Izaias Almada
Izaías Almada é romancista, dramaturgo e roteirista brasileiro nascido em BH. Em 1963 mudou-se para a cidade de São Paulo, onde trabalhou em teatro, jornalismo, publicidade na TV e roteiro. Entre os anos de 1969 e 1971, foi prisioneiro político do golpe militar no Brasil que ocorreu em 1964.
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Memória emotiva V (*), por Izaías Almada

Além de não me incomodarem, os bancos de madeira iriam se transformar no epicentro da minha aventura naquela viagem especial: testemunhas e ao mesmo tempo cúmplices da minha noitada.

Memória emotiva V (*)

por Izaías Almada

         Foi numa viagem de férias escolares. Viagem feita em trem de ferro, nos velhos e bons trens de ferro, cuja locomotiva – ainda a carvão – era chamada com carinho de Maria Fumaça. Viajávamos eu, minha mãe e minha tia Alice, irmã caçula do meu pai. Férias em família. Íamos visitar meus tios que moravam em Juiz de Fora, cidade fabril do Vale do Paraíba.

         O percurso não era longo, visto com os olhos de hoje, mas demorado para os transportes da época, início dos anos cinquenta. Viajava-se por toda a noite e parte da manhã do dia seguinte. Os vagões da segunda classe, aqueles em que costumávamos viajar, tinham seus bancos de madeira dispostos em duas fileiras ao longo da carruagem e isso, com certeza, tornava-se desconfortável para os mais velhos. Mesmo assim andavam sempre cheios e não me lembro de ouvir minha mãe reclamar.

         Quanto a mim, era-me indiferente que os bancos fossem ou não de madeira, tal a alegria com fazia essas viagens. Jamais me ocorreu que dez ou doze horas passadas naqueles bancos pudessem se constituir numa desagradável noite de insônia, incômodos e dores pelo corpo.

         Além de não me incomodarem, os bancos de madeira iriam se transformar no epicentro da minha aventura naquela viagem especial: testemunhas e ao mesmo tempo cúmplices da minha noitada. É que os tais bancos dispunham de um mecanismo próprio que permitia serem os encostos deslocados, fazendo com que as pessoas pudessem se sentar umas de frente para as outras. De duas em duas. Sentei-me à janela junto da minha mãe. Tia Alice, para não ficar isolada do nosso convívio, pediu ao revisor de bilhetes, com a devida anuência da sua vizinha de banco, que mudasse de posição o nosso encosto.

         Confesso-vos, e não imaginais com que entusiasmo, ter ficado eternamente grato à minha tia por ter feito o que fez, pois tão logo o encosto foi virado, pude notar que estava sentado diante da mulher mais bonita que já conhecera até aquele momento: morena, os cabelos em rabo de cavalo, olhos claros e vivos, pele muito branca e lábios carnudos marcados pelo carmim esmaecido de um batom. E cheirava bem.

         Nunca fui bom para prever a idade das pessoas, mas penso hoje que ela deveria estar ao redor dos vinte, vinte e um anos. Logo me sorriu como fazem todas as moças bonitas quando se veem diante de rapazinhos tímidos e encantados. Não demorou muito e fui atacado com perguntas de todos os tipos: o meu nome, para onde ia, onde estudava, se eu preferia Paul Anka ou Neil Sedaka, se gostava de trens…

         Muitas perguntas para um adolescente excitado com a proximidade daquela beleza e que só fazia responder por monossílabos, provocando logo o comentário da minha mãe: “Liga não moça, ele sempre foi esse bicho do mato”. Morrendo de vergonha e ao mesmo tempo de paixão e, para contrariar em parte o comentário da minha mãe, arrisquei dizer que gostava de Brenda Lee…

         O primeiro amor à primeira vista! Ela, a moça bonita à minha frente, de quem jamais fiquei sabendo o nome, tinha dobrada sobre as pernas uma dessas mantas de lã axadrezadas. As noites de julho costumam ser mais frias no interior de Minas. À euforia das férias e da própria viagem veio juntar-se à forte emoção daquela casualidade. O resultado foi o de uma formidável noite sem sono, de uma noite invulgar passada em claro. Pedia a Deus para que não percebessem a minha agitação interior, os calores que me queimavam parte do corpo, os arrepios. O coração batia saltitante, iniciando-me nos rituais da dissimulação dos desejos, sempre um dos mais perigosos na arte da conquista amorosa, pois que, se descuidadas as medidas de um fingido desinteresse, poderemos perder para sempre o fruto da nossa cobiça…

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(*) – Conto do meu livro “Memórias Emotivas” / Ed; Mania de Livro.

                                                         (CONTINUA)

Izaías Almada é romancista, dramaturgo e roteirista brasileiro. Nascido em BH, em 1963 mudou-se para a cidade de São Paulo, onde trabalhou em teatro, jornalismo, publicidade na TV e roteiro. Entre os anos de 1969 e 1971, foi prisioneiro político do golpe militar no Brasil que ocorreu em 1964.

Este texto não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

Izaias Almada

Izaías Almada é romancista, dramaturgo e roteirista brasileiro nascido em BH. Em 1963 mudou-se para a cidade de São Paulo, onde trabalhou em teatro, jornalismo, publicidade na TV e roteiro. Entre os anos de 1969 e 1971, foi prisioneiro político do golpe militar no Brasil que ocorreu em 1964.

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