As cores da Terra. I. Biomas de água doce e arquitetura animal, por Felipe Costa

Há uma variedade de hábitats de águas doce, incluindo rios, córregos, lagos, lagoas e poças temporárias.

As cores da Terra. I. Biomas de água doce e arquitetura animal.

Por Felipe A. P. L. Costa [*].

1. O CONCEITO DE BIOMA.

O conceito original de bioma, como nós vimos anteriormente (ver aqui), foi criado para lidar com agrupamentos de comunidades terrestres [1]. Não há, porém, qualquer restrição definitiva que impeça o uso do conceito no contexto dos sistemas aquáticos. O pano de fundo é o mesmo: comunidades aquáticas distantes ou desconectadas podem exibir profundas semelhanças estruturais, a depender da maior ou menor relevância dos casos de evolução convergente [2].

Ora, se a convergência evolutiva não é uma exclusividade dos ecossistemas terrestres, como de fato não o é, não há porque deixar de reunir sob um mesmo rótulo aqueles hábitats aquáticos que compartilham de características estruturais semelhantes. Adotei neste livro um sistema de classificação que reconhece dois tipos básicos de biomas de água doce e cinco de biomas marinhos [3]. Vamos examiná-los rapidamente.

2. BIOMAS DE ÁGUA DOCE.

Os dois biomas de água doce são referidos aqui como o lótico e o lêntico.

2.1. O bioma lótico.

O bioma lótico (ou b. de água corrente) se caracteriza por um fluxo permanente da água. É o caso de rios e córregos. Corpos de água corrente tipicamente nascem em regiões de relevo montanhoso e fluem desde o nascedouro até regiões mais baixas. O destino último é o oceano, ainda que essas massas de água possam permanecer algum tempo estacionadas em lagos e lagoas. A velocidade do fluxo varia de acordo com a topografia do terreno e, em parte, de acordo também com o volume de água envolvido. Várias características (físicas e biológicas) dos ecossistemas fluviais são determinadas pela velocidade do fluxo. É por isso que a biota (plantas animais etc.) que vive em águas rápidas costuma diferir tanto da que vive em águas lentas (ver a figura que acompanha este artigo).

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FIGURA. Arquitetura animal. – A figura que acompanha este artigo ilustra os tipos de abrigos (ou curubixás, algo como ‘casa de criança’, em tupi) construídos pelas larvas de quatro espécies de tricópteros. (No artigo original, duas dessas espécies foram identificadas [cito o gênero] e duas, não; todas elas, no entanto, pertencem à mesma família, Limnephilidae). As larvas desses insetos, cujo aspecto geral do corpo pode lembrar uma lagarta de mariposa ou borboleta, vivem exclusivamente em hábitats de água doce. Os materiais usados na construção do abrigo são unidos com seda ou são cimentados. Linha superior. Larvas que vivem em córregos de águas lentas. Abrigos construídos a partir de fragmentos de origem vegetal (gravetos etc.) e que são dispostos longitudinal (fig. 1) ou transversalmente (fig. 3). Linha inferior. Larvas que vivem em córregos de águas rápidas. Abrigos construídos a partir de grãos de areia de tamanho médio (fig. 6) ou pequeno (fig. 8). Comparando os dois exemplos de cima com os dois de baixo, é notável como os abrigos das espécies de águas rápidas são desprovidos de arestas, sendo assim mais hidrodinâmicos. (Imagens extraídas de Dodds & Hisaw 1925. Para uma introdução ao estudo da arquitetura animal, ver Hansell 1984.)

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2.2. O bioma lêntico.

O bioma lêntico (ou b. de águas paradas) se caracteriza pela lentidão na renovação do estoque de água. Enquanto a renovação da água de um córrego ou um rio é uma questão de horas, dias ou semanas, em um lago profundo o processo todo pode levar anos ou décadas. As características dos ecossistemas de um bioma lêntico dependem muito da profundidade. Poças de água pequenas e rasas, por exemplo, tendem a ser ocupados por vegetação lacustre (e.g., plantas que vivem enraizadas no fundo), enquanto os corpos maiores e mais profundos (lagos e lagoas, digamos) tendem a ser ocupados por micro-organismos que vivem a flutuar nas camadas superficiais do corpo d’água.

3. CODA.

Há uma variedade de hábitats de águas doce, incluindo rios, córregos, lagos, lagoas e poças temporárias. A soma das áreas ocupadas por todos esses hábitats lacustres equivale a menos de 3% da superfície do planeta. Além de hábitats aquáticos propriamente ditos, há uma variedade de hábitats de transição entre os corpos de água doce e a terra firme. A soma das áreas ocupadas por esses hábitats (ditos palustres) corresponde a cerca de 2% da área superficial do planeta.

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NOTAS.

[*] O presente artigo foi extraído e adaptado do livro A força do conhecimento & outros ensaios: Um convite à ciência (em processo de finalização). Outros trechos da obra já foram anteriormente divulgados neste GGN – ver os artigos Livros, lentes & afins; Por que a Terra é esférica?; Revolução Agrícola, a mãe de todas as revoluções; O que é cultural, afinal?; Subindo uma rampa em espiral; Quem quer ser um cientista?; Finda a lenha, eis o carvão: Como foi mesmo que entramos nessa enrascada?; Do que é feito o Universo?; A terceira via: Algumas notas sobre o método científico; As origens da política; Um mapa do Brasil. I. Roraima a inchar, Piauí a murchar?; Combatendo notícias falsas. I. Por que não existem fotos da Via Láctea vista de fora?; e Um mapa do Brasil. II. Onde estão os brasileiros?

Sobre como adquirir os quatro livros anteriores do autor, ver o artigo Ciência e poesia em quatro volumes. Para adquirir algum volume específico ou para mais informações, faça contato com o autor pelo endereço [email protected]. Para conhecer outros artigos ou obter amostras dos livros anteriores, ver aqui.

[1] A descoberta de que blocos de vegetação de aspecto semelhante tendem a ocupar a mesma faixa latitudinal foi feita século atrás, bem antes de o planeta ser esquadrinhado do espaço por satélites artificiais. Um pioneiro nesse campo do conhecimento foi Alexander von Humboldt (1769-1859), autor de Quadros da natureza (1808). Sobre a vida e obra do naturalista alemão, ver Wulf (2016).

[2] Diz-se que há evolução convergente quando linhagens não aparentadas desenvolvem soluções semelhantes para pressões seletivas igualmente semelhantes – para detalhes, ver Costa (2019).

[3] Para detalhes e discussão, ver McNaughton & Wolf (1984).

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REFERÊNCIAS CITADAS.

+ COSTA, FAPL. 2019. O que é darwinismo. Viçosa, Edição do Autor.

+ DODDS, GS & HISAW, FL. 1925. Ecological studies on aquatic insects. III. Adaptations of caddis-fly larvae to swift streams. Ecology 6: 123-37.

+ HANSELL, MH. 1984. Animal architecture & building behaviour. Londres, Longman.

+ McNAUGHTON, SJ & WOLF, LL. 1984. Ecología general, 2ª ed. Barcelona, Omega.

+ WULF, A. 2016. A invenção da natureza. SP, Crítica.

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Redação

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