O Centenário da Semana de Arte Moderna (II), por Walnice Nogueira Galvão

Podemos ler A arte de devorar o mundo – Aventuras gastronômicas de Oswald de Andrade, de Rudá K. Andrade, neto de Patrícia Galvão (Pagu) e Oswald de Andrade.

Oswald, sua mulher, Julieta, e Rudá em Piracicaba, em 1940.Fonte: O salão e a selva: uma biografia ilustrada de Oswald de Andrade, de M. Eugênia Boaventura. Editora Unicamp

O Centenário da Semana de Arte Moderna (II)

por Walnice Nogueira Galvão

Entre outros benefícios, as celebrações do Centenário estão provocando a publicação de trabalhos abordando aspectos até agora inéditos.

Enquanto esperamos que outros surjam, podemos ler A arte de devorar o mundo – Aventuras gastronômicas de Oswald de Andrade, de Rudá K. Andrade, neto de Patrícia Galvão (Pagu) e Oswald de Andrade. Chama-se Rudá tal como seu pai, só que o onomástico completo do pai é Rudá Poronominare Galvão de Andrade. Como é sabido, foi Oswald quem escolheu os dois prenomes indígenas.

É fácil confundir filho e neto, dado que ambos são xarás, portando o mesmo e raro prenome de Rudá. Detratores contemporâneos de Oswald disseminaram a vilania de que ele era tão desvairado que tinha dado ao filho o nome de “Lança-Perfume Rodo Metálico” – a marca mais popular nos carnavais da época, quando se cheirava éter à vontade, como se lê nos poemas de Manuel Bandeira. A vantagem do Rodo Metálico era a  bisnaga de metal, como o nome indica, enquanto as outras eram de vidro e estilhaçavam nas estrepolias da farra. Mas a calúnia é repetida até hoje.

Este livro analisa e comenta, fornecendo as devidas receitas, as preferências culinárias dos modernistas, com ênfase em Oswald, que apreciava a mesa farta e o refinamento do paladar, mas não enjeitava pratos mais corriqueiros, como a feijoada. Como se sabe, Oswald era muito rico na primeira fase de vida, e rico enquanto herdeiro, pois recebeu como legado do pai, dispensando-o de trabalhar, uma quantidade enorme de terrenos entre Cerqueira César e os Jardins, isto é, os bairros residenciais mais centrais da cidade.. 

Seu paladar fora afinado em Paris, destino habitual desde os 22 anos, quando fizera a primeira viagem, em 1912. Em Paris aprendeu requinte gastronômico e vanguardismo. Foi o craque de 1929, com a subsequente Depressão econômica, que o arruinou, tanto quanto arruinou outros artistas, a exemplo de Tarsila do Amaral, que precisou ganhar a vida como ilustradora e jornalista.  E quase arruinou os mecenas dos modernistas como Paulo Prado e Olívia Guedes Penteado, que saíram do crise com a fortuna encolhida.

Oswald conta isso em seus livros, e mais ainda na peça teatral O rei da vela, extraordinário sucesso quando pioneiramente encenada pelo Teatro Oficina, sob direção de José Celso Martinez Correia,  contrariando a voz corrente de que o teatro de Oswald não era encenável. Tanto é que já se tinham passado décadas desde que escrevera O rei da vela e O homem e o cavalo, ninguém ousando levá-las aos palcos. Quanto ao poema dramático O santeiro do Mangue, escatológico e blasfemo, nem se fala. Mas a montagem do Oficina, muito criativa, reinventou o teatro de Oswald: bastava encontrar o jeito de encená-lo, bastava ter o talento de José Celso.

Nem o próprio Oswald, nem Flávio de Carvalho, pensavam que sua dramaturgia não funcionaria no palco.  Oswald apalavrou O homem e o cavalo com Flávio de Carvalho para o Clube dos Artistas Modernos (CAM), que este comandava desde 1932, juntamente com os pintores Antonio Gomide, Di Cavalcânti e Carlos Prado, com sede em baixo do Viaduto Santa Efigênia, então endereço de prestígio.  O Clube era um foco da sociabilidade modernista e oferecia exposições, recitais, conferências e espetáculos.

Flávio fundara o Teatro da Experiência e estava dirigindo sua própria peça, O bailado do deus morto, no CAM. Sabe-se, e já houve quem o afirmasse, que se trata provavelmente do marco fundacional do teatro expressionista no Brasil. Mas, por isso mesmo, causou escândalo e acabou por ser proibida pela polícia, atendendo aos reclamos dos bem-pensantes. A proibição acarretou o fim do próprio CAM e a peça de Oswald não chegou a ser encenada – o que é uma pena. É bom lembrar que Paulo Mendes de Almeida, em De Anita ao Museu , chama Flávio de “o outro enfant terrible do Modernismo”, depois de Oswald, é claro. O CAM mal durou dois anos. E foi assim que o teatro de Oswald continuou inédito.

Mas, voltando à gastronomia: com este livro nas mãos, seria possível preparar um “jantar modernista” – e bom apetite!

Walnice Nogueira Galvão é Professora Emérita da FFLCH-USP

Walnice Nogueira Galvão

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