Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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A psicanálise de um fantasma em “I Am a Ghost”, por Wilson Ferreira

Talvez o mais difícil não seja morrer, mas despertar do outro lado e ter de se dar conta de que já está morto. Ultrapassar a fronteira entre a vida e a morte pode ser algo tão imperceptível que continuamos do lado de lá a conviver com os antigos traumas e fantasmas que nos atormentaram quando quando éramos vivos. O horror independente “I Am a Ghost (2012)” mostra alguém que ainda não se deu conta de que está preso em algum lugar entre a vida e a morte, e continua repetindo seus antigos hábitos como nada tivesse acontecido. Uma voz tenta despertá-la, fazendo do filme um surpreendente encontro entre Espiritismo e Psicanálise. 

“Ninguém precisa de um quarto para ser assombrado. Não precisa ser uma casa. O cérebro tem corredores suficientes que ultrapassam a matéria”. Essa epígrafe de um poema de Emily Dickinson abre I Am a Ghost e dá o tom de um filme que pode ser inicialmente descrito como o cruzamento entre o argumento de Os Outros com Nicole Kidman com o tema e a atmosfera visual de O Iluminado de Kubrick.

Com um baixíssimo orçamento de 10 mil dólares, esse filme independente de H.P. Mendoza segue a tradição de filmes como A Passagem (Stay, 2005) e O Terceiro Olho (The Eye Inside, 2004) onde põe em questão aquela expressão que dizemos quando recebemos a notícia da morte de alguém: “partiu dessa para a melhor!”.

Enquanto em Os Outros, A Passagem O Terceiro Olho mostram a experiência pós-morte com uma fotografia estilizada com caprichados planos de câmera, I Am a Ghost é duro e cru como um soco no estômago: talvez a morte não seja uma libertação, mas a continuação de todas as mazelas que experimentamos em vida. 

A morte não é apenas uma fenômeno físico, morreu e acabou. Você está livre! I Am a Ghost nos lembra que o morrer pode ser muito mais complicado: a dor e os fantasmas interiores podem continuar nos perseguindo, criando uma sobrevida tão prisioneira quanto a nossa, a dos vivos.

O horror “slow burn”

I Am a Ghost é a melhor definição do atual subgênero de horror “slow burn”: numa casa estilo vitoriano acompanhamos as tarefas tediosas diárias de Emily. Nos primeiros quinze minutos acompanhamos rituais diários que vão se acumulando, repetindo-se e se interpenetrando em cenas aleatórias e sutis. Tudo parece normal, mas percebemos que há algo errado e que algo assustador poderá irromper a qualquer momento – a atmosfera gótica de corredores estilo kubrickiano de O Iluminado reforçam ainda mais essa sensação. 

Essa lenta construção compensa quando vemos repentinamente o filme transformar-se em horror inquietante e caótico: “Estou morta!… agora, repita comigo: Eu sou um fantasma! Eu sou um fantasma!”, ouve-se uma voz de procedência misteriosa. Acredite, leitor: isso não é um spoiler, é o início do argumento que atualiza a tradição dos filmes acima citados – dessa vez o protagonista que descobre-se morto terá que enfrentar suas memórias, fantasmas e monstros interiores.

O problema é que nos mundos etéreos como aqueles nos quais entraremos após a morte, essas forças psíquicas ganham força e materializam-se dentro de um ambiente sutil e plástico. Viram entidades que nos perseguem e criam ilusões que nos aprisionam, impedindo que, de fato, morramos. 

Dessa maneira H.P. Mendoza faz um surpreendente cruzamento entre Espiritismo e Psicanálise da maneira mais assustadora possível. Em outras palavras, I Am a Ghost pode ser descrito como uma sessão mediúnica e psicanalítica com um fantasma prisioneiro de si mesmo em um plano etéreo contiguo a esse mundo. 

O Filme

I Am a Ghost é um filme inteiro a partir da perspectiva de um fantasma. A incômoda calma da rotina diária dos quinze minutos iniciais é quebrada quando Emily entra no quarto de sua mãe e ouve a voz desencarnada de uma mulher chamada Sylvia – uma clarividente contratada pela família dos moradores que vivem atualmente naquela casa. Nunca vemos esses personagens, já que o ponto de vista da narrativa é o do mundo etérico. Mas sabemos que a rotina de Emily no outro mundo resulta em involuntários reflexos no mundo dos vivos como portas batendo, sons de passos e coisas caindo.

Percebemos que Emily vive numa espécie de purgatório pós-morte: uma eterna repetição dos afazeres domésticos e o tabu de não pisar no tapete do quarto de sua mãe sobre o qual supostamente teria se matado. Esse eterno loop só é quebrado quando Emily entra no quarto da sua mãe e ouve a voz da clarividente – Emily volta a si como se despertasse de um sonho, reconhece ser um fantasma e procura atender as instruções da médium que pretende guia-la “para a luz”.

Mas algo está dando errado. Por algum motivo no meio processo de diálogo espiritual Emily corre amedrontada, sai do quarto e volta ao seu estado de torpor e à repetição incessante dos rituais diários, tornando-se alheia a sua condição. 

Para a médium Sylvia, somente o reconhecimento da própria entidade assumir-se como um fantasma de alguém que já morreu já seria o suficiente para a libertação daquele purgatório. Mas com Emily tudo é diferente. Por que?

A banalidade da morte

Uma das coisas incomodas em I Am a Ghost é a depressiva banalidade da vida “do outro lado” – tudo parece ser uma mera perpetuação dos problemas da vida encarnada a tal ponto que não sabemos se de fato estamos “vivos” ou “mortos”.

Aqui começa o interessante encontro que o filme promove entre Espiritismo e Psicanálise. Emily é prisioneira dos rastros de suas próprias memórias deixados pelos cômodos da casa. Essa é uma conhecida tese da Parapsicologia sobre a possibilidade de superfícies de objetos ou paredes serem impregnados com energias psíquicas de episódios de alto teor emocional envolvendo traumas, dor, alegria, intenso prazer ou tristeza etc.

 

Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

2 Comentários

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  1. Muito bom!

    Wilson Ferreira sempre nos brinda com textos bons sobre filmes bem interessantes!

    Ainda não vi o I Am a Ghost, mas já imagino que vai complementar  lições que espero ter apreendido com  Coração Satânico:

     

     

    Valeu, Wilson!

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