A Entrevista Perdida pelas Mulheres Não-Apresentáveis

Uma entrevista que a cumpri e nunca a redigi. Porque há certos trabalhos feitos ao ninguém, esse ninguém-nenhum que somos nós mesmos falando sozinhos e em voz alta para o abstrato de um só. Mas tantas coisas escapam ao mundo, que é num desarraigo de mim que pretendo aqui entregar essa merecida entrevista. Escuto tudo novamente, neste exato momento, e essa conversa é enorme e cheia demais. Preservei gravada as nossas vozes, contudo tampouco as esqueci, algum dia por completo, mas lembrava-me sem que pudesse mexer no material, sua serventia inquestionável causa-me paralisia. Eu não sei como e o que fazer com isso! Admito: perdi a redação de um texto-entrevista.

Mas tenho agora a percepção do que é o ideal de uma entrevista, porque justamente a perdi, e ficou-me então somente seu cheiro que de agora para sempre o reconhecerei, e o capto por puro senso vivo de saber ver-estar com gente. Começo também a entender o que é a verdade de uma pós-entrevista, quando ela já morreu na realidade e depois resurge na escrita. É a interpretação sempre falsa de um encontro, com a audácia de entrar no mundo falante do outro, munido de arrogância para perguntar e querer a melhor resposta interna e rápida da pessoa detida adiante. E que ela seja esperta e coerente e todos os demais bons adjetivos que possa reunir ao redor de si num momento chamado de: entrevista. Ah! E quem pergunta está num lugar alto o suficiente para não deixar-se questionar, supõe-se com o direito da estranha dualidade autoritarismo-cordial. Um encontro com outro, feito da curiosidade egoísta de apenas um que pergunta com a vontade de saber tudo e, às vezes, de saber também no lugar de tantos outros. A entrevista é a representação artificial da curiosidade de muitos. E querer saber tudo não é coisa para se levar no bolso, no dia da entrevista, porque cada um tem suas falas internas-externas silenciosas que nunca passam senão das voltas de um pensamento ilhado e inatingível. Por isso, captar expressões e saber colocá-las em palavras é um truque para descobrir a entrevista em seus caminhos que escapam à lógica da presunção de quem pergunta.

Constato nunca haver perguntado nada a ninguém, e aqueles escritos de entrevista, mera automatização repetitiva. Agora, escrevendo, estou mudando e clareando-me para este ato nalgum futuro. Nesse presente já estou mesmo derrotada e perdida está tal entrevista, então vou livrar-me sem pena das velhas técnicas, vejam isso, desmereço o escrever objetivo. A objetividade apequenaria o registro das palavras da minha entrevistada, não alcançaria sua interioridade acalmada pela certeza de integridade afinada na luta que é. Porque ela ri da brutalidade alheia e fica séria com suas questões de vida e de morte nas ruas. Essa nossa conversa faz-se de uma grossura tão polpuda em minhas mãos, que questionável tenho a mim perto desse afazer, caindo sem poder. A fala dela vale muito, e detenho um instante de incapacidade para perpassar o que é seu ouro e sua miséria, daquela mulher-mulheres. E adianto essa derradeira condição de simples escrevente, pois não quero iludir o leitor que pensa encontrará por aqui o perfeito entrevistado esmiuçado. Seria como querer desossar uma coisa que tem lados e jeitos e olhos e propostas de um direito cheio de nascer, que se entrega morto por simplicidade de injustiça, mas renasce a cada tentativa de falar e explicar-se a. E como falou e explicou-se a mim! Eu, que assumo não ter ao alcance a palavra escrita que conte sobre o que ela é, ou o que ela quer ser e necessita ter, pois sua existência é um trágico ponto de dependência com o mundo, com o outro, e vendo-me nesse outro caí sem solução para o arranjo dessa entrevista. Nenhum modo de descrever em palavras poderá colocar adiante o que ela é, com a voz que se deve, a palavra aparece-me sempre devedora, temos eu e a escrita uma dívida com essa minha entrevistada. Qualquer escrito é pouco, ela é gente plural em demasia, ela era um monte de elas quando a vi em largas pernas cruzadas e posição erguida na mesa de trabalho. Penso em algumas palavras, aproximo-me de sua descrição e tenho um medo, o medo de dizer quem ela é sem repassar a verdade sua, sem limpar o caminho para a reação certa de acolhimento que lhe é merecida. Suas ponderações, ditos, e constatações não podem ter outra via que a do repasse adiante, sem trégua e injúria, para serem apenas meta-cumprimento. Mas vou desfazer-me dessa responsabilidade de apresentação e repasse de, ela fala por si sendo o troço grande que é, e com a autoridade de quem já passou por cima da minha antiga intenção de escrever sobre essa entrevista. Assim, absolutamente, simplesmente, e objetivamente, segue tudo o que tenho em mãos sobre aquele encontro-entrevista:

Ela: trabalhadora sexual, e mãe; tem o filho ao lado, que brinca com alguns objetos, e ao mesmo tempo come biscoitos dispostos em um prato. Ela direciona-se a ele em alguns breves momentos, e o menino nada interrompe.

Lugar: Sala de trabalho da sede da Associação de Mulheres Meretrizes da Argentina (AMMAR), bairro de San Telmo, Buenos Aires. Objetivo principal da AMMAR: Lei de Trabalho Sexual Autônomo.

Redação

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