O inferno e as boas intenções, por Caiubi Miranda

do blog Direitos Humanos no Trabalho, no GGN

Todos sabemos que o lucro, o retorno do investimento é, em última análise, o que interessa às grandes corporações. A rigor, não há nada de errado nisso. Vivemos num regime capitalista onde lucro não é pecado. É presumível, portanto, que tudo que uma grande corporação faz tem, como objetivo final, a longevidade do negócio e a rentabilidade do investimento dos acionistas. Está aí, incluído, o respeito aos direitos humanos dos seus empregados.

Somos nós, consumidores, que determinamos isso. À medida que uma empresa se notabiliza por desrespeitar sistematicamente os direitos humanos no ambiente de trabalho, ela perde a nossa preferência em adquirir seus produtos ou serviços. O inverso é absolutamente verdadeiro. Uma empresa reconhecida pelo respeito aos seus empregados, ganha a nossa preferência como consumidores. E, no fim das contas é isso o que mais importa para ela.

Além da preferência dos consumidores, outro ganho substancial das empresas que respeitam os direitos humanos vem de seus próprios empregados.  Minucioso estudo acadêmico envolvendo pesquisa com as 100 empresas top dos Estados Unidos (“Ethics programs, perceived corporate social responsibility and job satisfaction” – Sean Valentine e Gary Fleischman – Department of Management and Marketing – University of Wyoming) concluiu que “as organizações que formalizam códigos de ética e criam mecanismos de proteção aos direitos individuais de seus colaboradores, quando percebidos como genuínos, obtêm deles comportamentos e atitudes éticas similares em relação aos ativos e aos resultados negócios da organização.”  Mesmo de forma empírica, observa-se facilmente essa atitude de reciprocidade dos empregados com as empresas que genuinamente respeitam os direitos dos empregados.

***

Mas não se pode cometer erros.

A consultoria em que trabalhava foi contratada por uma grande corporação multinacional para desenvolver uma canal de comunicação entre os mais de 20 mil empregados e o presidente, algo como “Linha Direta com o Presidente”.  Os empregados poderiam mandar, via e-mail, qualquer demanda que tivessem, desde denúncias de violação dos direitos humanos, reivindicações, reclamações, sugestões, o que fosse. O presidente dava sua garantia pessoal que todas as demandas seriam avaliadas; em especial, as denúncias de violações de direitos humanos seriam apuradas e, quando cabíveis, as medidas corretivas seriam tomadas. Além disso, o presidente assegurava o anonimato do denunciante e garantia que ele não seria alvo de nenhuma represália. Ao fazer a denúncia, o empregado recebia uma senha e, através dela, poderia pesquisar o status da apuração de sua denúncia. O programa foi desenhado para sustentar um programa mais amplo de valorização dos direitos humanos dentro da organização e, numa segunda etapa, na sua cadeia de fornecedores.

O programa foi lançado com um grande aparato de marketing interno, foram desenvolvidos softwares específicos para gestão do programa e uma equipe de auditores foi montava exclusivamente para apurar as denúncias recebidas.

E o programa foi um sucesso. Nos primeiros dois meses, as denúncias chegaram aos montes, procedentes, improcedentes, algumas mais graves, outras nem tanto. Mas todas mereceram atenção e o denunciante recebia o resultado da apuração da denúncia, da sugestão ou da demanda encaminhada diretamente do inbox do presidente, de forma clara e transparente.  Depois disso, o volume foi diminuindo como era de se esperar. Mas o programa passou a gozar de grande credibilidade, já que nada era deixado de lado e as respostas eram sempre muito diretas e transparentes.

No quarto mês do programa, o sistema recebeu uma denúncia grave. A funcionária dizia estar sendo vítima de assédio sexual por parte de seu gerente. A investigação cuidadosa e sigilosa sobre a denúncia não encontrou nenhum indício de que o assédio estivesse realmente acontecendo. Questionada, a funcionária acabou assumindo que a denúncia era falsa e que ela a fizera para vingar-se de seu gerente que avaliara mal o seu desempenho profissional.

Era assumidamente uma denúncia falsa, feita de má fé, com o objetivo de prejudicar um gerente.  Depois de uma longa e acalorada discussão, o presidente tomou a decisão: a funcionária, autora da falsa denúncia, feita de assumida má fé, deveria ser demitida por quebra de confiança. E mais: demitida por justa causa. Na visão do presidente, o programa não podia admitir denúncias falsas de má fé. Denúncias infundadas eram até aceitáveis; de má fé, não.

Você acha que o presidente tomou a decisão certa?

Eu não sei. O fato é que, demitida por justa causa, a funcionária saiu atirando para todos os lados, valendo-se inclusive do sindicato. O depoimento dela é que havia feito uma denúncia dentro do programa e havia sido demitida por justa causa, apesar das promessas de que não haveria qualquer tipo de retaliação. Não se falou do mérito da denúncia e foi essa a informação que a “rádio corredor” fez circular pela organização: qualquer a denúncia no programa Fale com o Presidente, se não fosse do agrado da organização, podia resultar em demissão. Os desmentidos oficiais não tiveram a menor repercussão.

Esse evento matou o programa. Passados alguns meses, fizemos entrevistas com dezenas de empregados e concluímos que o programa não tinha mais a menor credibilidade, estava morto e o melhor era enterrá-lo de vez.

Entrada de leão, saída de cão.  Eu tenho a mais plena convicção que o presidente da empresa teve, em todos os momentos, a mais correta e honesta das intenções. Mas sua decisão – certa ou errada – acabou com um programa promissor e atrasou em alguns anos a consolidação de uma política efetiva de defesa dos direitos humanos no trabalho naquela grande corporação.

Caiubi Miranda

Redação

5 Comentários

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  1. Difícil ser presidente

    Acho que o presidente agiu corretamente. Se o projeto em si se baseava na transparência e credibilidade, a atitude da funcionária é como uma traição à oportunidade única que ela recebeu.

    Que credibilidade teria esse presidente diante de seu gerente, que teoricamente tem sua confiança para liderar dentro da empresa, se não o defendesse? Decisão difícil, mas correta. 

  2. Na implementação do programa,

    Na implementação do programa, faltou esclarecer que não haveria represálias DESDE QUE o canal de reclamações não fosse instrumentalizado para objetivos espúrios. Quem tenta promover calúnia e difamação tem que ser responsabilizado por isso. Não existe direito que não venha acompanhado dos deveres correspondentes.

    Esse caso lembra o que faz o PIG, defendendo com unhas e dentes seu “direito” de assassinar reputações, manipular e desinformar: toda proposta de responsabilização e regulamentação é recebido com denúncias de “censura à imprensa”.

  3. Na minha empresa teve um

    Na minha empresa teve um programa destes. Não sei se obteve resultados bons, mas soube de alguns comentários ofensivos e outros apenas contundentes contra o alto escalão da empresa, que, dois anos depois da mudança do presidente, foram usados numa campanha intimidatória por parte da diretoria que temia uma greve, com algumas demissões. 

    Minha sugestão para pessoas que tiverem programas assim em suas empresas: Não se exponham. A boa intenção do momento mais dia menos dia mudará, já que executivos não são conhecidos por tolerância ou bom humor.

     

  4. Declaração dos direitos do HOMEM

    Comento a seguir os parágrafos do texto.

    A  autor disse:  vivemos num regime capitalista onde o lucro não é pecado.

    Comentando: Todavia,  o Estado, graça a deus,  é laico.

    Prosseguindo.

     Embora compreendendo a sua expressão vulgar, corriqueira, digamos assim, e respeitando a sua opinião, foi infeliz dizer que o lucro não é pecado. E a usura seria pecado? Enfim, melhor deixar de lado este negócio de pecado pra lá.

    Ademais, sabemos  muito bem como o poder que vem de “deus” influenciou, sobretudo, a evolução  humana nela  incluída o mercantilismo, as grandes navegações, e consequentemente as invasões, mais conhecidas como descobertas. O Brasil, por exemplo, surge e insurge dai, isto é,  destas festejadas e meritosas buscas por um           ganho > custo, já considerando o  “risco”. Dê o nome que quiser dar a isso:  lucro, vantagem, mérito, mais valia, êxito, deus, mercado, libertismo ou liberalismo etc. Porém, é  melhor não misturar com as a doutrinação religiosa.

    Direitos  humanos passam longe destas “conquistas” , exceto, se se considera apenas os direitos civis e políticos como direitos “do homem”.

    Prosseguindo.

    Desculpe-me mais uma vez,  mas é evidente que , nós, os consumidores, não determinamos muita coisa não. Essa sua visão é microeconômica, analítica, “natural”, atemporal, de “longo prazo”, razão pela qual,  não consegue  explicar muito bem  o fenômeno  consumo.

    Sabemos que naquela adorável e paradigmática curva da demanda econômica além do preço,  há também o “gosto” ou  as “preferências”  do desavisado consumidor, num ambiente assimétrico de informações. E como o tal “consumidor” não consegue enxergar muito,   no fundo,  não determina coisa alguma.

    Em que pese a importante implementação  da divisão internacional  do trabalho,  reduzir um ser humano a um consumidor ,  é torna-lo uma engrenagem – à moda Charlie Chaplin. Uma engrenagem que ao ser combinada com outros fatores, vende força e     produz para em seguida, consumir –se,   proporcionando então a  renda.  Portanto, não passa de um vulnerável que pode ser movido facilmente por uma pessoa oculta atrás da tela. Mutatis mutandis, consumidor = marionete.  

    E  já que você parece  atuar  na seara humanista, permita-me,  com o devido e bom respeito,  advertí-lo  do   seguinte:

    Melhor parar  de tratar a organização de fatores de produção como ente que atua, pois, esse  é o tipo de sintetização que mais promove o esconderijo das “condutas” humanas.  Veja, ops, perceba por que:

    O que “É” uma empresa? Resposta simples: uma ATIVIDADE que visa um fim. No caso, o fim é o lucro líquido após os ajustes. Mais precisamente, lucro líquido já lançado  “ a   Dividendos a Pagar” –  credito caixa,  pagando-se a quem? Aos que detém de algo que deram o nome de propriedade. Note. E de onde vem a propriedade? Do mérito? Do empreendedorismo? Das capitanias hereditárias em conjunto com o direito de família no Brasil? Da poupança externa? Do superávit primário? Do rentismo?  Deixo para você pensar nisso, já que parece atuar com direitos humanos. Minha humilde sugestão é para deixar o pecado de lado.

    Antes que algum desorientado me entenda mal, não estou aqui negando os direitos de primeira geração e valorizando apenas os de segunda e terceira. Nem tão pouco aplaudindo as ideias “marxistas” ( Engels, Hegel e cia) em detrimento do super Nietzsche,  ou do festejado  Smith da vida. Mesmo sabendo que este último parece ter se aposentado na alfândega ESTATAL   para a tristeza dos conservadores, liberais e defensores do mínimo estado, isto é, defensores de um estado polícia para “botar bandido na cadeia”. Por bandido entenda o pensamento de boa parte dessa gente: seres pi coisas  com problemas genéticos que nascem ou surgem  bandidos e, portanto, devem ir para a cadeia já a partir do momento em que , quando ainda crianças defeituosas,  procuram vingar-se do pai para namorar  a mãe. Em suma, é genético,  hereditário, natural, atemporal , familia, portanto, bárbaro. Bárbaro pensar assim.

    Prossigo.

    Você continua cometendo sérios equívocos no uso dos vocábulos ao relacionar: Empresas, consumidores e empregados.

    Ora, o primeiro é atividade como já explicado. Tudo bem. Pode ser uma  pessoa. Mas será pessoa jurídica. Note muito bem isso meu caro.

    O consumidor parece somente consumir,  isto é,  eliminar alguma coisa visando   satisfazer seus desejos hedonistas.

    Mas, o consumidor pode ser também uma “empresa” , uma pessoa jurídica que visa lucro e que abomina o pagamento de tributos, sobretudo, quando transfere a renda para o seu principal stackeholder. ( no fundo é único)

    O consumidor pode ser também  um “ser humano constantemente ” faminto” e  que por isso mesmo,   paga mais tributo.. Ou pode ser aquele que a tributação não deve prejudicar, sob  pena de prejudicar  sua bela “poupança”. Pode também  ser um que gosta e pode pagar pelos bens vendidos no armazém do Veblen ou no  do Giffen.

    Enfim, a palavra  consumidor resume muito e prejudica a análise.

    Quanto aos empregados, mamamia! Macacos me mordam!  Pobres coitados! A sugestão que lhes dou é para deixarem de “ser” empregados o quanto antes. Mas,  não se enganem. Jamais terão tamanho êxito, exceto, claro, no longo prazo, quando todos nós estaremos mortos.

     Ser empregado é igual ou quase igual a  “ser” servo ou  a  “ser” escravo. Sim porque se você já é alguma coisa, então, é NATURAL que se diga que você é aquilo e ponto final. O que é , é! E o que não é, não é! Ponto.

    Vá saber de onde veio  a CLT. Alguns desavisados, mormente, “liberais do próprio umbigo” acreditam que é fruto das facilidades del lavoro  de Mussolini. Incrivelmente, não conseguem  sequer ler o vocábulo consolidação em sentido jurídico-social. Fruto  de uma longa e árdua conquista  de direitos humanos de segunda,  cujo marco inicial não foi o tratado de latrão- este foi para o pecado – mas sim o da liberdade tardia para os seres humanos, semoventes, a serviço  do principal fator de produção.

    Agora, repare bem,  “estar” empregado já  é outra coisa. E aqui, pipocam as historinhas de “direitos humanos”.  São direitos com toda a cara de  petrificados mas, sabe como é né, uma  pedra meio que mole. Uma pedra sabão mole, fácil de manipular.  Pedra muito usada nas “minas gerais”. A propósito, ontem mesmo vi um senhor  das minas generalizadas, diante de um grupo de  amigos, propor um choque nestas pedras  moles para esculpí-las a fim de dar uma  forma mais “moderna” a elas. Pelo visto, parece querer abandonar o que entende ser moda antiga, talvez a moda anacrônica  do Aleijadinho ou da própria  proibição do retrocesso. Sei lá.   Não entendi muito bem.

    Enfim, esses vocábulos sintetizadores  nos passam ideias rasas para ocultar o relacionamento social, sobretudo, pós divisão internacional do trabalho.

    Ah! Já ia me esquecendo. Tudo na base do suspeito paradigma  coeteris paribus.

    Quanto ao código de ética,  ah! para com isso vai. Tem certeza de que é possível existir um código de ética? Talvez, melhor fosse  tratá-los como código de condutas humanas aceitáveis ou inaceitáveis dentro de um sistema hermeticamente fechado, não? ( isto é, dizem ser sistema aberto mas ,no fundo, é fechado mesmo, tipo um clube de paris)

    Deixemos o debate sobre ética  de lado, ou para outro momento, para um  outro debate longo e interminável.

    Todavia, resta saber se este código de ética das “empresas” é promulgado  ou outorgado.  Resposta simples: mas é claro que  é outorgado! O problema que direitos humanos com outorga não combinam muito, não é mesmo? Ou vá  me dizer que há “líderes democráticos” dentro das “empresas”?

    E ainda resta saber se o código de “ética” tipificou condutas proibidas ou aceitáveis ou ainda aceitáveis e incentivadas etc.

    No caso em tela,  observa-se o seguinte:

    -Grande corporação multinacional com 20 mil empregados ( puxa vida!)

    -Canal de comunicação ( isto é, canal de persuasão na hipoderme)

    -Marketing( lembra do consumidor,  aquele que determina? Pois é. E o marketing?)

    -Presidente ( ou “ceo”, enfim, o primeiro empregado do sujeito oculto. Mas, neste caso “está “ empregado)

    E a narrativa do fato me pareceu clara, em suma:

    -Outorga de código “material”  de condutas tipificadas como proibidas  que se diz de  ética;

    -Ausência de código “ instrumental”;

    -Autora, mulher, praticou conduta  tipificada  no código material de condutas.   Com agravante de se utilizar da má-fé. Condutas que ao serem praticadas implica pena. Tudo suposta  e devidamente apurado

    -Assunção de falsidade por parte da autora, sem demonstrar a forma de apuração. Em tempo:   recentemente no Brasil várias pessoas também assumiam culpa de um ato qualquer e eram  severamente punidas por isso. Mas isso é outra história.

    -Réu, homem,  inocentado após devida apuração a qual  ensejou a  confissão da  autora.

    Acalorada discussão sobre o assunto, mas aparentemente sem ampla defesa e contraditório, isto é, discussão que não parece respeitar os direitos humanos!

    Decisão arbitrária e vertical – talvez,  bem parecida com a elaboração do “código de ética – condenando a ré ao cumprimento da pena de  dispensa sem justa causa.

    Este é o breve relato.

     

    Sugestão: ao elaborar um  anacrónico código de ética( no fundo, de condutas que são aceitáveis e incentivadas num ambiente privado qualquer) precisa pensar no “código de processo” para saber analisar, adequadamente, um caso concreto, sob pena de ferir, flagrantemente, os direitos humanos, se é que se respeita mesmo estes direitos de pedra sabão.

    O problema é que este código  não pode ser democrático sob  pena de fragilizar a própria atividade empresarial.

     

     Saudações

     

  5. No reino das fadas é assim mesmo…

    “À medida que uma empresa se notabiliza por desrespeitar sistematicamente os direitos humanos no ambiente de trabalho, ela perde a nossa preferência em adquirir seus produtos ou serviços. O inverso é absolutamente verdadeiro. Uma empresa reconhecida pelo respeito aos seus empregados, ganha a nossa preferência como consumidores.”

    Você realmente acredita nisso? E, além do mais, como sabemos disso? Pela propaganda? Ora, ora… 

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