Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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Em “Branco Sai, Preto Fica” o tempo brasileiro é o eterno retorno, por Wilson Ferreira

por Wilson Ferreira

Em 1986 policiais invadem um baile funk em Ceilândia, cidade-satélite de Brasília, ferindo física e psiquicamente dois homens. Em 2014, um terceiro homem vem do futuro a procura de evidências que ajudem um movimento identitário negro mover uma ação contra o Estado pelos danos daqueles homens no passado. “Branco Sai, Preto Fica” (2014) de Adirley Queirós é uma ousada experimentação em um gênero pouco visitado pelo cinema brasileiro – o filme consegue construir uma espécie de “meta docudrama sci-fi”. Com sua desolação, frieza e aridez, Brasília deixou de ser a utopia modernista de uma possível civilização brasileira para se transformar na perfeita cenografia de filmes distópicos, com uma vantagem: não é preciso computação gráfica. No país do futuro, o tempo é um eterno retorno: se o presente é um apartheid social, o futuro não deixa por menos – a “Vanguarda Cristã” tomou o poder e ameaça o sucesso das investigações. Filme sugerido pelo nosso leitor Paulo Pê.

Marco vanguardista do que seria o símbolo das raízes da civilização brasileira, Brasília tornou-se na verdade um marco distópico. A cinematografia que envolve a capital do Brasil já é extensa, na maioria das vezes protagonizada por personagens que se sentem estrangeiros, alienados e estranhos em um lugar com cenário quase extraterrestre pela frieza e aridez. Algo como o fim da utopia modernista na qual o otimismo do progresso cedeu lugar ao concreto e monumentalidade que parecem aprisionar o indivíduo.

Insolação (2009, o amor e desencontros na condição humana de exílio e prisão), Era uma Vez em Brasília (2016, um prisioneiro intergaláctico é enviado no tempo para matar Juscelino Kubitschek no dia da inauguração de Brasília), O Fim e os Meios (2015, um publicitário carioca vai fazer o marketing de um candidato e conhecerá os bastidores políticos da cidade) ou os vários documentários ou filmes inspirados no rock punk de Brasília (Somos tão Jovens, Faroeste Caboclo etc.) sobre uma geração de jovens estrangeiros em uma terra sem raiz.

Branco Sai, Preto Fica (2014), do diretor Adirley Queirós, lança um novo personagem nessa distopia sci-fi em que se transformou a utopia modernista de Brasília: o Detetive.

Em postagem anterior, discutíamos que a subjetividade pós-moderna pode ser sintetizada cinematograficamente em três tipos de personagens: o Viajante (a jornada espiritual), o Estrangeiro (aquele que se sente estranho em sua própria família, cidade ou país) e o Detetive (envolvido em mistérios e conspirações que, no final, voltam-se contra ele próprio) – clique aqui.

Um homem vem do futuro com o propósito de encontrar provas de que um incidente ocorrido em um baile de música black em 1986 foi um atentado racista – o título refere-se à ordem que um soldado deu no momento de uma batida policial que resultou em danos físicos e psíquicos irreversíveis para dois personagens: um ficou paraplégico, e outro perdeu uma perna.

Provas são necessárias para que no futuro movimentos identitários negros consigam processar o Estado. Mas também no futuro, as coisas não vão bem: o Estado foi tomado por um grupo de extrema-direita religiosa chamado “Vanguarda Cristã”…

Branco Sai, Preto Fica é mais um filme de uma longa tradição de filmes sci-fi iniciada pelo clássico francês de viagem no tempo de Chris Maker La  Jetée (1962) ou do iraniano Taboor (2012) – filmes de baixíssimo orçamento, cujos efeitos especiais (cânone do gênero) são criados com recursos simples como montagem, edição, fotos e desenhos.

Paisagem de desolação

E Brasília, assim como as cidades satélites ao redor como Ceilândia, não precisa de computação gráfica para se tornarem ficção científica: sua própria paisagem de desolação com horizontes recortados tanto por prédios futuristas quanto por favelas, lajes e escadarias que se sobrepõem já conferem uma atmosfera distópica – algo como um “favela sci-fi”.

É um filme experimental e como uma narrativa inventiva, um mix de documentário, drama político e ficção científica. Fotos e recortes de jornal do episódio de repressão policial e racismo em 1987 nos mostram que Adirley Queirós partiu de um evento real para construir uma distopia brasileira sem saídas ou esperança: se no presente o sonho de Brasília de planejamento urbano se transformou em apartheid social, o detetive vem de um futuro cujo País ainda não foi redimido.

 

Na busca por evidências que comprove o racismo policial, o detetive do futuro (algo que lembra alguma coisa entre Terminator e Repo Man) vê-se prisioneiro no tempo e no espaço: não pode retornar ao seu tempo devido a mais um golpe político brasileiro. E está condenado a ser um Estrangeiro num lugar ao qual não pertence – quem sabe, uma metáfora do eterno retorno nacional.

O Filme

Branco Sai, Preto Fica é um filme temporalmente claustrofóbico: simplesmente não há saídas para ninguém – no presente temos personagens que habitam uma cidade (Ceilândia) politicamente marginalizada cuja entrada e saída é controlada por passaporte; e no futuro, um regime político religioso tomou o poder. E no meio dessas polaridades, o hip-hop como a narrativa oral da marginalização e militantes do lutas sociais do futuro.

O filme inicia como um documentário, no qual o paraplégico Marquim do Tropa (interpretando ele próprio) narra ao som da base do hip-hop a invasão policial de 1987, no estúdio da sua rádio pirata. Também acompanhamos o cotidiano de outro sobrevivente dessa tragédia: Sartana (Irineu) – acompanhamos a manutenção da sua perna mecânica enquanto ensina outros deficientes a lidar com suas próteses.

Do docudrama, cortamos imediatamente para o elemento sci-fi: Dimas (Dimas Durães) chega do futuro no interior de uma espécie de container (recurso baixo orçamento do diretor) em cujas paredes vai pendurando recortes de jornais da época, tentando reconstituir a tragédia daquele baile funk.

O detetive parece ser um brasileiro prototípico: na viagem pelo tempo perdeu dinheiro, cartão de crédito e documento de identidade. Ela está “fudido”, como se reporta, através  de um comunicador tosco, com o futuro. De onde vem notícias politicamente nada animadoras – Dimas decide apenas enviar as provas do futuro processo (ele precisa fazer um vídeo com depoimentos de Sartana e Marquim) e não mais retornar.

 

O filme acumula sequências memoráveis e simbólicas: Sartana em seu depósito de pilhas de pernas mecânicas e próteses variadas como uma espécie de ferro-velho humano; um conjunto de tecno brega que toca música com timidez; a paisagem desolada de Ceilândia na qual, em um espaço aberto e empoeirado, repousa o container do viajante do tempo; a casa de Marquim cujos tubos de neon ilumina estreitas e intrincadas passagens e elevadores para a cadeira de rodas; e a constante pontuação de fotografias do fatídico baile funk mostrando como os protagonistas eram (jovens e cheios de esperanças) contrastando com a melancolia e alienação do presente.

 

Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

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