As cores da Terra. II. Biomas marinhos e a produção primária global, por Felipe Costa

Levando em conta as duas variáveis – distância em relação ao litoral e profundidade –, é possível identificar cinco biomas marinhos.

As cores da Terra. II. Biomas marinhos e a produção primária global.

Por Felipe A. P. L. Costa [*].

1. VIDA NOS OCEANOS.

A maior parte (~71%) da superfície do globo, como foi dito no início deste capítulo, está ocupada pelos oceanos. Apesar disso, a produção primária líquida (PPL) dos biomas marinhos responde por apenas 32% da produção global [1]. Esse aparente paradoxo se deve ao fato de que a produtividade terrestre é, em média, bem superior à produtividade marinha (ver a figura que acompanha este artigo).

Enquanto a água é o fator limitante mais comum em sistemas terrestres, a produtividade marinha é limitada por outros fatores, em especial a disponibilidade de nutrientes e a luminosidade.

Em linhas gerais, portanto, temos dois grandes gradientes. A saber: (1) A concentração de nutrientes diminui à medida que nos afastamos do litoral; e (2) A luminosidade diminui à medida que nos dirigimos para o fundo do mar.

Por que isso? No primeiro caso, porque boa parte do material dissolvido na água, sobretudo as partículas em suspensão, tende a se precipitar, acumulando-se no assoalho oceânico. No segundo caso, porque os raios de luz vão sendo absorvidos à medida que penetram na coluna d’água [2].

1.1. Cadeias alimentares.

Os dois gradientes referidos acima tornam o fundo do mar um hábitat, digamos, ambíguo. Trata-se de um lugar rico em nutrientes e, ao mesmo tempo, desprovido de luz. (Entre outras coisas, claro, o fundo do mar é também um lugar altamente pressurizado – para detalhes e considerações adicionais, ver referências citadas em [2].)

Na ausência de luz, como nós vimos em outro lugar, não há fototrofia [3]. O que significa dizer que não há como a luz – a principal fonte de energia em sistemas terrestres – ser usada na síntese de compostos energéticos (e.g., glicose). Ora, se não há síntese local, a vida nas profundezas do mar depende da chegada de compostos previamente sintetizados em outro lugar, a exemplo do que se passa no interior de cavernas.

No caso das comunidades bentônicas de mar profundo (ditas abissais), o papel de destaque cabe à chuva de detritos. Trocando em miúdos, a vida nas profundezas depende da precipitação de matéria orgânica produzida na zona eufótica, milhares de metros acima [4]. Isso se dá principalmente na forma de material particulado.

O contraste com os sistemas terrestres não poderia ser mais flagrante. Afinal, como bem sabemos, a base das cadeias alimentares terrestres são as plantas fotossintetizantes. No caso dos ecossistemas bentônicos, entretanto, a base das cadeias alimentares é ocupada por organismos detritívoros, notadamente animais que se alimentam de cadáveres, dejetos e do material particulado vindo de cima.

2. BIOMAS MARINHOS.

Levando em conta as duas variáveis referidas antes – distância em relação ao litoral e profundidade –, é possível identificar cinco biomas marinhos. Vamos descrevê-los brevemente.

2.1. Bioma do litoral.

O bioma do litoral ou b. costeiro (notadamente costões rochosos ou arenosos) se caracteriza pela violência física provocada pelo movimento incessante das ondas. O sobe e desce diário das marés (ver o capítulo anterior) implica em um padrão diário de oscilação, o que significa dizer que as condições de vida (e.g., temperatura) e a disponibilidade dos recursos (e.g., luz e nutrientes) mudam drasticamente ao longo do dia. Ecossistemas que prosperam no litoral são em geral sustentados por produtores que vivem enraizados no fundo (e.g., algas macroscópicas).

2.2. Bioma da plataforma continental.

O bioma da plataforma continental ou b. nerítico ocupa as bordas oceânicas que margeiam os continentes. Já não sofre tanto os efeitos físicos das ondas e marés, mas ainda é afetado pelas descargas de nutrientes que chegam com a água dos rios. Algas macroscópicas subaquáticas presas ao fundo costumam prosperar nesses hábitats. Porém, como o alcance dos raios de luz diminui com a distância da costa, a depender da topografia do fundo, o bioma nerítico não costuma avançar muito em direção ao alto-mar. Nas palavras de Lowe-McConnell (1998, p. 219): “A plataforma continental pode ter mais de 100 km de largura, decaindo gradualmente até cerca de 100 m de profundidade antes de se tornar bastante íngreme e mergulhar em águas profundas”. Cabe observar que a natureza do fundo (e.g., lodo mole, areia, rochas duras ou coral) tem papel de destaque na definição do tipo de comunidade que prospera em diferentes trechos da plataforma.

Cabe aqui uma observação a respeito da cor da água. Em razão da qual podemos falar em dois tipos de mares, o verde e o azul. O primeiro coincide com o bioma da plataforma continental, onde prosperam seres fotossintetizantes macroscópicos. O segundo é o alto-mar, desprovido de seres fotossintetizantes enraizados e onde a produção primária depende da presença de um fitoplâncton flutuante. Embora a produção do alto-mar (mar ou oceano azul), em termos absolutos, seja maior, a produtividade do mar verde (litoral e plataforma continental) é bem superior (ver a figura que acompanha este artigo).

2.3. Bioma de alto-mar.

O bioma de alto-mar ou b. pelágico abrange a maior parte dos oceanos, ocupando tudo aquilo que está além dos domínios da plataforma continental. É o maior de todos os biomas do planeta. Mas é também o bioma marinho menos produtivo [5]. As comunidades que vivem nas camadas superiores dependem da presença do fitoplâncton (e.g., algas e bactérias fotossintetizantes). Por sua vez, as que vivem nas profundezas dependem da chegada dos detritos vindos de cima [6].

De todas as regiões oceânicas, o fundo do mar é de longe a menos conhecida e a que mais suscita dúvidas e interrogações. Não surpreende saber que as pesquisas de campo com frequência nos revelam novidades (e.g., a maioria das espécies presentes em amostras extraídas do assoalho oceânico é desconhecida pela ciência).

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FIGURA. – Produção primária global. A figura que acompanha este artigo mostra a produção primária líquida anual (PPL) dos principais biomas (terrestres e aquáticos), além das terras cultivadas. (PPL é definida aqui como a quantidade de biomassa seca acumulada ao final de um ano.) A área ocupada está expressa em milhões de quilômetros quadrados e a produção primária, em gigatoneladas, Gt (1 Gt = 109 t). A produtividade de cada bioma (em g m–2 ano–1) pode ser calculada como (PPL / área) × 1.000. (Estimativas extraídas de Whittaker & Likens 1975 [7].)

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2.4. Bioma dos recifes de coral.

O bioma dos recifes de coral se caracteriza pela presença de estruturas físicas emergentes – notadamente uma barreira de coral, cujas camadas vivas estão a crescer sobre um amontoado de corais mortos. A julgar pelo que escreveu Lowe-McConnell (1999, p. 185), os corais podem ser arranjados em três categorias:

“Os recifes de coral são de três tipos principais: (1) recifes de barreira ao longo dos continentes, mais expressivos ao longo das costas orientais; (2) recifes de franja, em volta das ilhas; e (3) atóis, anéis quebrados de recifes e ilhas em volta de uma lagoa central.”

Algas fotossintetizantes colonizam e se estabelecem nesse substrato. Muitas algas microscópicas prosperam como parceiros mutualistas dentro do corpo dos corais. Elas formam assim a base de umas das mais ricas, diversificadas e produtivas teias alimentares que se conhece. Nas palavras de Longhurst & Pauly (2007, p. 153) [8]:

“[H]á uma razoável concordância de que os níveis de produção primária nos recifes podem ser muito altos. Um valor médio de cerca de 7 g C m–2 dia–1 […] pode ser esperado e uma amplitude de cerca de 1,5-14,0 g C m–2 dia–1 engloba a maioria das estimativas, que são cerca de uma a duas ordens de magnitude superiores ao daquelas esperadas para as águas que circundam os recifes, podendo ser comparadas com os maiores níveis de fixação de carbono dos ecossistemas terrestres.”

Recifes de coral são encontrados em latitudes tropicais ou subtropicais, em todos os oceanos. Crescem em geral dentro dos limites da plataforma continental, mas apenas em mares de água transparente, longe da turbidez provocada pelas descargas fluviais. Ainda segundo Lowe-McConnell (1999, p. 185):

“O Indo-Pacífico é particularmente rico em corais e recifes, especialmente no arquipélago Indo-australiano, na Malásia, no Sri Lanka, em Madagascar, e na orla do oceano Índico e nas ilhas do Pacífico ocidental. A Grande Barreira de Recifes australiana é uma série intermitente de recifes e bancos insulares que se estendem por 1.900 km ao largo da costa norte de Queensland até a Nova Guiné. Outro recife costeiro importante situa-se ao largo da costa da África Oriental e no Mar Vermelho. No Atlântico ocidental, recifes e bancos insulares se estendem por 200 km em direção sul a partir do Iucatã na América Central, e muitas ilhas do Caribe são margeadas por recifes de coral.”

2.5. Bioma de ressurgência.

O bioma de ressurgência se caracteriza por estar associado à presença de zonas de ressurgência (leia-se: regiões do mar onde os materiais acumulados no fundo são periodicamente bombeados para as camadas superiores) [9]. O movimento ascendente da água costuma ser induzido pelo choque de correntes oceânicas contra a linha da costa, embora, às vezes, também possa ser induzido pelo vento. Nos dois casos, o volume de água que é deslocado horizontalmente vem a ser substituído por um volume equivalente vindo das profundezas. A água que vem do fundo é normalmente mais fria e mais rica em nutrientes.

Esses fluxos de nutrientes abastecem comunidades ecológicas ricas e variadas. Assim é que algumas das regiões pesqueiras mais produtivas do mundo (e.g., o litoral do Peru) são zonas de ressurgência costeira.

3. CODA.

Os seres vivos – incluindo, claro, os seres humanos – não subsistem muito tempo sem uma fonte externa de energia. Para a maioria dos organismos, a radiação solar constitui (direta ou indiretamente) essa fonte de energia.

A quantidade de radiação que banha a Terra é gigantesca. No entanto, apenas uma fração disso é capturada e armazenada como energia útil pelos organismos fotossintetizantes, notadamente na forma de glicose e derivados. Há exceções, claro. Para certos micro-organismos que vivem no interior do solo, por exemplo, a energia que necessitam é obtida do calor que emana do núcleo da Terra.

Em linhas gerais, a produtividade primária de um bioma (leia-se: produção por unidade de área ou volume) pode ser vista como a produtividade média dos inúmeros ecossistemas que o integram. Cada ecossistema tipicamente orbita em torno de alguns produtores, notadamente organismos autotróficos que sintetizam compostos orgânicos.

A produtividade exibe muita variação, a depender do lugar e do momento. Em âmbito planetário, porém, podemos concluir dizendo que a produtividade média de todos os biomas referidos neste livro (ver aqui e aqui) varia ao longo de uma escala que abrange ao menos três ordens de magnitude (ver a figura que acompanha este artigo): desde algo como 2,9 g de matéria seca fixada por metro quadrado por ano (desertos extremos) até algo como 3.000 g m–2 ano–1 (pântanos e afins).

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NOTAS.

[*] O presente artigo foi extraído e adaptado do livro A força do conhecimento & outros ensaios: Um convite à ciência (em processo de finalização). Outros trechos da obra já foram anteriormente divulgados neste GGN – ver os artigos Livros, lentes & afins; Por que a Terra é esférica?; Revolução Agrícola, a mãe de todas as revoluções; O que é cultural, afinal?; Subindo uma rampa em espiral; Quem quer ser um cientista?; Finda a lenha, eis o carvão: Como foi mesmo que entramos nessa enrascada?; Do que é feito o Universo?; A terceira via: Algumas notas sobre o método científico; As origens da política; Um mapa do Brasil. I. Roraima a inchar, Piauí a murchar?; Combatendo notícias falsas. I. Por que não existem fotos da Via Láctea vista de fora?; Um mapa do Brasil. II. Onde estão os brasileiros?; e As cores da Terra. I. Biomas de água doce e arquitetura animal.

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[1] Dois comentários. Primeiro. Embora os continentes ocupem apenas 29% da superfície do planeta, a produção primária terrestre responde por 68% da produção global. Esse contraste se deve, em linhas gerais, ao fato de o alto-mar ser extremamente improdutivo. A razão é relativamente simples: o bioma ocupa uma área enorme, mas a biomassa total produzida é relativamente pequena.

Segundo. Metade da radiação solar que banha a Terra todos os dias é radiação luminosa, o restante é radiação infravermelha e ultravioleta. De toda a energia luminosa que atinge os seres fotossintetizantes (e.g., plantas verdes, diferentes tipos de algas e certas bactérias), não mais do que 1-2% é fixada como energia química durante a fotossíntese. Os produtos da fotossíntese (glicose e derivados) constituem a produção primária bruta (PPB). Como uma parte da PPB é utilizada na manutenção de células e tecidos, falamos então em produção primária líquida (PPL). Em símbolos, teríamos: PPL = PPB – M, onde M indica os custos de manutenção (respiração etc.).

[2] A concentração de nutrientes em amostras de água coletadas em alto-mar é várias ordens de grandeza inferior à concentração dos mesmos nutrientes em amostras de solo, mesmo quando a comparação envolve solos empobrecidos. Outra coisa: Em profundidades superiores a 100-500 m, a depender da transparência da água, a escuridão é total. Sabendo que a profundidade média dos oceanos é de 3.796 m (ver cap. 4), significa dizer que mais de 99% da água dos oceanos vive em escuridão perpétua – um cálculo (conservador) a ser feito aqui seria: 100 × (5003 / 3.7963). Para uma introdução ao estudo das características físicas dos oceanos, ver Schmiegelow (2004) e Garrison (2010).

[3] Amplamente disseminada entre plantas, algas e certos micro-organismos, a fototrofia é a utilização da luz como fonte de energia. Muitos fototróficos, ditos autotróficos, utilizam o CO2 como a sua única fonte de carbono. Algumas bactérias, no entanto, ditas foto-heterotróficas, utilizam moléculas orgânicas como fonte de carbono – para detalhes, ver Madigan et al. (2010).

[4] Para detalhes e referências, ver Smith et al. (2008).

[5] Em termos de área superficial, o que estamos a chamar aqui de bioma de alto-mar é o maior de todos os biomas, ocupando sozinho mais de 50% da superfície do planeta (ver Smith et al. 2008). Em termos de produtividade, no entanto, o alto-mar só não é menos produtivo que os desertos (ver a tabela que acompanha este artigo). Os mais produtivos são (pela ordem): pântanos e afins, recifes de coral e florestas ombrófilas.

[6] Entre a superfície e o fundo, há uma intrincada variedade de comunidades. Uma parte vive do consumo de presas microscópicas, outra depende da exploração de presas que vivem sobre ou no interior do assoalho oceânico.

[7] Para estimativas mais recentes, porém muito parecidas, ver Geider et al. (2001). Para uma avaliação da apropriação humana dos produtos da fotossíntese, ver Pimm (2005).

[8] Cada 1 g C m–2 dia–1 corresponderia a algo como 2,5 g de matéria orgânica (glicose) produzida por metro quadrado por dia. Em uma escala anual, isso equivaleria a quase 913 g m–2 ano–1.

[9] Há uma pequena zona de ressurgência na região de Cabo Frio (RJ), ver Schmiegelow (2004). Para detalhes adicionais sobre a circulação oceânica, ver ainda Longhurst & Pauly (2007) e Garrison (2010).

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REFERÊNCIAS CITADAS.

+ GARRISON, T. 2010 [2006]. Fundamentos de oceanografia, 4ª ed. SP, Cengage.

+ GEIDER, RJ & mais 20. 2001. Primary productivity of planet earth: biological determinants and physical constraints in terrestrial and aquatic habitats. Global Change Biology 7: 849-82.

+ LONGHURST, AR & PAULY, D. 2007 [1987]. Ecologia dos oceanos tropicais. SP, Edusp.

+ LOWE-McCONNELL, RH. 1999 [1987]. Estudos ecológicos de comunidades de peixes tropicais. SP, Edusp.

+ MADIGAN, MT & mais 3. 2010 [2009]. Microbiologia de Brock, 12ª ed. P Alegre, Artmed.

+ PIMM, SL. 2005 [2001]. Terras da Terra. Londrina, Planta.

+ SCHMIEGELOW, JMM. 2004. O planeta azul. RJ, Interciência.

+ SMITH, CR & mais 4. 2008. Abyssal food limitation, ecosystem structure and climate change. Trends in Ecology and Evolution 23: 518-28.

+ WHITTAKER, RH & LIKENS, GE. 1975. The biosphere and man. In: RH Whittaker & GE Likens, eds. Primary productivity of the biosphere. Berlim, Springer.

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