Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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A luz que nos cega no filme “El Topo”, de Jodorowsky

Um filme cercado de lendas, algumas verdadeiras. John Lennon exigiu que a Apple comprasse seus direitos para exibi-lo em Nova York. Em pouco tempo o filme tornou-se um Cult nas sessões de meia-noite no circuito underground. “El Topo” (aka “The Mole”, 1970), uma produção mexicana do diretor franco-chileno Alejandro Jodorowsky narra em estilo “western spaghetti” de Sérgio Leone a jornada espiritual de um pistoleiro em desoladas paisagens repletas de alusões e alegorias a Jung, Freud, misticismo, esoterismo, filosofias e mitologias bíblicas. Cada plano, cena ou detalhe é um desafio para o espectador tentar resolver os enigmas que se acumulam em cada imagem baseada em fragmentos de textos antigos, fábulas e contos zen. O diretor parece querer que tanto o protagonista quanto o espectador tenham o mesmo destino da toupeira: à procura do Sol ela cava até a superfície. Quando vê o Sol, ela fica cega.

 

Um homem trajando negro da cabeça aos pés em pleno deserto incandescente cavalga um cavalo negro carregando um guarda-chuva sobre sua cabeça e trazendo atrás na sela um menino nu, exceto por um chapéu de cowboy. O homem para, amarra o cavalo em um poste solitário na areia e vemos nas mãos do menino um urso de pelúcia e uma fotografia em um porta-retrato. O homem diz: “hoje você faz sete anos. Você agora é um homem. Enterre seu primeiro brinquedo e o retrato da sua mãe”. Ele pega uma flauta e toca enquanto o menino segue suas instruções.  Para o espectador, essa cena de abertura será a mais normal e compreensível de todo o filme.

“El Topo” do franco-chileno diretor Alejandro Jodorowsky é cercado de histórias e lendas: suas técnicas de filmagem não eram o que poderia se dizer ortodoxas – normalmente utilizava nativos da região da filmagem como atores e obrigava-os a se submeter a experiências de esgotamento físico diante das câmeras. Rumores dizem que fazia os atores experimentarem o sangue um do outro e de expô-los a violência real. Segundo consta, o próprio Jodorowsky matou os 300 coelhos com as próprias mãos para uma cena do filme.

John Lennon viu o filme e aconselhou o gerente Allen Klein da gravadora Apple a comprar os direitos e exibiu “El Topo” em Nova York. O filme tornou-se elemento permanente da cena hippie nas sessões de meia-noite por toda a década dos anos 1970 naquela cidade, tornando-se um dos favoritos da geração emergente de atores como Dennis Hooper e Jack Nicholson. Tanto que Dennis Hooper dirigiu o filme “The Last Movie” (1971) no Peru inspirado nos temas místicos e antropológicos de Jodorowsky.

O Filme

O filme é sobre El Topo (Alejandro Jodorowsky), uma figura inteiramente vestida de preto carregando seu filho nu no cavalo e que usa sua sobrenatural habilidade com o revólver para libertar um local sob o domínio de um coronel sádico. Após a vitória, deixa seu filho para ser cuidado por monges em uma missão católica e parte com uma mulher. Ela o convence a se enveredar no deserto em busca de quatro grandes mestres para derrotá-los em duelos. Cada um deles representa uma religião particular ou filosofia. Através das suas habilidades, trapaças ou pura sorte, El Topo consegue derrotá-los para depois ser traído por essa mulher que o atinge com diversos tiros.

Quase morto, El Topo é carregado por um grupo de pessoas aleijadas e deformadas que o leva a uma caverna onde habitam em uma estranha sociedade de mutantes. Lá, El Topo torna-se um pacificista e pedem a ele que os ajude a construir um túnel para que os leve de volta a uma cidade que agora é dominada por uma elite de fascistas e religiosos degenerados.

Essa alucinada narrativa é filmada em um estilo do chamado western spaghetti de Sérgio Leone. Tanto o western clássico como o italiano já exploravam personagens míticos como pistoleiros sobrenaturalmente precisos, paisagens desérticas e oniricamente desoladas, locais onde os espectadores poderiam esperar confrontos entre semideuses e mitos. Jodorowsky se apropria dessa mitologia para explodi-la em milhares de pedaços transformando o “velho oeste” em uma terra atemporal repleta de experiências místicas e psicodélicas.

A armadilha de Jodorowsky

Nesse quebra-cabeça místico, simbólico e religioso estão dispersos diversos elementos cristãos, budistas, zen, magia negra, paganismo etc. Tudo no meio de diversas sequências sangrentas de assassinatos, torturas, trapaças, genocídios, enforcamentos e perversões sexuais. Mas apesar disso, o espectador não tem a impressão de estar diante de um filme que explora gratuitamente a violência. Jodorowsky consegue manter a violência distanciada e aceita, assim como os massacres que formam os cenários dos contos bíblicos do Velho Testamento.

“El Topo” é uma sucessão de personagens, alegorias, metáforas onde o espectador avidamente tenta encontrar um significado: um homem sem braços carregando outro homem sem pernas, um mestre guerreiro que luta com uma rede de caçar borboletas, uma igreja onde o ritual consiste em um jogo de roleta-russa com os fiéis, uma estranha mulher que surge do nada na primeira metade do filme como a “anima” junguiana de El Topo etc.

Essa é a armadilha que Jodorowsky arma para aquele espectador que procura significados no labirinto de simbolismos do filme: o diretor parece não querer ensinar lições filosóficas, mas em construir efeitos misteriosos no espectador com essa sucessão de estranhas imagens. “El Topo” é uma narrativa fílmica sem dogma, baseada em fragmentos de textos antigos, fábulas e contos zen. Jodorowsky parece mais interessado em criar uma linguagem onírica, sem significados, apenas fazer um jogo de metáforas e metonímias (na linguagem freudiana dos sonhos, condensações e deslocamentos) onde o gozo estético se confunde com a experiência mística e lisérgica.

Um acerto de contas com o Ocidente – Spoilers à frente

A utilização frenética de alegorias e simbolismos em cada plano ou detalhe das sequências (nas ações, objetos, personagens, situações, etc.) de “El Topo” parecem expressar a ansiedade e urgência de Jodorowsky em fazer uma espécie de acerto de contas com repertório dos temas e mitos Ocidentais. Esse parece ser o único significado do filme: o fato dele não ter significado, de ser um grande pastiche. Jodorowsky parece sinalizar esse propósito com a metáfora de “El Topo” (A Toupeira) explicada logo no início do filme: “A toupeira é um animal que cava túneis no subsolo. À procura de sol ela às vezes sobe à superfície. Quando vê o Sol ela fica cega”.

Parece que em todo filme, Jodorowsky pretende cavar esse túnel em meio a uma massa de signos míticos, esotéricos, religiosos. Assim como a sociedade de seres mutantes pedem ajuda a El Topo para cavar um túnel para fugir da caverna e, na superfície, encontrar a morte, de forma parecida Jodorowsky tenta cavar e encontrar para além das toneladas de símbolos e alegorias: encontrar a Verdade, a Iluminação, aquilo que realmente é e não o apenas representado pelos mitos, filosofias e religiões. A auto-imolação final do protagonista parece ser o mesmo destino da cegueira encontrado pela toupeira: a perplexidade por encontrar o vazio, o deserto e a violência.

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Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

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