Lula, a nova paixão da Globo, por Luis Nassif

Criou uma simbiose curiosa: a Globo precisa de Lula; e Lula precisa da Globo. Nos próximos anos haverá uma furiosa disputa de narrativas

Grande cronista, e anticomunista ferrenho, em muitas de suas crônicas dos anos cinzentos, Nelson Rodrigues saudava Roberto Marinho. Dizia ele que O Globo era o único jornal em que os jornalistas seguiam a linha definida pela casa. De fato, Roberto Marinho e “meus comunistas” – como eram tratados por Marinho – viviam em perfeita harmonia, seguindo uma máximo pacificadora: o dr. Roberto mandava, eles obedeciam.

E essa coerência foi mantida ao longo das décadas e dos golpes.

No período Lava Jato-impeachment transcendeu. Os bravos colegas celebraram a condução coercitiva de 40 funcionários do BNDES, caçoaram da filha de Garotinho chorando desesperadamente, enquanto o pai era arrancado de maca de um hospital; celebraram a condução coercitiva de Lula e, depois, a sua prisão.

De repente, não mais que de repente, uma cauda do cometa Kohoutek se desprendeu e caiu sobre a redação do jornal. E os jornalistas e colunistas viram Jesus.

O mais ferrenho dos direitistas, que chegou a ir a Salvador para recepcionar a blogueira cubana bancada pela CIA, fez uma autocrítica pública, por ter apoiado o impeachment.

A jornalista de economia, que sempre seguia a Bíblia do mercado, abjurou e defendeu políticas a favor dos pobres. Uma entrevista favorável a Fernando Haddad passou toda a manhã na home do jornal. E um documentário sobre a prisão de Lula provocou tuítes repletos de emoção por parte dos jornalistas de casa.

Chamo a atenção para reforçar o que dizia Nelson Rodrigues sobre a casa. Mas, também, para mostrar a aliança esboçada com Lula daqui para frente. Longe de mim duvidar da sinceridade dos colegas. O que ocorreu foi que a Globo afrouxou as correntes ideológicas por uma razão muito objetiva.

Nas últimas décadas, enquanto a Globo esmerava-se em destruir o PT, e exibia sua musculatura mandando Edir Macedo para a cadeia, os neopentecostais montavam uma rede mais influente que a da própria Globo, porque composta por emissoras de rádio e TV e reforçada por pregação presencial e por financiamento dos fiéis: um modelo de negócios campeão.

No início da abertura da mídia televisiva, conversei com um executivo da Record que previu o fim do domínio da Globo, por uma razão simples: ela montou uma estrutura super-cara, que lhe assegurava o monopólio da audiência e dava retorno financeiro. Seus contratos permanentes com artistas e jornalistas garantiam que a imagem Globo jamais seria aproveitada por outra emissora.

Os tempos passaram, o streaming chegou para ficar, a economia entrou em crise, o governo cortou os financiamentos e, mais que isso, a sombra assustadora do bolsonarismo pairou sobre o futuro da empresa. A Globo passou a investir todas suas forças na Globoplay, contando com um caixa reforçado, mas receitas cadentes.

A partir daí, de forma muito mais rápida que seus concorrentes – e a Globo sempre foi a maior por sempre recorrer à melhor estratégia – tomou-se de paixão por Lula.

Criou uma simbiose curiosa: a Globo precisa de Lula; e Lula precisa da Globo. Nos próximos anos haverá uma furiosa disputa de narrativas e pelo menos dois anos espinhosos para o novo governo.

Dois porcos-espinhos dormirão abraçados de noite e batalharão na mesma frente de dia, como irmãos de fé. Só não vale beijo na boca.

Nos últimos meses, abandonaram a Lava Jato – Lava Jato? o que é isso? -, esqueceram o cano de esgoto permanente do Jornal Nacional, jogaram Sérgio Moro ao mar de detritos da história. Mas não fizeram a autocrítica. Ou talvez, fizeram, no documentário sobre os mais de 500 dias que Lula passou preso, jogado na cadeia pela TV de Sérgio Moro.

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Luis Nassif

20 Comentários

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  1. Com certeza a autocritica virá quando for conveniente. Antes do golpe contra Dilma veio a “autocrítica” ao golpe do 64. Tipo confissão católica: se arrepende dos pecados, limpa a barra para logo voltar a pecar com a “consciência” mais limpa.

  2. Não é só uma questão de comunicação, Nassif, mas a essência do próprio funcionamento do capitalismo, e deste ilusão que ele vende como “democracia”, onde o tigre e a galinha são chamados a conviver no mesmo espaço, sob uma pretensa “igualdade formal” de condições…

    Eu sei que você, como muitos, acreditam que o capitalismo é a última etapa evolutiva da História (Fukuyama?), o que é uma lástima, embora respeite o ponto de viste…

    Mas o fato é que este modelo representativo institucional dentro do arranjo de um capitalismo desarranjado, e que cada vez mais produz menos, enquanto a gigantesca massa de antivalores (capitais fictícios, juros) o sufoca (*) está fadado ao fracasso distópico e iminente…

    Em seu livro Democracia Contra O Capitalismo, Ellen Meiksins Wood desvenda boa parte deste dilema, quando diz mais ou menos assim: o capitalismo é um sistema que necessita da ideia de expansão de representações políticas que se levadas a sério siginifcam o seu fim…

    Recomendo a leitura.

    (*) Robert Kürz tem uma metáfora interessante para o paradoxo capital e antivalor (juros) e dizia que os juros são como a manteiga produzida em uma fazenda de leite…A questão é que em algum tempo, a produção de leite ficou em 100 litros diários, mas a manteiga cresce exponencilamente e está em 1000 toneladas/dia, ou seja, embora sejam ligados em sua natureza láctea, a quantidade de manteiga não pode ser mais explicada pela de leite…e como há manteiga de mais, a produção de leite foi esmagada, pois todo esforço da fazenda passa a ser movimentar e estocar manteiga…

  3. Acabo de enxergar o paradoxo da felicidade.
    Para sermos mais felizes precisamos mudar, mas toda mudança causa desconforto e desconforto nos deixa infelizes.
    Conclusão: Para sermos mais felizes precisamos ser mais infelizes primeiro.

  4. Não sei qual dos dois grupos me causa mais repugnância e asco: a Globo ou o PT. É interessante lembrar que a blogueira cubana Yoani Sánchez foi perseguida implacavelmente pela militância petista fanática, enquanto esteve no Brasil, cidade após cidade, sendo que na Universidade Federal de Uberlândia ela nada pôde falar, porque foi expulsa pelos petistas, assim como Demetrio Magnoli foi calado e expulso de uma palestra em Salvador, também pelo PT – para essa gente é proibido não ser de esquerda ou “progressista”, que é como eles chamam quem concorda com eles. Mas a política é e sempre foi carregada de vapores fétidos, como sabe qualquer leitor de Maquiavel. A vida é assim mesmo. Tive de votar e fazer campanha pelo PT, tapando o nariz, porque a alternativa era muito pior que eles. E agora é aguentar mais quatro anos desse demagogo vulgar obcecado pelo poder.

  5. Essa paixão simplesmente não existe.
    Os interesses comerciais da mais golpista das emissoras é evidente e nem por isso pode ser confundido com paixão ao presidente Lula.
    A emissora golpista sabe muito bem que a sua existência está condicionada ao mínimo de democracia e que isso não ocorreria se o sujeito que ainda ocupa o Palácio do Planalto por lá permanecesse.
    Também,sabe muito bem,que,mesmo saindo,o estrago feito por ele não será corrigido da noite para o dia.
    Assim,tentar garantir o mínimo de estabilidade para o governo eleito não é paixão. É necessidade.
    Para o presidente Lula isso não é novidade. Ainda lá atrás,na campanha das diretas,quando Maluf ensaiou apoiar o movimento,o presidente Lula se manifestou dizendo aceitar o apoio de qualquer um que se dispusesse a defender as diretas e que as diferenças seriam debatidas na campanha.
    Então,por coerência política,o presidente Lula tem de aceitar qualquer apoio que vier neste momento a favor da democracia.

  6. Realmente o melhor é a Globo estar com Lula e Lula com Globo.

    A democracia brasileira há tempos não naufragava tanto.

    É preciso unir interesses para garantir o mínimo de civilidade, pois arriscar voltar outro perigoso lunático ao poder maior, não mais OPÇÃO.

  7. Os neo pentecostais podem ter se articulado bem no Congresso, mas eles tem um ponto fraco que fazem eles se esquecerem de ideologia, valores , crenças e tudo mais.
    Basta liberar um dinheirinho que eles viram a casaca pra onde voce quiser.

  8. Quem está (temporariamente) apoiando o “desenvolvimentismo inclusivo e soberano”, leia-se lulopestismo (como foi o trabalhismo varguista) é o EUA de Biden. A Globo (nascida da costela da Time-Life e com a mesma cabeça do “liberaloide” do Chateaubriand – que também era contra a Petrobras), assim como seus funcionários, segue ordens. Durante o período que antecedeu e perdurou até o fim da II Guerra, o EUA também apoiou, taticamente, o “desenvolvimentismo inclusivo e soberano” do varguismo trabalhista. Agora, o que faz o império norte-americano apoiar essa liberdade de ação política no Brasil, não é mais a ameaçadora Alemanha, mas também perigosa (sob seu ponto de vista) China. Ainda mais depois da sua aliança com a Rússia, seu Brics + e Nova Rota da Seda.

  9. Se o PT pudesse, já teria destruido a globo. A globo, se quisesse, já teria destruido completamente o PT. A globo é apenas mais um componente da mídia universal, onde não há uma só idéia ou verdade que não seja controlada com mão de ferro, por um grupo específico que domina a economia do mundo.

  10. “Quem muito se evita, se convive”. É preciso prolongar a vida da Rede Globo, pois é necessário atentar para o caminho que ela está tomando, para poder tomar o caminho oposto. E, ao lado dos demônios do Vale do Silício, a Globo não passa de um rato que ruge.. Mas, recentemente, a propósito da “entrega” do Ministério das Comunicações ao União Brasil, o Nassif questionava qual seria a lógica dessa movimentação, e, consequentemente, a lógica de Lula 3. Chegou a tachar de “burrice” o que é, em verdade, pragmatismo. Pragmatismo excessivo, míope, tudo bem; mas pragmatismo. Ora, a lógica de Lula 3 (assim como de Lula 1, ou Lula 2) é uma só: é o que eu chamo de Lógica da Migalha, ou Lógica da Sobra. Lógica dos 0,45 do Orçamento, se quisermos ser mais técnicos. Marcos 7, 27-30.
    Voto em Lula (e no PT) desde a morte de Leonel Brizola. Nos meus – até agora – 59 anos de vida, só testemunhei um governo federal (dois, na verdade), colocar em prática políticas sociais dirigidas aos setores mais vulneráveis, senão 100% eficazes, ao menos minimamente sustentáveis e coerentes: os governos de Lula e Dilma. Com todas as suas falhas, equívocos, ou vícios de origem, ao menos tiveram resultados verificáveis, em maior ou menor grau. Mas em se tratando desses mesmos governos, nunca pude evitar compará-los com aqueles ratinhos de desenho animado, que passavam o dia entocados, em suas camas-caixa-de-fósforos, e saiam à noite para beliscar o queijo das madames. Eis a lógica dos governos do PT, mesmo do alto de eventuais índíces de aprovação na casa dos 80%; “furtar” naquinhos de queijo da geladeira das madames.
    Ora, é claro que os ratinhos de desenho animado só podem fazê-lo as escondidas; comodidade que está vedada ao chefe do executivo, que tem que agir às claras; portanto, com a aquiescência, para dizer o mínimo, do dono da geladeira. E essa aquiescência se obtém dessa forma, chamem-na burrice ou pragmatismo: sem questionar a propriedade da geladeira, e muito menos daquilo que lá se estoca. Os meios de produção e a produção, em si, são deles; eu me contento com migalhas e sobras.
    À Elite (Bancos e corporações, e seus parasitas), os ministérios, os altos cargos, as superintendências e autarquias, em uma palavra, o filé; assim, os pobres (queria usar a expressão f*didos, mas deixa pra lá) podem se deleitar com suas sobras e migalhas. Raspas e restos nos interessam.
    Eis a lógica do Brasil, eis a lógica de Lula, na minha visão. Qualquer outra coisa, ou é pior (como essa desgraça que fugiu do país hoje à tarde), ou é inalcançável, porque a reação – a rebordosa, como se dizia nos meus verdes anos – vem sempre com força desproporcional. Lula no poder, que nunca teve um gesto, um movimento, uma palavra sequer, que possa ser qualificada como extremista ou radical, pelo contrário, assumiu inteiramente o papel de ratinho de desenho animado, foi recompensado com 580 dias de masmorra; retornando agora, estará se sujeitando à coisa ainda pior, por exemplo, algum Lee Oswald tropical.
    Ainda assim, viva Lula! E esqueçamos a lógica, o pargmatismo, a burrice, Nassif: é tempo de esperar coisas boas, apesar de uma ou outra nuvem negra no horizonte. Não vamos reduzir o Brasil à lógica do infame Tiririca, aquele do “pior do que tá, não fica”.
    Tá ruim, mas tá bom. Desipere in loco.

  11. A Globo, a Globo, a Globo …
    Estamos em 1980 …
    Por isto estão preocupados com um pedaço de pano e se vão usar ou não um calhambeque de luxo …
    Mas vai ser como seu Jair , falou , falou , falou e prorrogou a Globo…
    A Globo, a Globo,a Globo…

  12. Todos articulistas a partir de Nassif elaboram com perfeição seus argumentos,mas que servem muito bem aos interesses da continuidade e nesse processo não se inclui aqueles que pode ser o grande agente das mudanças sociais,mesmo sabendo que lhes sobram são migalhas,mas estão atentos as misérias produzidas econômica e socialmente,daí a necessidade de golpes e contra-golpes para afastar a sua participação,embora a aprendizagem continue sendo aprendida E isso que os governos e os poderosos temem e vocês não conseguem ver.

  13. Nada como um dia após o outro. A Globo de outrora que andava de braços dados com João Figueiredo viu seu império ameaçado por um adorador da ditadura. Somente uma besta do tamanho de Bolsonaro para conseguir trazer tanta destruição ao nosso país sendo a maior delas entrar nas mentes e corações dos despolitizados o espírito fascista adorador da tragédia militar brasileira. Por outro lado Bolsonaro não cumpriu na íntegra seu pacote de maldades e isso nos dá uma pista de que seu poder era mais blefe do que real. Os militares brasileiros podem apoiar suas ideias mas não morrem e não arriscam a carreira por ele. Por esse motivo talvez fosse o momento certo de fazer como na Argentina e se livrar de vez dessas tralhas golpistas.
    Quando ao grupo Globo é evidente que só esperam nova oportunidade para atacar pelas costas. Mas ao menos aprenderam uma lição valiosa: só é boa a ditadura para os amigos dos ditadores. E espero que o PT também tenha aprendido a deixar um pouco do republicanismo de lado, ser menos letárgico e prestar mais atenção em seus próprios “aliados”.

  14. O casamento exposto por Nassif expõe a esperança da Folha em, já nos primeiros dias, tornar-se o primeiro e principal algoz do governo Lula. Na rua Barão de Limeira reinou e reinará a canalhice hedionda.

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