , “whatsapp” (telegram ?) , mas seria preciso “roubar” um mercado quase cativo.
Mas o povo entra no bar cheio , reclamam da busca do Google mas quem usa o Bing ?
Bacana. Mas permita-me te recomendar um vídeo bastante inquietante sobre as empresas que nascem nas garagens: https://www.youtube.com/watch?v=VS3jaWC8HOc
A analogia da situação do mundo de hoje à Idade Média é interessante no que toca às extremas desigualdades e concentração de renda e poder, e às tentativas do “neofundamentalismo evangélico”. Mas ignora diferenças fundamentais: o isolamento dos feudos autárquicos e a extrema ignorância que caracterizava a sociedade daquela época chamada “das trevas”, comparada com o mundo atual globalizado e conectado por redes de telecomunicação que distribuem conhecimentos e informações úteis e inúteis, falsos e verdadeiros. Além disto, felizmente, embora cresçam e e,nas Américas, tenham grande influência,os evangélicos estão longe de ter o domínio ideológico da Igreja católica medieval.A situação atual me parece mais parecida com o fascismo europeu:crescimento da extrema direita como remédio para a crise do capitalismo e a decadência da ideologia liberal. Como dizem as feministas, o fascismo é o viagra do capitalismo…