A xepa, por Aracy Balbani

O saudoso Herbert de Souza, o Betinho, cravou: “Quem tem fome tem pressa”. Precisa dizer mais?

A xepa

por Aracy Balbani

            Foi anunciado para hoje um almoço de mulheres executivas e empresárias com Jair Bolsonaro e as Senhoras Michelle Bolsonaro, Damares Alves, Flávia Arruda e Tereza Cristina em São Paulo.

            A notícia evocou algumas de minhas lembranças mais marcantes relacionadas ao ato de comer e a nós, mulheres. Várias memórias vêm da arte. Outras, da vida real.

            A primeira é de “Como Água para Chocolate”, filme mexicano de 1992. Nele há duas cenas inesquecíveis. Uma é a da protagonista Tita, jovem apaixonada que derramou lágrimas na massa do bolo para o casamento de sua irmã mais velha com o homem que ela própria, Tita, amava. Outra é do vomitório coletivo dos convidados do casamento depois de saborearem o bolo.

            Também “Comer, Beber, Viver”, do cineasta Ang Lee, é uma história delicada sobre um pai, cozinheiro chinês, e suas três filhas. Uma delas é executiva. No filme francês “Samba”, a executiva branca, interpretada por Charlotte Gainsbourg, e o imigrante negro lavador de pratos num restaurante, personagem de Omar Sy, estimulam o espectador e a espectadora sensíveis a refletirem sobre imigração, preconceito, opressão e amor.

            Luis Fernando Verissimo volta e meia brinda os leitores com erudição e bom humor sobre o comer. Quem ainda não leu “Gula – O Clube dos Anjos”, não sabe o que perde. Desculpem o trocadilho, mas o pecado da gula, a traição e a morte poucas vezes estiveram tão deliciosamente imbricados numa obra literária. Em outro livro do autor, difícil esquecer a anedota do convidado que vomitou à mesa durante um jantar de cerimônia. Rapidamente ele procurou tranquilizar o anfitrião amante da etiqueta, assegurando que havia devolvido o peixe junto com o vinho branco.

            Memorável também é o ensaio “Comer – Necessidade, desejo, obsessão”, do historiador e filósofo italiano Paolo Rossi. Rossi trata de cultura, jejum, santidade, canibalismo, obesidade, anorexia nervosa, bulimia, fome, suicídios entre agricultores, controle do sistema global de produção de alimentos por empresas multinacionais e outros aspectos da alimentação humana.

            Durante uma visita ao Brasil há anos, o chef vegetariano japonês Toshio Tanahashi ensinou que devemos ter profundo respeito e gratidão a quem cultiva os alimentos, à comida e à natureza. Ele não inicia o preparo de uma refeição sem antes se submeter a um ritual de purificação e meditação.

            O saudoso Herbert de Souza, o Betinho, cravou: “Quem tem fome tem pressa”. Precisa dizer mais?

            Mas há outras frases indeléveis. Ouvi uma de um doente anônimo. Ele ainda era criança pequena; eu era a pessoa que o atendia há 20 anos: “Vou mandar matar você, sua vagabunda!”. Outra foi de Paulo Maluf: “Estupra, mas não mata”. E a do então deputado federal Jair Bolsonaro a uma colega parlamentar: “Não te estupro porque você não merece”. Sempre me lembro disso quando acolho mulheres e meninas vítimas de agressões verbais, assédio ou violência sexual.

            Há, ainda, a memória das mãos calejadas das trabalhadoras rurais braçais. Muitas passaram a se vestir como homens para fugirem do assédio de capatazes e colegas de trabalho. São obrigadas a compartilhar com os homens um único banheiro improvisado no ônibus de boias-frias. Isso quando não têm de realizar as necessidades fisiológicas no “boi”, buraco na terra que faz as vezes de fossa. Várias estão desempregadas pelo terceiro ano consecutivo. Foram dispensadas da colheita da cana-de-açúcar pelos agentes dos usineiros.

            Lembro das familiares e companheiras das vítimas da violência de agentes do Estado. Da mãe que disse ter encontrado enforcado, na própria casa, o filho pobre e negro, por suposta dívida com o tráfico de drogas. Da idosa catadora de recicláveis que sofria com a concorrência cada vez maior de jovens sem as mesmas limitações físicas que ela, e não sabia como iria conseguir comida naquele dia. Lembro das mais de 400.000 vítimas fatais da COVID-19, de suas famílias, dos colegas profissionais de saúde e demais trabalhadores essenciais que se contaminaram com o coronavírus enquanto estavam em serviço.

Imagino que nenhuma porcelana importada com friso de ouro, toalha de linho bordada ou talheres de prata consigam camuflar a xepa de fome, sofrimento, destruição e morte que alguns querem impor ao Brasil. Acredito que não há serviço de luxo ou poder que tornem desumanidade e cinismo palatáveis. Mas os efeitos dos convescotes são imprevisíveis.

            Por último, mas não menos importante, me vem a recordação de A Última Ceia, de Leonardo da Vinci. Comunhão à mesa e traição nunca foram tão bem retratadas. Pelo menos até o dia de hoje.

Aracy P. S. Balbani é médica, brasileira, paulistana, solteira, heterossexual, cristã com profundo respeito por todas as crenças, defensora do Estado laico, não filiada a nenhum partido político ou sindicato, nem integrante de entidade feminista, empresarial ou organização não governamental.

Esse texto expressa a opinião pessoal da autora.

Redação

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