Crônica do dia 6 de abril de 2018 em São Bernardo do Campo, por Elizabeth Lorenzotti

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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Crônica do dia 6 de abril de 2018 em São Bernardo do Campo

por Elizabeth Lorenzotti

Conheço, é, conheço bem a cara de trabalhador do ABC. Jovem, com sua mochila, em geral cara de homem de bem, limpa, aberta. A maioria nordestinos. Nos anos 70, principalmente, foram eles que montaram milhares, milhões de carros das fábricas estrangeiras.

Foram eles, também, que a partir de 1979 promoveram as maiores greves que se teve noticia no país, e a maior resistência. Eles e suas companheiras no front. Eu vi.

E agora, no bar da rua do Sindicato dos Metalúrgicos (Rua João Basso), à minha frente, na mesinha que reparto com o desconhecido,e onde comemos delícias de salgadinhos frescos (esfiha, kibe,etc., a 1 real cada) vejo nesse moço a mesma cara de trabalhador que conheci no passado.

É metalúrgico, mas está desempregado (“você e mais uns 12 milhões”, comento). Ele tem a cara triste. Pergunto se veio para a manifestação, responde que não, veio fazer uma entrevista de emprego ali do lado. Que nem sabe o que está acontecendo, não acompanha.

Mas devia, devia, porque isso que está acontecendo ali afeta diretamente a tua vida. Como ele entenderia? Vai embora, desejo boa sorte. Obrigado.

Então conheço Ivonildo, um senhor alto, negro, na porta do bar fumando. Conversamos sobre a situação, e ele conta que foi metalúrgico da Mercedes Benz. Mas depois dos 60 perdeu o emprego, sabe como é difícil nessa idade. Então faz uns bicos por ali, mas olha, segredou, ninguém  do meu trabalho pode saber, eu sou do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto) que tem há meses aquela enorme ocupação na Scania. E parece que finalmente  entraram em negociações, me diz.

“Que alegria o povo brasileiro”, comenta comigo depois, quando postei na rede, uma amiga. É mesmo, coisa linda isso meu Deus.

Curioso – “eu gosto de saber de tudo”- Ivonildo foi perguntar de onde era uma caravana que chegava, de azul, num ônibus: era de Pouso Alegre (MG). Perto de Poços, a terra natal desta que vos escreve e de muita gente boa, onde o pessoal não conseguiu formar uma caravana, mas fez uma manifestação com cerca de 250 pessoas, um sucesso dentro da correlação de forças da cidade.

Quando cheguei ao Sindicato, de manhã, já havia muita gente. Minha amiga Magali tinha passado a noite lá (do dia 5 para 6), e contou que estavam sem água. Quem cortou a água? A Sabesp. A quem é ligada a Sabesp? Ao desgoverno do Estado de São Paulo.  (Eles são cruéis, sabemos). Só no fim da tarde de sexta, 6, chegaram 2 caminhões pipa. E reclamavam da dificuldade de acesso, muita gente. Pois é.

Magali e tantos dormiram no chão, SBC é quente de dia e muito fria à noite. Mas a solidariedade salva, alguém trazia água, outros cobertores, outros isso e mais aquilo.

Calor. Calor de ser humano. Isso que se torna cada vez mais raro hoje, no dia a dia, é o que sempre me comoveu em todas as militâncias da minha vida. Especialmente entre o povo. E entre os companheiros. Companheiro – aquele com quem se divide o pão, me explicaram uma vez. Nem sei se a etimologia é mesmo esta, para mim é a mais perfeita.

Na esquina da João Basso com Marechal Deodoro, antigos militantes metalúrgicos conversavam, riam, bebiam cerveja,lembravam,gritavam por Lula. Um dizia, ouvi só um trecho: “aqui- e apontava o prédio sobre o bar da esquina,em 1978, eu….”

Cabelos brancos, quem diria que voltariam à mesma situação de mais de 30 anos atrás, quando Lula foi preso e houve intervenção no Sindicato. E houve resistência, Fundo de Greve, o jornal Tribuna Metalúrgica continuou a ser rodado, alias, acho que se tornou no ABCD Jornal feito pelo eternamente saudoso Julinho de Grammont e por muitos bravos companheiros.

E os helicópteros. Um, de manhã, não sei se da Globo ou da policia, depois dois. Eu me lembrei acho que de 1980. Numa greve, um impasse perigoso. Uma multidão em frente da igreja matriz, para sair em passeata até o estádio de Vila Euclides. Muita policia, e muitos helicópteros sobrevoando. Rasantes, nossos cabelos voavam,e os militares apontavam metralhadoras para as nossas cabeças. Houve uma negociação entre sindicato, partidos e PM dentro da igreja: Lula, Montoro, Teotônio talvez.

E a passeata, afinal, saiu, com uma dignidade que poucas vezes vi na vida. Lembranças da História.

Chão histórico de trabalhadores este.

Volto ao presente. E quem pensava que o movimento estudantil sumiu? Não me lembro, mas era uma palavra de ordem bem bonita, moçada chegando, subindo a rua João Basso em direção ao Sindicato: “DCE da USP”.

Até me arrepiei, que eu também vim de lá, daquela universidade em tempos igualmente de chumbo.

Subo até o segundo andar do Sindicato, onde Lula se reunia com o pessoal e onde a imprensa aguardava. Muitos jornalistas, cinegrafistas, fotógrafos. Muita mídia internacional, BBC News o tempo todo. TV Globo foi vista no alto de um prédio, como sempre, e como sempre, vaiadissima.

Aliás, conseguiu piratear as imagens da TVT, a TV dos Trabalhadores, ligada ao Sindicato. Como contou Renato Bazan, produtor de reportagem da Rede:

“A Rede TVT está batendo os 5,1 pontos de Ibope hoje, com centenas de milhares de pessoas assistindo.
Eis que a Globo começa a seqüestrar o nosso sinal. Fica transmitindo as nossas imagens do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC sem crédito, como se fosse deles. Vendo isso, jogamos uma tarja enorme no frame: 
IMAGENS EXCLUSIVAS TVT. Instantes depois, as nossas imagens somem da Globo e, casualmente, algum cabeçudo liga aqui perguntando: “Olá, aqui é da Globo, vocês podem tirar essa tarja da imagem? Está atrapalhando A NOSSA TRANSMISSÃO”.

Que vergonha rede Globo! Que vergonha ó maioria da mídia, desexplicando e manipulando a informação.

No fim da tarde resolvo sair de São Bernardo. Antes que começasse a passar mal, coração apertado lembrando de outras épocas de trevas ali mesmo, naquele chão.

No trólebus que faz a linha SP-SBC, uma senhora franzina comenta no banco atrás do meu; “Pois é, eles lá no prédio comendo caviar e o povo naquele sol na rua”.

“Não minha senhora”, me viro. Eu estive lá e não tinha nada disso, “Ah, continua,” eu sou nordestina e gosto muito do Lula”, mudando radicalmente de opinião. No dia a dia se vê e ouve a geléia geral brasileira que o Jornal do Brasil anunciava na letra do grande Torquato Neto. Vem do zap, vem do tuiter, vem da rede e principalmente vem de mais de 50 anos de Globo e cem anos de mídia escrita patrocinada pelos antipovo.

Mas vem das redes também a resistência, a esperança, a mídia independente que cobriu com brilho.

Também, dentro do trólebus, penso que na quinta-feira (5), uma amiga bem intencionada, que disse que não tinha acompanhado as notícias, me perguntou: “Mas o que você vai fazer em São Bernardo? Vai porque é jornalista, claro.” Eu disse que não, vou porque preciso, quem está indo lá vai por todos nós. Pela sanidade, pela vida. Quantas pessoas bem intencionadas e sem saber exatamente o que anda acontecendo. sem saber dessa tempestade que cai diretamente sobre todos, sem exceção? E nem entendem ainda.

Vou pensando isso no trólebus, enquanto observo o garoto no banco na minha frente lendo o gibi “Homem Aranha: Força nas Trevas”.

 
Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

4 Comentários

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  1. Rede Globo é pirata de consciência e das imagens dos outros.
    Rede Globo, além de ladra das consciências dos brasileiros; também é ladra do sinal da pequena, mas brava, TVT. Exemplo da devastação provocada no Brasil durante toda a existência dos órgãos de imprensa da “famiglia” Marinho. Um governo popular terá a obrigação de expropriar a Rede Globo e transforma-la em uma grande emissora pública, como as grandes emissoras públicas européias.

  2. As crônicas podem ter mais força que relatos crus

    O que acabo de ler pode ser um relato jornalístico, tentando descrever com máxima fidelidade os fatos. Mas se for/fosse apenas isso perde/perderia a força tão logo passe/passasse sua atualidade,  que pode ser o dia ou a semana seguinte à sua publicação. Quando transformados em crônicas, grandes reportagens, livros  ou documentários, os fatos registrados ganham permanência, perenidade. 

    Com a decadência irreversível dos meios impressos, por razões técnológicas/técnicas, logísticas e de custos – acelerada no Brasil pela decadência da qualidade do que vem sendo publicado, desde que os grandes veículos do oligopólio midiático se transformaram em células disseminadoras do antipetismo patológico, agora evoluído para o nazifascismo aberto – e com a proliferação do jornalismo de mentiras (fake news) nas chamadas redes sociais digitais – canais perfeitos para a aplicação literal dos 11 princípios elaborados por Paul Joseph Göbbels, agora repotencializados e sem os custos e limites das produções cinematográficas e televisivas – a crônica jornalístca parece ser uma das poucas formas de se relatarem fatos e provocar reflexões.

    Em poucos dias estaremos saturados até mesmo pelas violências simbólicas e físicas que essa ditadura já vigente há dois nos no Brasil nos impõe a cada dia,  cassando direitos do cidadão trabalhador, dilapidando o patrimônio público nacional, entregando a corporações estrangeiras todos os setores e riquezas estratégicas, destruindo a educação e a saúde pública e inviablizando qualquer tentativa de se implantar no Brasil um projeto de desenvolvimento soberano e inclusivo. O lombo açoitado desenvolve calosidades e perde a sensibilidade para a dor, quando a tortura é diária.  A alienação resignada que vemos narrada na crônica mostra que não basta noticiar as tragédias; é preciso dramatizá-las, humanizá-las, sem cair na pieguice. 

    1. crônica

      João,a crônica é uma coisa bem brasileira, e é isso mesmo o que você falou. 

      Tivemos grandes mestres, como Rubem Braga, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos,Vinicius de Morais, Drummond, Caio Fernando Abreu,enfim,grandes buquês.

      E sobre a midia terminal voce está corretissimo.

      Um abraço

      Beth

  3. Vamos falar verdade,
    Que país
    Vamos falar verdade,
    Que país sem vergonha é o Brasil, terceiro quarto país em fabricação de automóveis e nenhuma fábrica nacional, até a China produz as suas porcarias e as.vende por aqui.
    Quando um Cristo tentou implantar uma foi detonado, assim como estamos entregando de mãos beijadas uma das maiores empresas de aviação.
    País sem vergonha, melhor, elite sem vergonha….

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