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Também cabe a nós compreender como se materializa nas cidades a desigualdades de classe, raça e gênero. Isto para sabermos ouvir as vozes dos personagens que entram em cena e protagonizam um novo ciclo de lutas
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Três propostas sinérgicas para o Direito à Cidade

É nas cidades que as desigualdades socioterritoriais se manifestam de forma mais grave com falta de acesso a equipamentos públicos

Imagem: projeto Pé de Meia, desenvolvido pelos fotojornalistas Tadeu Vilani, Jefferson Botega, Bruno Alencastro e Jorge Aguiar

do BrCidades

Três propostas sinérgicas para o Direito à Cidade

por Ion de Andrade, Cláudia Pires, Gilson Paranhos, Flávio Tavares, Pablo Fernandes e Cesar Vieira

A rodada aberta pelo governo federal para a discussão pública do Plano Plurianual Participativo[1] (PPA) através da plataforma Brasil Participativo vem produzindo grande interesse da sociedade. Até o dia 30/05/2023, mais de 1.500 propostas haviam sido formalizadas, com um ritmo de cerca de uma centena de propostas por dia.

A área de Cidades, cujo carro chefe do Governo Federal é o programa Minha Casa Minha Vida (MCMV), vem sendo objeto de uma série de propostas que vão além da política de produção de moradias e adentram no universo de construção do bem-estar social, o que evoca uma concepção de cidades e do Direito à Cidade para além das moradias.

Não fosse esse caráter totalizador do conceito de Cidade, que contempla uma identidade territorial e histórica definida, além da dinâmica da oferta de bens, serviços, direitos e oportunidades, tais propostas novas teriam dificuldade de encontrar uma “rubrica” adequada para serem registradas num exercício orçamentário naturalmente fragmentado.

Nas cidades brasileiras se concentram 85% da população e é nelas que os problemas nacionais mais graves, mas também os avanços mais relevantes, se materializam e se dão a conhecer. É no contexto das cidades que se distribuem os dispositivos de Saúde do SUS, tais como as Unidades Básicas de Saúde, maternidades, hospitais, hemocentros e Policlínicas, por meio de uma territorialização que mira o acesso universal. Mas também é nas cidades que as desigualdades socioterritoriais se manifestam de forma mais grave, relegando às periferias e às zonas rurais, hoje imbricadas à vida urbana, a falta de acesso a equipamentos públicos como os centros de cultura, esporte, lazer e de acolhimento das populações economicamente mais vulneráveis.

Na plataforma, as propostas têm um limite de 500 dígitos para a redação, o que é pouco para se darem a conhecer por inteiro, por isso salientamos no título desse artigo a existência de uma sinergia e complementaridade entre três delas, o que não é visível à leitura das três separadamente.

As três propostas são as seguintes:

Programa Periferia Viva: “A Secretaria Nacional de Periferias propõe o Programa Periferia Viva, para articular todas as políticas públicas do Estado nos territórios periféricos e garantir a participação popular nas decisões. Nas periferias, não basta só um tipo de intervenção do Estado. São décadas de abandono, carências e vulnerabilidades. E também décadas de organização popular para exigir os direitos e criar soluções. O Periferia Viva é uma inovação do governo Lula para mudar a vida do povo das periferias do Brasil.”

Essa proposta enfatiza a necessidade de uma abordagem sistêmica para o enfrentamento da problemática complexa das periferias, além de posicionar o Estado como agente indutor das políticas de intervenção nestes territórios periféricos, com produção de cidades onde as comunidades beneficiárias atuam como protagonistas num processo participativo em que o Estado e a comunidade constroem as saídas para a melhoria dos territórios de forma sistêmica, agregadora e incremental.

Fruto de uma inovação necessária que nasce no Plano de Governo, se consolida no processo de campanha política e se materializa na instituição de uma Secretaria Nacional de Periferias na estrutura do Governo Federal, o Programa Periferia Viva inova ao incorporar a necessidade de traduzir em política pública o protagonismo da potência e da resistência que emerge das periferias em todas as suas nuances.

O Periferia Viva traduz a nova política do Governo ao focalizar a aplicação do orçamento para esses territórios mais vulneráveis na forma de um programa multissetorial de base territorial. O programa avança para compor as clássicas intervenções de urbanização e prevenção de risco com um arranjo interministerial de articulação de equipamentos multifuncionais e organiza tudo isso na ponta de maneira assistida por uma ação de assessoria técnico-comunitária.

Assistência Técnica em Habitação de Interesse Social – 1 Arquiteto Urbanista para cada 20 mil habitantes: “A proposta consiste na criação e implantação de Escritórios de Assistência Técnica em Habitação de Interesse Social, e na contratação de um Arquiteto Urbanista para cada 20 mil habitantes, no intuito de planejar e promover a evolução das cidades brasileiras através da ATHIS, democratizando o acesso aos serviços de Arquitetura e Urbanismo à população e ao município como um espaço vivo em transformação e

A proposta “2” acrescenta ao quebra-cabeças a estratégica questão territorial como dimensionadora da distribuição do trabalho do profissional de arquitetura frente aos desafios da Assistência Técnica em habitação de interesse Social (ATHIS).

A ATHIS é uma ferramenta capaz de criar um processo de cidadania com a participação direta do cliente in loco, essencial na construção da cidade, da moradia, do habitat e do meio ambiente. Fruto do desejo de ver expresso na Política Pública o Direito à Arquitetura, a proposta é convergente com a necessidade de aproximar o profissional das questões ambientais e de saúde, cujos passivos são facilmente observáveis ante a emergência climática.

Determinados legalmente como direitos constitucionais inalienáveis, a educação e a saúde são dotadas de sistemas públicos e gratuitos, mesmo existindo a educação e a saúde privadas. A proposta aponta como imprescindível que exista também em nosso país um sistema público e gratuito que assegure a moradia mesmo que exista o mercado imobiliário privado.

Duas coisas a considerar nesse contexto:

(a) o fato de que, mesmo levando em conta a importância estratégica do Programa Minha Casa Minha Vida, estima-se que as necessidades habitacionais se concentram, em quase 80% dos casos, em reformas estruturais relacionadas à salubridade, acessibilidade ou segurança de moradias já construídas, o que aumenta a responsabilidade por uma política nacional de assistência técnica que apresente soluções para redução de domicílios precários pelo país e

(b) de que, ao definir um território de abrangência para o trabalho de um arquiteto urbanista, a proposta alude ao seu papel na dinâmica do desenvolvimento desse território no plano urbanístico para um acesso ao Direito à Cidade, que só poderá ser construído nas bases do que propõe a proposta anterior do Programa Periferia Viva: a participação popular e a colaboração do Estado.

Nesses termos, subentende-se que o profissional assumiria o papel protagonista nas cidades e no campo, tanto no que envolve a ATHIS na dimensão da vida individual e familiar, quanto no que envolve o acesso ao Direito à Cidade na dimensão da vida coletiva, o que encarna um projeto cívico participativo que se alinha à proposta “1”.

Rede de equipamentos públicos para a cultura, o esporte, o lazer e o acolhimento de vulneráveis: Que equipamentos sociais e políticas compõem a Nova Rede? Equipamentos e políticas para a cultura, o esporte e o lazer para a juventude: Auditórios multiúso (cinema, apresentações escolares, teatro); Bibliotecas (midiatecas, infotecas); Campos desportivos (ginásios, pistas de skate, pistas de atletismo); Piscinas públicas; Brinquedotecas comunitárias; Escolas (música, dança artes cênica e visuais) e Centros culturais; Museus (ecológico, de memória da comunidade); Centros de convivência e lazer.

A terceira proposta sumariza necessidades das periferias raramente atendidas no âmbito das políticas públicas, o que condiciona uma falta de acesso à contemporaneidade que contribui para o tremendo mal-estar social em que está mergulhado o Brasil.

A Rede, inspirada na síntese de 40 anos de lutas de um bairro popular de Natal (Mãe Luíza)[2] foi, sob o nome de Rede Canto – Territórios de Cidadania, um dos projetos premiados pelo Instituto Lula no concurso Territórios e Cidades Democráticas. Do ponto de vista organizativo, a proposta enxerga essa nova rede de equipamentos sociais implantada em territórios de 20.000 habitantes, o que coincide com a proposta “2”, acrescentando um significado suplementar à presença do arquiteto junto à equipe multidisciplinar no território enquanto artífice do desenvolvimento territorial e da participação popular para o Direito à Cidade.

A nova Rede prevê concurso arquitetônico para a escolha dos equipamentos sociais e, tal como na proposta “1”, estabelece a participação popular para a escolha da ordem de implantação dos equipamentos sociais para a cultura, o esporte e o lazer, ou o acolhimento de vulneráveis nas periferias, conforme a prioridade de cada território e em consonância com as aspirações da comunidade.

Questão central para uma virada sistêmica na sociedade brasileira que elevaria consideravelmente o desenvolvimento humano no Brasil, o território permite definir uma sustentabilidade orçamentária para a proposta. De fato, se consideramos o país com seus 210 milhões de habitantes, teremos 70 milhões de pessoas no terço mais vulnerável da população ou 3.500 territórios de 20.000 habitantes.

Conforme artigo publicado no GGN “A Rede Pública que pode transformar o Brasil”[3], se pensarmos numa liquidez anual para o investimento em cada território correspondendo a três milhões de reais (o suficiente para construir em cada área um equipamento de pelo menos 1.000 metros quadrados no melhor padrão construtivo), atingiríamos 10,5 bilhões de reais por ano, o que corresponde a 0,25% do orçamento anual da União, que ultrapassou os cinco trilhões de reais em 2023, para uma agenda indiscutivelmente prioritária capaz de produzir e fortalecer a cidadania entre os mais pobres, massa crítica imprescindível para a sustentação da democracia e o incremento da inclusão social.

Cláudia Pires é Arquiteta Urbanista atuante no Eixo Rio-BH, Mestre em Planejamento Urbano e Regional pelo Instituto de Geociências da UFMG,  ativista da Rede ODS Brasil do Movimento dos Arquitetos, atua no METRODS- Observatório Metropolitano do Desenvolvimento Sustentável e do OCA IAB-RJ Baixada. Em 2022 foi eleita Arquiteta do Ano pela FNA. Comentarista de Urbanismo na Rádio CBN.

Flávio Tavares é urbanista e atual Coordenador-Geral de Articulação e Planejamento da Secretaria Nacional de Periferias do Ministério das Cidades. Integra a Rede BrCidades e o Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB/PB).

Ion de Andrade é médico epidemiologista e pesquisador da Escola de Saúde Pública do RN; é ativista dos movimentos urbanos em Natal e colaborador da Rede BrCidades.[4]

Cesar Vieira é jornalista, documentarista, dirigiu os documentários “Limpam com Fogo” e “Quem Mora Lá” ao lado de Conrado Ferrato e Rafael Crespo e assessor de comunicação da Rede BrCidades.

Pablo Fernandes é Arquiteto Urbanista, atual Presidente do IAB/AL e faz parte da coordenação da Rede BrCidades Maceió.


[1]      https://www.gov.br/planejamento/pt-br/assuntos/plano-plurianual-ppa

[2]      https://www.cartacapital.com.br/blogs/br-cidades/inclusao-bem-estar-e-direito-a-cidade-a-agenda-municipal-progressista-para-2020/

[3]https://jornalggn.com.br/cidades/a-rede-publica-que-pode-transformar-o-brasil/

[4] www.brcidades.org

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

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Também cabe a nós compreender como se materializa nas cidades a desigualdades de classe, raça e gênero. Isto para sabermos ouvir as vozes dos personagens que entram em cena e protagonizam um novo ciclo de lutas

1 Comentário

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  1. São propostas lindas que assim que implementadas, um novo governo deixa perecer.
    A pergunta que fica é: governo democráticamente eleito é isso mesmo, pode ser descomprometido? Se sim, onde fica o interesse do povo? Como evitar que os benefícios sociais e infraestrutura sejam destruidas, ignoradas ou deliberadamente degradadas. Tudo o que se propõe muitos governos já fizeram e já foi abandonado, destruido ou corrompido por administrações posteriores.

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