Oppenheimer e a modernidade, por Fábio de Oliveira Ribeiro

O processo que resultou na condenação e prisão de Lula no Brasil também foi um exemplo vergonhoso de uso do Direito para fins políticos.

Oppenheimer e a modernidade

por Fábio de Oliveira Ribeiro

Ontem finalmente tive tempo para ir ver Oppenheimer. Sai da sala de cinema convencido de que os erros históricos do filme são irrelevantes. Oppenheimer não é uma narrativa histórica, nem tampouco é possível reduzi-lo aos debates éticos acerca do uso de armas nucleares.

Apesar da trajetória do cientista que liderou o Projeto Manhattan ser explorada de uma maneira fractal, o filme não pode ser considerado biográfico. Oppenheimer tematiza cinco coisas que não podem ser separadas da vida moderna.

A primeira é o uso estratégico da ciência para fins militares. Oppenheimer não foi o primeiro nem o último cientista recrutado em tempo de guerra para desenvolver armamentos capazes de produzir o maior dano ao inimigo. Se levarmos em conta as narrativas dos historiadores da antiguidade, a longa história do uso da ciência para otimizar a matança politicamente organizada começou com Arquimedes (287aC – 212 aC).

A segunda é o uso estratégico da imprensa para fins pacíficos. Sentindo-se responsável por ter feito o mundo enveredar por um caminho que somente poderia levar à destruição mutuamente garantida das potências nucleares, o cientista usa a proeminência midiática para tentar frear ou interromper a corrida armamentista insana que ocorreu durante a Guerra Fria.

A terceira é o uso estratégico do Direito Administrativo para fins políticos. O processo retratado no filme, através do qual o estado norte-americano se recusou a renovar a licença de segurança nacional do cientista, foi uma farsa. Durante a instrução, o cientista não teve direito de defesa. Somente no final Oppenheimer ficou sabendo que o processo foi iniciado por causa da carta enviada ao FBI por um desafeto dele que estava convicto de que o cientista poderia ser um espião comunista ou, no mínimo, suspeito de ter facilitado a espionagem em Los Alamos. As evidências colhidas durante a instrução sumária não qualquer tiveram importância para a decisão, porque o resultado havia sido combinado previamente.

As semelhanças entre o processo retratado no filme e o que ocorreu com Julian Assange na Inglaterra é evidente. O jornalista do WikiLeaks também está sendo vítima de uma farsa judicial. Ele foi preso indevidamente e não pode ser tratado como espião nos EUA por ter publicado informações que todos os grandes jornais do mundo também publicaram. O processo que resultou na injusta condenação e prisão de Lula no Brasil também foi um exemplo vergonhoso de uso estratégico do Direito para fins políticos. Idem para o que está ocorrendo com José Sócrates em Portugal.

O maior sucesso científico de Oppenheimer, retratado na primeira fase do filme, se transforma na consciência culpada que o atormenta na segunda fase de sua existência. O resultado dessa transição é evidente quando prestamos atenção à imagem real do cientista deprimido citando o Bhagavad-Gita. O fracasso de Oppenheimer em obter a renovação da licença de segurança nacional, algo que foi manufaturado por seus adversários, é apresentado no filme como uma espécie de sucesso capaz de limpar a imagem do cientista.

A quarta coisa que não pode ser separada da vida moderna é a banalidade do mal. Após ficarem sabendo que Hiroshima foi devastada pelo lançamento da primeira bomba atômica, os cientistas norte-americanos comemoram o sucesso de seu trabalho. Os civis japoneses mortos durante e depois da explosão estavam totalmente alheios aos combates que ocorriam entre os soldados japoneses e norte-americanos. Mas os cientistas que trabalharam sob o comando de Oppenheimer não poderiam ter se comportado como se pudessem ficar alheios ao resultado desumano medonho que ajudaram a produzir.

A quinta coisa importante evocada pelo filme é o uso estratégico do cinema para fins ideológicos. Ao fazer esse filme supostamente biográfico, Christopher Nolan parece ter sido inspirado menos pela necessidade de salvar a imagem do personagem histórico que protagoniza o filme do que pela intenção mal disfarçada de impedir que as pessoas reflitam sob a banalidade do mal praticada pelos norte-americanos. A maneira dele fazer isso foi bastante sutil e eloquente.

Quando os participantes do Projeto Manhattan comemoram o sucesso da explosão nuclear em Hiroshima, Oppenheimer vê mentalmente seus colegas sendo vítimas de uma detonação semelhante. Na cena que me parece ter sido a que foi mais politicamente calculada do filme, o diretor mostra o protagonista vendo uma projeção das imagens da devastação em Hiroshima e Nagasaki. Mas as imagens das próprias vítimas do ataque nuclear ordenado por Harry Truman não foram mostradas.

Leslie Groves (o coronel interpretado por Matt Damon) não foi um militar bonachão capaz de manter uma relação mais ou menos aberta e amistosa com Oppenheimer. No filme ele diz que poderia pisar nas bolas do cientista. Na vida real ele parece ter feito isso com muito mais frequência do que Christopher Nolan nos mostrou. Ao retratar Leslie Groves de uma maneira positiva o diretor do filme comentado me fez lembrar de uma imagem que ele obviamente não poderia mostrar e não mostrou.

Refiro-me obviamente à foto que registra a maneira ironicamente cruel e desumana como os comandantes militares norte-americanos comemoraram a supremacia militar absoluta conquistada em decorrência das pesquisas comandadas por Oppenheimer. Foi por isso que resolvi ilustrar o presente texto com a imagem do cientista tendo de um lado o famoso bolo atômico e de outro uma foto de uma das vítimas da orgia de violência escandalosamente glorificada até hoje por uma parcela significativa da população norte-americana.

Fábio de Oliveira Ribeiro, 22/11/1964, advogado desde 1990. Inimigo do fascismo e do fundamentalismo religioso. Defensor das causas perdidas. Estudioso incansável de tudo aquilo que nos transforma em seres realmente humanos.

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Fábio de Oliveira Ribeiro

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