Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
[email protected]

A família do século XXI em cacos na série Netflix “Perdidos no Espaço”, por Wilson Ferreira

por Wilson Ferreira

Toda refilmagem revela o espírito de época quando comparada com o original. É também o caso da série Netflix “Perdidos no Espaço” (Lost In Space, 2018), nova versão da série clássica de TV dos anos 1960 – que já contava com um longa-metragem em 1998. Agora os Robinsons não são mais a família nuclear perfeita do sonho americano, mas uma família à beira da separação que tenta reunir os cacos enquanto enfrenta os perigos de um planeta desconhecido. O novo “Perdidos no Espaço” revela o espírito de época do século XXI: o militarismo e a amoralidade do vilão. Além da relação histérica com o objeto do desejo, traço psíquico da cultura contemporânea: só voltamos a desejar aquilo que amamos na eminência da sua perda com a morte ou a destruição.

Refilmagens de filmes ou séries são sempre interessantes. Principalmente porque possibilitam um comparativo do “espírito de época”: a maneira como cada produto audiovisual representa o imaginário ou a sensibilidade de cada momento, da sociedade ou do período histórico.

Como o historiador francês Marc Ferro escreveu no livro clássico “Cinema e História”: “o imaginário é tanto história quanto História, mas o cinema, especialmente o cinema de ficção, abre um excelente caminho em direção aos campos da história psicossocial nunca atingidos pela análise dos documentos” (FERRO, Marc, Cinema e História, São Paulo: Paz e Terra, 1992, p.12).

A nova versão da série clássica de TV Perdidos no Espaço (1965-68), a produção Netflix Lost in Space (2018), é mais refilmagem. Até então, contávamos com o longa-metragem Lost in Space (1998) com William Hurt e Gary Oldman, como o vilão Dr. Smith e dirigido por Stephen Hopkins.

Nas três versões a estrutura do argumento continua a mesma: uma catástrofe natural ameaça a humanidade (respectivamente, superpopulação, poluição e um cometa), obrigando-a a buscar um novo planeta para colonizá-lo. Uma família é enviada (ou várias, como na série Netflix), um robô com mal funcionamento atrapalha tudo, sempre tendo por trás um vilão, o famigerado Dr. Smith que planeja sabotar a missão – na série atual, substituído por uma mulher vigarista e golpista.

Mas as semelhanças param aí. O plot narrativo central sempre foi a Família Robson, uma típica família nuclear – os pais (John e Maureen) e seus três filhos (Penny, Judy e Will). Mas o que é marcante nessas três versões é como a família vai aos poucos se desfazendo. Nos anos 1960 tínhamos uma família coesa e unida: os pais se amavam e os irmãos eram solidários. No filme de 1998 encontramos problemas de autoridade e confiança que estremecem a ordem familiar. 

“Perdidos no Espaço” nos anos 1960, 1990 e 2010

Uma família em cacos

E na série atual, encontramos os Robinsons em cacos: os pais à ponto da separação e os filhos ressentidos pelo eminente divórcio. Os filhos ensimesmados e distantes uns com os outros, a mãe, uma brilhante cientista, tenta sem sucesso manter o astral da família. E o pai, um militar, prefere ficar no front de combate do que viver a rotina familiar.

Por isso, parece até que os inúmeros perigos que os Robinson enfrentam (geleiras que desabam, animais selvagens, tempestades imprevisíveis ou enguias que consomem o combustível da Júpiter 2) na série atual são meros pretextos para criar situações que permitam a família voltar a se unir e juntar os cacos.

Há em Lost In Space um pressuposto paradoxal e pós-moderno para o gênero ficção científica atual: a ausência de futuro ou da perspectiva de conhecer novos mundos – “indo onde nenhum homem jamais esteve”, como se dizia na célebre abertura de outra série clássica, Jornada nas Estrelas.

Famílias inteiras são levadas para colonizar um planeta em Alpha Centauri. Mas os novos mundos, galáxias e seres na imensidão do universo não são capazes de tocar ou transformar o espírito humano: são apenas novos cenários para as velhas picuinhas e dramas humanos – egoísmo, indiferença, traição etc. Todos parecem fugir de algo que aparentemente deixaram na Terra, mas sem sucesso. O mal acompanha a humanidade, mesmo nos mundos distantes.

Como é dito em uma marcante linha de diálogo do quarto episódio, que parece sintetizar o espírito de época de Lost In Space: “O problema com a sua colônia são as pessoas. Viajam milhões de quilômetros no espaço e acham que serão diferentes. Não importa do que fogem da Terra… elas estão trazendo junto”.

 

A Série

Lost in Space da Netflix tem a marca do militarizado século XXI, da política externa dos EUA do combate ao terrorismo: a família Robinson foi marcada pela ausência do pai, o militar John Robinson (Toby Stephens), casada com a engenheira aeroespacial Maureen Robinson (Molly Parker) as filhas Judy (Taylor Russel), Penny (Mina Sundwall) e filho mais jovem Will (Maxwell Jenkins).

Estamos 30 anos no futuro, um salto que não requer tanto esforço da imaginação dos roteiristas. Afinal, se na época da série original Neil Armstrong ainda daria o pequeno passo na Lua, agora o empresário Elon Musk fala em colônias marcianas até 2040. 

E a série ainda conta com um grande orçamento, o que se reflete na tela – tudo, dos figurinos ao design das naves e muitos efeitos em CGI, demonstra que o projeto foi meticulosamente elaborado e com muito dinheiro disponível.

Nesse futuro próximo, a Terra está em crise com várias guerras, conflitos e, para completar, a “estrela do Natal” (um cometa) colide com o planeta criando uma espécie de noite eterna e obrigando os humanos a andar com máscaras de gás nas ruas.

 

Em crise conjugal e à beira da separação, Maureen decide partir com os filhos para uma missão de busca de um novo lar em Alpha Centauri, que traga esperança de sobrevivência à humanidade. John Robinson decide, então, seguir com a família para tentar reconquistá-la em um outro mundo. Mas a missão dá errado e a nave Júpiter 2, assim como outras Jupiters que compunham a missão, caem em um planeta desconhecido. 

Um planeta marcado por violentos contrastes de biomas: um inóspito deserto seco e quente pode aparecer repentinamente por trás de imensas geleiras, podendo terminar numa floresta úmida.  Tudo sob ameaças de tempestades inesperadas e exóticos e selvagens animais.

Ao contrário de Perdidos no Espaço 1.0, o robô é de origem alienígena e cultivará uma relação de amizade e fidelidade com Will Robinson – repetindo sempre o bordão do velho robô do passado: “Perigo, Will Robinson!”.

E dessa vez, o Dr. Smith será uma mulher (Parkey Poser). Mas com as mesmas maquinações, traições e a covardia do velho Dr. Smith.

O vilão Amoral

É com a Dra. Smith que começamos a perceber o espírito da época atual refletido na série: enquanto no passado o Dr. Smith era o vilão clássico, um sabotador e espião típico da Guerra Fria que pretendia destruir um projeto científico do mundo livre, aqui em 2018 a Dra. Smith é apenas uma sobrevivente: ela trai, põe em risco a vida dos outros, mente e eventualmente até mata. Mas por mera sobrevivência – uma pequena escroque que viveu uma carreira de pequenos crimes e que fugiu da Terra se infiltrando na missão espacial.

 

Típica visão do Mal no século XXI, presente em zumbis, monstros e aliens: não matam por “maldade” (dentro da antiga polaridade certo/errado, moral/imoral) mas pela sobrevivência física – são máquinas amorais de matar. Na personagem Dra. Smith vemos, claro, apenas uma pequena fração do mal amoral desse século. Mas será o suficiente para provocar estragos ao longo da primeira temporada.

>>>>>Continue lendo no Cinegnose>>>>>>>

Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

2 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. Que FUTURÃO hein

    COMENTÁRIOS COM SPOILER: Excelente critíca, vi a pouco tempo esta série, não sabia nada sobre as séries anteriores, mas o que achei muito estranho nesta série, e aqui também em sua crítica, talvez eu esteja errado, me incomodou muito o fato de a todo tempo se focar no centro de tudo na “familia robisons”, quem se identifica com essa familia nos tempos de hoje?, será esse uns dos motivos por que a série não decolou? apesar da referida sepação do casal, trata-se de mais uma familia “tradicional” americana, coisa hoje dificil de se encontrar, ainda mais daki a alguns séculos, mas o que mais me atormentou na verdade, e fico meio assim olhando, será que só eu vejo assim?, foi ver que para sair da catastrofe da terra a úncia coisa que tinham projetado ao londo de anos é que primeiro vc teria que participar de uma familia tradicional, segundo teria que ter muita grana para pagar a nave que ia te levar para o paraiso e por fim, terceiro, teria que passar em um teste, teste este inclusive fraudado pela Mãe Robinson para beneficiar um dos seus filhos, para que pudesse ir junto com eles ao paraiso, retirando a vaga de outro que tinha sido aprovado. Já a vilã da história, advinhem, é pobre, não tem familia tradicional, como ela quer sobreviver ao holocausto cometeu crimes para ingressar na nave, enfim os crimes de fraude da familia Robison são a todo momento justificados durante a série, assim como o são as vezes em que os Robinsons colocam todos em perigo para salvar um dos seus, enfim pessoalmente achei muito infeliz este futuro idealizado pela série, a única coisa criativa que a humanidade pode imaginar é que vc tem que ter uma familia tradicional, ser rico o bastante para poder ter o dinheiro e passar num teste que pode ser fraudado com um simples copiar colar, tudo isso para esta casta milionária fugir numa nave para um paraiso e de quebra deixar os pobres, sem familia na terra para queimar até ranger os dentes e morrer, que futurão hein.

  2. DR SMITH Perdidos no Espaço

    Caro Nassif,

    Daqui de Paris, acompanho seu blog, e me sinto em casa…..

    Gostaria simplesmente de adcionar uma outra visao ao personagem doDr Smith. Tendo acompanhado a serie no Brasil quando jovem, (revê-la  é um grande praze), acredito que uma das caracteristicas atuais do personagem do Dr Smith ( além do fato de ser encarnado pour uma mulher e que mesmo se o antigo Dr Smith nos deixava entrever suas possiveis preferncias sexuais, ele era um homem), a atual mostra sinais evidentes de uma perversao ( no senso lacaniano do termo).

    Uma das caracteristicas de uma estrutura perversa, obviamente ligada à un narcisismo exarcebado, é o fato que so nos damos conta ( na clinica), somente no apres-coup, quando ja fomos completamentes’enrolados, ludibriados.

    O fato do feminino se mostrar de tal maneira, nos leva à pensar na questao tanto religiosa, como de genero. Se por um lado esta “mulher solteira’ é completamente a-moral, a Sr Robinson, também nao fica longe ao trapessear e forjar um resultado de um dos testes do filho, para que eles possam juntos partirem para a viajem. Acredito que nao valha nem a pena falarmos desta ‘manobra’ e assuas consequencias na questao Edipiana, e a ausencia de castraçao desta ‘mamae’..; Rs Rs Rs

    Um grande abraço, repleto de expectativas que o nosso Brasil ache um melhor caminho.;;;

    LiaBatista Valseth

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador