Observatorio da DesInformacao
O Observatório da Desinformação é uma iniciativa para combater a desinformação no Brasil de forma articulada, dando visibilidade às frentes de reflexão, formação e extensão ligadas ao Letramento Midiático e Informacional e ao Diálogo Intercultural no âmbito dos Direitos Humanos.
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Falácias da liberdade na era do exibicionismo político, por Josianne Cerasoli

Não podemos esquecer que a liberdade é baseada no pacto coletivo, e também por isso está assentada em direitos reconhecidos coletivamente

Banksy

Falácias da liberdade na era do exibicionismo político: a tirania das emoções e a democracia sísmica

por Josianne Francia Cerasoli

Duas ou três coisas a aprender com as falsas polêmicas clique-guiadas do empresário X

“Não há ponto sem nó”

Quem por algum motivo ficou sem conexão de internet ou longe de redes sociais e canais digitais de difusão de informação pelos últimos dois dias provavelmente amanheceu dia 8 de abril de 2024 sem muita certeza sobre algumas ideias que poderiam parecer muito simples até a semana passada. Penso aqui especialmente nas palavras liberdade e democracia. Duas convicções defendidas tão apaixonadamente que amanheceram completamente abaladas. Um abalo tão intenso que foi capaz de cutucar mais uma vez o terreno tantas vezes tornado instável pelas polarizações.

As circunstâncias e variáveis são muitas, mas para não nos perdermos aqui nos muitos fios que se entrecruzam nesse momento e embaralham as ideias, reforçando esse cenário instável, vamos nos deter em fatos recentes. Em síntese: por meio das redes sociais, um empresário estrangeiro bilionário, com negócios no Brasil, sugere o impeachment de um juiz do Supremo Tribunal Federal brasileiro, provocando engajamento imediato em torno da liberdade de expressão, inflamando setores da direita e extrema-direita no país, gerando imediata reação dos demais setores.

Só esse resumo já seria suficiente para se levantar uma série de perguntas a respeito das pautas, das conexões, das estratégias e das articulações capazes de insuflar com tanta agilidade e rapidez as redes sociais e o noticiário em torno da liberdade, da censura, da democracia e da ditadura. É uma lista de palavras que, aliás, tem sido repetida dia e noite nas redes sociais e em outros meios de difusão de informação.

Quando comecei a pensar neste texto, no primeiro final de semana de abril, esse resumo me parecia suficiente para começar a reflexão que me mobilizava. Minha ideia era falar da tirania das emoções na democracia movida constantemente entre abalos, imaginados ou não. Mas ao longo da segunda-feira a polêmica repercutiu feito fagulha na mata e as perguntas ficaram ainda mais intrigantes.

Resolvi olhar mais de perto e destrinchar um pouco essa síntese dos últimos dias, buscando os fios dessa estranha urgência em torno do falso dilema da liberdade. Ao alinhar os fatos, foi preciso recuar alguns meses para enxergar alguns alinhavos: 

  1. dia 18 de outubro de 2023, é divulgado um Manifesto em defesa da liberdade de expressão, o Manifesto de Westminster, organizado por  Michael Shellenberger (ativista e jornalista estadunidense) e assinado por um grupo de profissionais de diferentes países. O manifesto cita a suposta “criminalização do discurso político” pelo Supremo Tribunal Federal brasileiro. Há a assinatura de três jornalistas independentes do Brasil (Ana Henkel, Leandro Narloch e Eli Vieira).
  2. 12 de março de 2024,  Marcel van Hattem (deputado federal, Novo, RS) afirma em discurso em frente ao Congresso dos Estados Unidos, junto a uma comitiva de parlamentares e advogados brasileiros, que o chamado Inquérito das Fake News tem sido utilizado para perseguição política. Nas redes sociais, diz que o Brasil vive uma ditadura.
  3. dia 3 de abril de 2024, Shellenberger anuncia em seu perfil da rede social X o “Twitter Files – Brazil”, que afirma ser um conjunto de provas de intervenção dos poderes da república brasileira para implementação de uma ditadura no país, supostamente orquestrada pela suprema corte brasileira.
  4. dia 4 de abril, Shellenberger acusa o Superior Tribunal Eleitoral de institucionalizar a censura com a justificativa de combater fake news por meio do Centro Integrado de Enfrentamento à Desinformação e Defesa da Democracia (o “Ministério da Verdade”, ironiza o ativista em fala divulgada pelo portal Gospel Prime nesse dia).
  5. dias 4 e 5 de abril, Shellenberger participa do Fórum da Liberdade, evento idealizado e organizado pelo Instituto de Estudos Empresariais que, desde 1988, reúne anualmente em Porto Alegre empresários, lideranças, jornalistas e políticos interessados em fortalecer princípios liberais na sociedade. Tema de 2024: “Admirável mundo livre?”. Tema de Shellenberger no evento: “Semeando o futuro”. Entre os outros palestrantes, estão: senador Rogério Marinho (PL, RN), governador Ronaldo Caiado (União Brasil, GO), ex-presidente Michel Temer (MDB, SP), deputado federal Marcel van Hattem (Novo, RS). É este o deputado que faz a intermediação com a imprensa, nos dias seguintes, para repercutir as denúncias de Shellenberger. 
  6. dia 6 de abril, Elon Musk (empresário sul-africano-canadense, naturalizado estadunidense), usou seu perfil na rede social X para criticar as decisões do Supremo Tribunal Federal do Brasil a respeito de ações e discursos golpistas. Definiu como atos de censura as iniciativas da suprema corte e sugeriu a renúncia ou o impeachment de um de seus juízes. A justificativa estaria nas denúncias do “Twitter Files – Brazil”. O empresário ameaça fazer revelações e descumprir ordem judicial para bloqueio de perfis do X usados para difundir informações falsas para desacreditar o sistema eleitoral brasileiro.
  7. dia 6 de abril, no início da noite, é publicado um verbete somente em português sobre a “Twitter Files – Brazil” na enciclopédia livre online Wikipedia. Os perfis responsáveis pela publicação não estão identificáveis. Como de praxe, o verbete recebe contribuições de outros usuários (são mais de dez em 24 horas) e a Wikipedia alerta que o texto pode não ter características enciclopédicas. O verbete antecipa a interpretação de tratar-se de um escândalo trazido à tona pelo jornalista Shellenberger, em colaboração com os brasileiros David Ágape e Eli Vieira, ambos colaboradores da Gazeta do Povo.
  8. dia 7 de abril, Alexandre de Moraes (ministro do STF e presidente atual do TSE) inclui o empresário no inquérito sobre as milícias digitais e determina que a Polícia Federal investigue a conduta do empresário Musk em relação aos crimes de obstrução de justiça, incitação ao crime e organização criminosa.
  9. dia 7 de abril, Jair Bolsonaro (ex-presidente da República, PL-RJ) cita o apoio internacional à suposta luta pela liberdade de expressão no Brasil e retransmite um vídeo de maio de 2022, em que se encontra com o empresário Musk e então chama atenção para  a dificuldade “em manter a verdade em qualquer lugar do mundo”,  comparando ainda a compra do Twitter (atual X) por Musk ao “grito da independência”. Na live, faz chamado para as revelações a serem feitas no programa 4por4 no YouTube, com Rodrigo Constantino e Ana Heckel; o programa, por sua vez, anuncia a live do ex-presidente em seguida a transmite simultaneamente. O 4por4 recebe van Hattem e Shellenberger e as pautas se fundem.
  10. dias 7 e 8 de abril, há o registro nas mais variadas plataformas digitais e veículos de imprensa de todos os perfis de numerosas manifestações de crítica e de apoio às acusações iniciadas por Shellenberger.
  11. dia 8 de abril, Rodrigo Pacheco (presidente do senado, PSD. MG) afirma ser fundamental a regulação das plataformas digitais e cobra a Câmara dos Deputados para que aprove o Projeto de Lei 2630, de 2020, que “Institui a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet”.
  12. dia 8 de abril, Flávio Bolsonaro (senador, PL-RJ) afirma sem provas no programa Roda Viva, da TV Cultura, que o Supremo Tribunal Eleitoral foi parcial e favoreceu ao então candidato à presidência Lula nas eleições de 2022.
  13. dia 8 de abril, Musk publica em seu perfil na rede X acusações de irregularidades nas eleições brasileiras em 2022, afirmando haver um pacto de interesses entre o ministro do STF Alexandre de Moraes e o presidente Lula.
  14. dia 9 de abril, líderes partidários da Câmara dos Deputados decidiram, entre pressões de toda ordem, mudar o relator do projeto da Regulação das Redes Sociais e criar um grupo de trabalho para debater o assunto. Sem prazo, sem acordo.

Ato ou efeito de abalar, estremecer

A lista certamente continua, seja em desdobramentos que uma investigação mais atenta de cada pista pode trazer, seja em novos fatos e novas consequências que não devem cessar logo. Como se espera em uma democracia, deve haver sobre cada ponto possibilidade de investigação, de consideração do contraditório, de discussão e de resolução das tensões. Na esfera política, na esfera social, é esperado que exista o debate, mas também a negociação e o entendimento.

O que merece maior atenção em meio a manipulações e mobilizações aceleradas é o modo como a informação e os compromissos podem ficar abafados pelo engajamento emocional imediato, ainda mais quando incendiadas pelos mecanismos de plataformas digitais. O ritmo das ações alinhadas nesses itens não ajuda a ponderar e refletir, mas estimula a reagir com urgência. Parece urgente abafar a voz dissonante, abalar seus possíveis apoios e perturbar as certezas que se opõem às nossas.

Em estado de estremecimento, como em um terremoto, antes de saber onde está o epicentro do abalo sísmico ou de conhecer sua extensão, é preciso reagir e provocar reações. As emoções são o motor e o combustível. E elas não deixam de chacoalhar.

A democracia sísmica que se constitui nesses mecanismos de reações-provocações-reações é extenuante, destrutiva e pouco promissora. Quase não sobra espaço para ligar os pontos: os nomes que se repetem, as pautas que ecoam mutuamente, as sincronias planejadas, os interesses que parecem invisíveis, as palavras que se esvaziam em slogans descomprometidos: liberdade de expressão.

“Como seria viver num admirável mundo livre?” – pergunta o Fórum da Liberdade, em uma sincronicidade programada. Um espaço que discute anualmente pautas do liberalismo, declaradamente cercado de valores liberais e norteados sobretudo por interesses empresariais, não seria identificado até mesmo por um olhar distraído como um lugar imparcial de defesa da liberdade. Mas ele parece conseguir esse efeito diante da astúcia de embaralhar o sentido positivo associado à palavra liberdade e a parcialidade do liberalismo, em suas tantas versões, niveladas por suas consequências excludentes. Seria possível completar a pergunta: mundo livre de quê?

Autonomia contra a contaminação

Antes de ceder ao impulso do clique e da reação imediata, capaz de julgar num segundo o que é liberdade e democracia, é crucial buscar com responsabilidade o que nunca está transparente no atual estado da dominação das informações (e desinformações) em que nos encontramos (e desencontramos).  É preciso seguir as pistas, não ser perseguido por elas. A informação à caça de reações – cliques – é um assédio moral que fragiliza nossos pactos sociais de respeito. E não importa em que “lado” estejamos, a dominação acontece, nos adoece.

Não podemos esquecer que a liberdade é baseada no pacto coletivo, e também por isso está assentada em direitos reconhecidos coletivamente, anotado em leis e regulações que nos permitem viver em sociedade. Exatamente por isso, é uma falácia anunciá-la como se fosse absoluta. Ela cobra na mesma medida a responsabilidade pelo outro.

É também por isso que o cultivo da autonomia, consciente e crítica, é tudo se quisermos escapar aos falsos dilemas que têm abalado nosso convívio e nossa capacidade de imaginar futuros. A tomada de decisões por vontade própria, refletida e de maneira consciente e responsável não poderia ser confundida com uma suposta liberdade inconsequente e absoluta. Não é por outro motivo que me parece prudente nos afastarmos estrategicamente do falso dilema da liberdade. Ele aprisiona. Nos debates dos últimos dias, tomou efeito ainda mais perturbador, de um contágio radioativo.

Poucas semanas atrás, a cientista política Maria Camarez Carlotto chamou atenção para os efeitos radioativos das ações e campanhas da extrema-direita, sobretudo contando com as dinâmicas imediatistas das plataformas digitais. Ela chamou de  Política radioativa o modo como operam, com seus efeitos destrutivos, sua pauta anti-sistêmica, seu modo auto implosivo. Reitero seu alerta: é fundamental não subestimar os riscos da radioatividade do pensamento extremista.

Por analogia, a imagem me fez lembrar de Leide, primeira vítima fatal do trágico acidente radioativo com cápsulas carregadas de césio-137 em Goiânia, quase 40 anos atrás. Não havia protocolo sequer para tratar aquele pequeno corpo da menina de apenas 6 anos que, adoecido pela radioatividade, tornava-se ele mesmo radioativo. Mesmo os funcionários do hospital, no isolamento em que ficou, temiam se aproximar.

Morreu em outubro de 1987 e foi enterrada em um cemitério público em um caixão especial, envolto em uma espessa camada de concreto, tudo projetado para evitar a propagação da radiação. Alvoroçadas pelo pânico, muitas pessoas protestaram, aos gritos, atirando-se ao chão para impedir o cortejo de passar perto. Debaixo de sua ideia absoluta de liberdade, apenas gritavam: não.

Onde poderia descansar em paz aquela vítima indesejável? Tempos depois, mesmo as flores plantadas ao redor do túmulo e as placas com o nome e a foto eram arrancadas e destruídas, como se fosse possível simplesmente apagar o que vivemos.

Josianne Francia Cerasoli – Departamento de História – UNICAMP. Observatório da Desinformação

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