Maira Vasconcelos
Maíra Mateus de Vasconcelos - jornalista, de Belo Horizonte, mora há anos em Buenos Aires. Publica matérias e artigos sobre política argentina no Jornal GGN, cobriu algumas eleições presidenciais na América Latina. Também escreve crônicas para o GGN. Tem uma plaqueta e dois livros de poesia publicados, sendo o último “Algumas ideias para filmes de terror” (editora 7Letras, 2022).
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No meio do asfalto, por Maíra Vasconcelos

por Maíra Vasconcelos

Estou pesada e talvez os chãos que tanto piso estejam a medir seus espaços em mim. Empenho-me fortemente, todos os dias, a levar a vida adiante. Com olhos e gestos de um animal bem cuidado, mirando à frente sem qualquer ilusão na tessitura da pele gastada. Conheço profundamente a potência da habitada tristeza: não há coisa que eu queira mais que a alegria – também a tranquilidade e organização da minha mente criativa. Luto pela alegria, todos os dias, porque sozinha e bondosa a alegria não vem. Alegrias não fazem doações e não são misericordiosas, a alegria não tem religião e não pertence a Deus; alegrias pertencem às conquistas e resistências do humano fadado a provar o gosto triste, sim. Procuro a alegria. Como se procurasse com as mãos o alento e sons do mar, como se girasse meu corpo pela areia em busca do mar que nunca chega, a tocar aquele ponto das águas que não alcançamos nem ao menos com a mirada. E rodamos e a pele fica áspera na areia, mas depois se recompõe. Levanta-se mesmo depois de sonhar com o desejoso mar.

A alegria corre voa evapora, mas tudo se refaz quando danço com o corpo alagado de sensações diversas, ah, tudo se equilibra quando o corpo dança. Vamos dançar? Dissipem-se de mim se suas carcaças não forem capaz de abraçar o querer e a tentativa incansável da paz. Da paz que nunca se tem, sabemos. Conheça a sua tristeza ou jamais saberá sorrir, realmente. Sorrio agora porque ontem fiquei muito triste. E não sei de quem são os olhos que por vezes me detêm. Saia. Isso que merece sair pela porta pode ser a tristeza que, às vezes, não me suporta com a força impositiva da palavra; viver sem o poder da palavra, viver fora da palavra, isso eu não posso, não peçam a extrema morte de mim.

Estou pesada e talvez os chãos que tanto piso estejam a medir seus espaços em mim. Os chãos se agarram a todo corpo e não esquecemos seus pedaços nunca mais. A minha pele triscou. Meu corpo guardará cada alçar cada frente cada ida aos chãos como se suportasse sustentar a vida que se fere a cada passo. Vou abrir a porta mais uma vez, ciao. Ainda, sei que não verei a contemplação extrema do mar, ah, se alcançássemos o meio mar, pisar o meio de um passo e não ver a mão da moléstia estendida lá fora, na rua, todos os dias, ao abrir a porta um meio passo num rio navegável, enquanto nossos rios são apenas um choro real infrutífero; por um barco que tremule bem vir adiante, um meio mar meio morto, mas não completamente morto pela travessia de uma paz impossível, fosse para ter um meio passo possível, entregaria meio ato de uma escrita, não precisaria da palavra por inteiro; por um meio passo que alcançasse a meia morte de um menino de uma menina, que fosse meia e não fosse inteira a morte que os leva tão pronto e pequeninos; por um meio passo um meio mar um meio porto um meio que se fizesse mais passo e menos ruela, quão miséria. Sim, tudo isso é real demais e a fantasia abandonou-me hoje como se assim eu falasse escrevesse desde o meio dessa cidade. Aqui, no meio de tudo. Estou pesada e talvez os chãos que tanto piso estejam a medir seus espaços em mim.

Maira Vasconcelos

Maíra Mateus de Vasconcelos - jornalista, de Belo Horizonte, mora há anos em Buenos Aires. Publica matérias e artigos sobre política argentina no Jornal GGN, cobriu algumas eleições presidenciais na América Latina. Também escreve crônicas para o GGN. Tem uma plaqueta e dois livros de poesia publicados, sendo o último “Algumas ideias para filmes de terror” (editora 7Letras, 2022).

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