Galo etc: Carnaval, marketing e fake news, por Homero Fonseca

Cobertura espetaculosa do Carnaval inflacionou número de foliões, no Recife, Salvador e Rio, até extrapolar para inacreditáveis 2,5 milhões.

Galo etc: Carnaval, marketing e fake news

por Homero Fonseca

Era 1996. O Galo da Madrugada estava à beira de comemorar 20 anos. E se tornara um fenômeno: uma grande atração turística e um signo inconteste da cidade. Porém, um milhão de foliões? À época, o Recife tinha cerca de um milhão e meio de habitantes…

Eu estava à frente da redação do Diario de Pernambuco e desconfiava de que aquela conta não batia.

[Sabe-se como o mito do milhão nascera: na disputa por espaço na cobertura espetaculosa da Rede Globo, as notícias enviadas do Recife e de Salvador foram inflando os números, ano a ano, numa corrida ufanista: 500 mil, 600 mil, 700 mil… um milhão. Toda a mídia acompanhou a contagem inflacionária. Claro, o desfile crescia ano a ano, em boa parte pelo efeito do noticiário hiperbólico. Até o Rio de Janeiro, que não podia ficar atrás no marketing carnavalesco, tascou: o Cordão da Bola Preta também juntava um milhão de foliões. Logo logo, São Paulo entra na onda. É marketing na veia.]

Agora, em 2023, a extrapolação numérica atingiu o auge: 2,5 milhões de pessoas no Galo!] Lá em 1996, para tirar minhas dúvidas, pedi ao engenheiro Fritz Guedes que calculasse, com base nos mapas cartográficos, quantas pessoas o percurso do Galo comportava. Resultado: 400 mil[*] (o que é um número impressionante, por qualquer parâmetro).

E agora? Desmentir o milhão colocaria o vetusto jornal como estraga-festa, além de não surtir o menor efeito na maré midiática. E eu perigava virar “o inimigo do povo” (como na célebre peça de Henrik Ibsen), quem sabe acusado de agente de alguma nação estrangeira. Resolvi não nadar contra a corrente das emoções e interesses entrelaçados.

Porém, só por desencargo de consciência (já que não ia desmentir o mito, também não o validaria!), orientei as editorias a não falar no fictício número mágico. Sempre que se pensasse no “um milhão”, se escrevesse “uma multidão”. E assim foi feito.

Pronto, contei história.

Homero Fonseca é pernambucano, escritor e jornalista, formado pela Universidade Católica de Pernambuco. Foi editor da revista Continente Multicultural, diretor de redação da Folha de Pernambuco, editor chefe do Diario de Pernambuco e repórter do Jornal do Commercio. Foi também professor de Teoria da Comunicação e recebeu menção honrosa no Prêmio Vladimir Herzog de Direitos Humanos do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo. Atualmente, dedica-se à literatura e mantém um blog em que aborda assuntos culturais.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected].

Redação

1 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. Essa mentiromania megalomaníaco é disseminada.
    Já ouvi colegas, no rádiojornalismo local tacar 100 mil num comício e até na procissão do santo padroeiro de minha cidade… que só agora, no censo deste ano passou dos cem mil habitantes.
    Mas o pior é ler/ver/ouvir jornalistas tarimbados noticiar ufanisticamente “um milhão na Paulista” e até na Sé, espaço menos da metade.
    Hoje com o GoogleEarth, fácil e rapidamente se desmente os exageros. Aliás, uma fotografia aérea do evento, cruzada convivida a cobertura via satélite do dito GoogleEarth é suficiente para se calcular quantas pessoas estavam nele.

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador