Como evitaram que os laudos da grande chacina de 2006 fossem maquiados

Cintia Alves
Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.
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Conselho Regional de Medicina acompanhou os trabalhos do IML, reduzindo a pressão sobre peritos e chegando ao verdadeiro número de mortos: foram 493 corpos analisados no intervalo em que se deu o confronto entre polícias, PCC e grupos de extermínio em SP

Jornal GGN – “Tudo começou com o aumento do número de óbitos por armas de fogo e o forte clima de tensão com o toque de recolher. Os médicos legistas nos pediram ajuda porque, àquela altura, já se registrava mais de uma dezena de mortes por dia, embora na imprensa os números fossem outros, e a pressão sobre eles só aumentava.” É assim que João Ladislau Rosa, ex-coordenador do departamento de fiscalização do Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp), começa narrando um dos fatos mais marcantes para a história da instituição: a grande chacina que ocorreu em São Paulo em 2006, conhecida como Crimes de Maio.

Graças ao trabalho de fiscalização do Cremesp junto a 23 unidades do Instituto Médico Legal espalhadas pelo Estado, em setembro de 2006, a sociedade tomou conhecimento do total de mortes que ocorreram em menos de duas semanas, em municípios do interior, na Baixada Santista e na capital. Ao todo, 493 pessoas morreram no intervalo da guerra protagonizada por policiais, grupos de extermínio e facções criminosas. Mas nem todas as mortes estão relacionadas a este massacre, observa Ladislau Rosa.

Hoje diretor do Cremesp, Ladislau Rosa afirma, em entrevista exclusiva ao GGN, que os dados dos quais o órgão dispunha à época da chacina não foram suficientes para apontar quantas pessoas, dessas 493, são vitimas diretas dos assassinatos envolvendo agentes de Estado. Isso porque, segundo ele, a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo não quis fornecer detalhes.

Mesmo com algumas dificuldades, o então presidente Desiré Callegari garante que o Cremesp atuou com imparcialidade e transparência, na tentantiva de resguardar os laudos para que a Polícia Civil pudesse fazer as análises corretas e ajudar o Ministério Público Estadual, Federal e a Defensoria Pública na investigação sobre o massacre.

“O Conselho atendeu ao pedido dos Ministérios Públicos e da Defensoria, e garantiu que não houvesse pressão em cima dos legistas, evitando que as informações fossem distorcidas”, conta Callegari. Para ele, que presidiu o Cremesp no “auge” dos crimes de maio, “foi um trabalho muito cansativo, em uma época muito complicada. É de se louvar também a postura dos peritos do IML que desenvolveram os laudos sem maquiagem. Se em algum momento houve interesse de alguém em exercer pressão sobre os profissionais do IML, nós ajudamos a impedir isso”, acrescenta.

OS DADOS DA CHACINA

Ao GGN, Callegari explica que o relatório do Cremesp só foi possível a partir da coleta de informações em 23 unidades do IML no Estado. Houve, depois disso, uma análise qualitativa e quantitativa dos laudos produzidos no intervalo da chacina.

“A quantitativa chegou aos 493 corpos, um número muito expressivo e que até então não circulava na imprensa.” Na análise qualitativa, o Cremesp avaliou que os laudos percorreram o caminho correto e não havia equívocos que pudessem comprometer a investigação. Ao detalhar essa parte do trabalho, Callegari destaca as informações sobre o sexo, a idade, os tipos de ferimentos, os números de disparos e a distância que levaram as vítimas a fatalidade.

“Chegamos a conclusão de que havia a prevalência de homens entre as vitimas, cerca de 96,3%, contra uma taxa de 2,7% de mulheres. Aproximadamente 45% dos mortos eram jovens na faixa etária dos 21 a 31 anos. Outros 26% tinham entre 31 e 41 anos. Todas as 493 vítimas somavam 2.359 lesões por disparos de arma de fogo. A média de disparos era de 5,8 tiros por pessoa. Em Santos, eram 8,2 tiros por morte. Alguns morreram com mais de 20. Do total de vítimas, mais de 87% receberam tiros a longa distância; 10%, em média distância e 2% foram baleados a queima roupa.”

As regiões mais baleadas do corpo das vítimas eram tórax (30,4%), cabeça (27%) e membros superiores e inferiores (24%). “No tórax, qualifica a intenção de matar porque é uma área vital. Isso significa que foram disparos para aniquilar, mas estes são dados de competência da Polícia Civil. O Cremesp encerrou seu trabalho quando concluiu a coletânea de informações. A Polícia Civil fez os testes de balísticas a partir dos dados do IML. O Conselho entende que cumpriu com a obrigação de garantir a transparência dos dados nesse processo”, comenta.

O IML é uma autarquia pública federal, mas os peritos respondem à Secretaria de Justiça do Estado, segundo Ladislau Rosa. “Eles, particularmente, estavam muito preocupados com o que poderia acontecer. Havia pressão para que tudo fosse concluído muito rápido e, ao mesmo tempo que uns queriam saber o que aconteceu naquele chacina, outros queriam abafar o caso”, lembra. “Todos nós ficamos com medo pela nossa segurança. Mas felizmente não aconteceu nada”, observa.

CASO SEM IGUAL

Na visão de Desiré, não houve, na história do Cremesp, um episódio tão marcante quanto aquela chacina, dado o número de vítimas e o papel do órgão nas investigações. Para o médico, que continua como conselheiro do Cremesp, a entidade ajudou, sim, a frear o número de mortes que se acumulavam diariamente naquele maio de 2006.

“Quando você imprime mecanismos de controle social em parceria com outros órgãos que atuam em defesa da cidadania, como é o caso do Ministério Público, as pessoas percebem e aquelas que têm instintos alterados acabam recuando”, pondera.

Segundo o ex-presidente, o Conselho atuou por provocação do MP nos Crimes de Maio, mas com a dimensão da chacina e a cobertura da imprensa, um fato público como este não ficaria sem fiscalização. “Se for matéria pública e nós imaginarmos que os médicos do IML estão sob algum tipo de pressão, podemos atuar ativamente para impedir isso”, frisa.

Ladislau Rosa também não se recorda de um caso tão marcante e com tantas mortes investigadas em parceria com o Cremesp.

Quando questionado sobre a possível participação de médicos legistas em tentativas de maquiar dados de massacres envolvendo policiais ou outros servidores, Ladislau Rosa relata que só ouviu falar de algo parecido na época da Ditadura, “quando existia extermínios patrocinados pelo Estado e os médicos participavam tanto das torturas quanto das fraudes para encobrir os culpados. Alguns até foram alvos de cassação pelo Conselho, mas eles conseguiram reverter a decisão na Justiça e nós ficamos sem poder divulgar nada. Mas de lá para cá, não me lembro de nenhuma ocorrência do gênero.”

Cintia Alves

Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.

2 Comentários

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  1. Vergonha do Brasil

    São Paulo, que já foi chamado de “locomotiva do Brasil”, hoje, é a vergonha do Brasil.

    Nem mesmo durante a Ditadura Militar houve tantas mortes em tão pouco tempo, como na chacina paulista de 2006.

    O morticínio paulista é a parte mais podre de uma sociedade violentíssima e de um estado cujas autoridades, segundo a Teoria do Domínio do Fato, são cúmplices dos assassinatos. Trata-se de um estado caótico, ressentido, homicida. Mas há muito mais: Carandiru, Sabesp, Alstom, pedágios, Pinheirinho, racismo de classe média, nazifascismo de classe média, incêndios de favelas etc. 

    São Paulo, vergonha do Brasil.

  2. Uma pergunta …

    Se todas essas mortes foram causadas pela PM, por que o PCC não partiu para a retaliação ?

    Dias antes eles haviam paralisado a cidade de SP e mostraram sua força não seria dificil retomar os ataques.

    Para mim essa história simplesmente não fecha…

     

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