Meu tipo inesquecível

Coluna original de 28/12/1994

Meu tipo inesquecível foi um advogado. Com ele aprendi o significado da sua profissão, o devotamento solitário e fervoroso à causa, a solidariedade ao cliente, o culto aos valores essenciais que tornam o advogado instrumento permanente de consagração dos direitos individuais.

Doutor Francisco Rangel Pestana era advogado da “Folha” quando, em 1984, meti-me no meu primeiro processo –uma interpelação de um curso de inglês denunciado na recém-criada seção “Dinheiro Vivo”. Otávio Frias Filho alertou-me, brincando. “Vá falar com o dr Rangel. Se ele for com sua cara, você esta salvo. Se não for, precisamos arrumar outro advogado”.

Subi à sua sala, no décimo andar do prédio da “Folha”. Atrás de pilhas de processos, estava a figura alta e grisalha, mais de setenta anos, olhar severo por cima dos óculos, medindo o interlocutor. “Vocês jornalistas são todos uns irresponsáveis”, começou ele, “parece que não atentam para o significado das palavras”. E indagou o que eu tinha querido dizer com determinada expressão forte a respeito do curso. “Isso mesmo que as palavras significam”, respondi-lhe, algo mordido. “Você tem provas sobre o que está afirmando?”, continuou ele. “Tanto tenho, que escrevi”.

Sua expressão foi mudando. “Posso escapar pela tangente e dar uma explicação que satisfaça o advogado da parte contrária ou posso partir para o pau. O que você prefere?”. Expliquei-lhe que o curso em questão tinha procurado aproximações pouco ortodoxas comigo, e que preferia que ele partisse para o pau. Seu olhar iluminou-se. “Então, vamos para o pau”. E ficamos amigos.

O decreto do Cruzado

Tempos depois, no governo Sarney, envolvi-me num processo maior, movido pelo consultor-geral Saulo Ramos em função de denúncias de alterações na segunda edição do Plano Cruzado –recriando as indústrias da concordata e da liquidação extrajudicial.

Rangel Pestana assumiu a defesa, num momento em que o país mal saía das fraldas do autoritarismo. Foi uma guerra. No meio do processo, saí da “Folha” e abri mão da defesa judicial proporcionada pelo jornal. Orgulho besta, já que não tinha condições financeiras de contratar um advogado.

Fui me despedir do dr. Rangel, e agradecer seu empenho. “Você não está satisfeito com meu trabalho?”, indagou preocupado. “Pelo contrário, é que estou saindo do jornal e o senhor é advogado da ‘Folha'”, expliquei-lhe. “Engano seu. A ‘Folha’ me paga, mas meu cliente é você”, respondeu. Resolvi abrir o jogo. Disse-lhe que não tinha condições de pagar seus honorários. “Quem falou em honorários?”, redargüiu.

Sua atuação no processo foi heróica. Com problemas de saúde, chegou a sair direto do hospital para comparecer a uma das audiências, e retornar em seguida.

Quando o processo terminou –ele vencedor– já tinha condições de pagar ao menos parte dos seus honorários. Não aceitou. Comprei um jogo de canetas e fui visitá-lo em sua casa. Foi pouco antes de sua morte. Levei lá minhas filhas pequenas. Depois fomos até a Livraria Cultura, que mantinha um encontro todo sábado com jornalistas, poetas e escritores. Lá ele bebeu, divertiu-se a valer, contou histórias da mocidade, sua relação com Roberto Marinho, com a Antárctica.

Pouco depois morreu, deixando em mim lembranças para toda a vida.

Luis Nassif

8 Comentários

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  1. O saudosismo pega a gente de
    O saudosismo pega a gente de surpresa de quando em quando… De quando ouvi meu pai dizer, “Aqui fazem um pastel muito gostoso.”..
    Disse ele referindo-se a pastelaria do chinês na rua dos Tamoios em Belo horizonte, devia eu ter sete anos..No ultimo carnaval estive por BH, disseram que havia oito meses que fecharam a pastelaria.
    Lembranças…

  2. Sr Nassif

    Poucos valorizam
    Sr Nassif

    Poucos valorizam os verdadeiros amigos e fica claro, quando aproximamos familiares( suas filhas) de nossos amigos, é o firmamento

  3. Meu tipo inesquecível foi e
    Meu tipo inesquecível foi e continua sendo minha mãe, dona Vina, mulher simples, que tinha apenas o quarto ano primário, feito no antigo Mobral.
    Ainda pequena, saiu do norte mineiro, a pé, com meus avós e seus 10 filhos, enquanto os burros iam carregando as “tralhas”, caminharam durante um mês, comendo paçoca (carne de sol pilada com farinha) com água, atrás de uma vida melhor no Vale do Mucuri, do mesmo Estado.

    Depois de seus filhos, neta e genro, a maior paixão de minha mãe era a política. Dominava esse universo com maestria, e aí se instalava com segurança. De seus conhecimentos valia-se minha filha, para fazer pesquisas escolares.
    Apesar de ter mudado para a capital mineira, estava a par de toda a política da cidadezinha, onde vivera ¾ de sua vida. Sabia de tudo, tin-tin.tin por tin-tin-tin. Dava palpites, fazia campanha via telefone e ainda vaticinava sobre o resultado das urnas. E não é que a danadinha tinha uma boca santa, pois não errava uma.

    Logo, após a sua mudança para a capital, em 1981, minha mãe passou a destrinchar, também, o mundo da política estadual e federal. Em época de eleição, mal a visita chegava, já ia logo perguntado:
    – Quem é o seu candidato?
    Se a resposta coincidisse com a sua escolha, passava horas e horas falando sobre a vida pregressa do cidadão, dando ênfase aos pontos positivos. Podia ele ter lá uns “defeitinhos”, e quem não os tinha? Mas que era o melhor candidato, isso era. Mas, se não coincidia com a sua preferência política, repetia o mesmo repertório, ainda com mais veemência, no intuito de convencer seu interlocutor a mudar de posição.

    Jamais gostou de Sarney e Collor, acompanhando todas as peripécias de tais figuras. Contudo, nutria por FHC uma antipatia crônica. Não importava o que o “estadista” viesse a dizer ou fazer, era sempre do contra. Quando o inconseqüente falou mal dos aposentados, tomou a ofensa como pessoal, embora jamais tivesse tido direito a uma aposentadoria. Mais indignada ficou ao ser informada de que esse senhor, paladino da moralidade, aposentara aos 48 anos. E, por osmose, passou a detestar toda a “corja do PSDB”, como se referia a qualquer um que fosse do partido. Eduardo Azeredo, “o lombriga”, era posto porta afora, sempre que aparecia na TV. Desligava o aparelho. Se alguém reclamava, respondia de pronto:
    – Esta televisão é minha, vá mandar na sua! Nela só fica quem eu quero!

    Os seus sentimentos por Lula passaram por vários humores: da paixão no início do primeiro mandato, à desilusão no último ano do mesmo. Tal descompasso entre ela e o metalúrgico durou, apenas, até a certeza de que seu opositor era mais um da “corja do PSDB”. Voltou a tomar as rédeas da campanha, marqueteira da política de boca-a-boca, que era. No entanto, não viveu o suficiente para ver o seu candidato eleito.

    Embora, fosse pouco letrada, dona Vina era dona de uma inteligência a toda prova. Lia: Tribuna, Revista Saúde, Veja, Contigo, o jornaleco da igreja, panfletos políticos, bulas de remédio e tudo mais que lhe caísse às mãos.
    As leituras da minha mãe eram um caso à parte, quase comunitárias, pois quem estivesse por perto, fazendo o que quer que fosse, além de ter que explicar o significado das palavras ignoradas (não passava por cima de nenhuma), ainda se sujeitava ao debate, onde a opinião dela era sempre predominante. Se contestasse, dizia:
    – Você precisa ler mais, pois está muito mal informado.
    Dentre as suas leituras e debates, uma me é especial. Lembro-me do dia em que lia uma revista sobre saúde. O tema era sobre DST. Meu marido trabalhava ao lado, no computador.
    Esbarrando-se num termo desconhecido, vira para o distinto e pergunta:
    – Moá, o que é “sexo oral?”
    Pego de surpresa e meio acanhado com a dificuldade da explicação, na tentativa de encontrar uma resposta mais de acordo com sua idade e inocência em relação às posturas do Kama Sutra, respondeu:
    – É, é, é, é, é, é, é “aquilo na boca e a boca naquilo”.
    Não satisfeita com a resposta ela retorna:
    – Aquilo o quê?
    O coitado, meio sem graça, dá a mesma resposta, só que agora acompanhada do dedo indicativo.
    Ela, então, abismada com tamanha lascívia, que jamais lhe passara pela cabeça existir, deu um suspiro profundo e rebateu:
    – Eu não acredito que no mundo tenha gente que faça uma loucura dessa!
    Na verdade, essa “gente” poderia ser traduzida como “você e minha filha”, tamanha era a interrogação em seus olhos.

    Não há um só dia em que eu não pense em dona Vina. E, da sabedoria empírica com que governava a vida, jamais me esquecerei de sua frase predileta, dita quase que diariamente:

    – É PREFERÍVEL PENSAR E NÃO FALAR, DO QUE FALAR SEM PENSAR!

  4. É essa dignidade, Nassif, que
    É essa dignidade, Nassif, que está faltando. Você acha que o Dr. Rangel lhe defendeu por quê ? Porque você era/é igualzinho a ele. Você era, naquele momento, o portador dos valores que ele praticava. Se os jovens jornalistas reconhecessem o valor do bom caráter e o quanto são importantes para a sociedade, evoluiríamos muito rapidamente. Não é mesmo ?

  5. Bela crônica!

    Admiro-o como
    Bela crônica!

    Admiro-o como profissional Nassif, pois seus comentários economicos são um dos mais claros na grande mídia.

    Gostaria que visse alguns dos meus textos que passei a publicar no blig. Abraço

  6. Interessante você citar a
    Interessante você citar a vida de alguém que efetivamente trabalhou, de algum modo, para este país, diferente de outros que vivem apenas da crítica, sem nada construir, nada fazer. Falar é fácil, difícil é colocar a mão na massa, como advogados, médicos, professories, engenheiros e tantos outros.

  7. Sr. Luiz Nassif.
    adorei sua
    Sr. Luiz Nassif.
    adorei sua cronica, linda e simples.
    gostaria de uma informação, qual o investimento da IPAMIG em literatura? Sabe alguma coisa? Obrigado aguardo

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