Urariano Mota
Escritor, jornalista. Autor de "A mais longa duração da juventude", "O filho renegado de Deus" e "Soledad no Recife". Também publicou o "Dicionário Amoroso do Recife".
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O Gordo e o frevo, por Urariano Mota

O Gordo e o frevo, por Urariano Mota

O Dia do Frevo e seus 110 anos ocorreram nesta semana, em 9 de fevereiro. Tantas vezes já escrevi sobre essa identidade pernambucana e tantas mais hei de escrever, pois o que é da natureza da gente não cansa. Mas hoje falarei da música a partir do Gordo, personagem do meu romance “A longa duração da juventude” **. Acompanhem, por favor, o reflexo do frevo na vida de um homem.   

“Nós estamos no gozo da aurora, na Portuguesa às onze da noite de uma sexta-feira, e o Gordo nos ensina os frevos imortais, de compositores que até hoje ninguém escuta ou fala. Jones Johnson, Toscano Filho, Zumba, Sérgio Lisboa, Nino Galvão. A sua fonte são as memórias da avó, dona Bangue, e do avô, o velho Sucupira, da infância que ele guarda nos discos vinis da Rozenblit. Tesouros. Ele fala num saber que desconcerta, mas não humilha, porque o pagamento será a sua lição. Como agora, num domingo em sua casa.

– Você já ouviu Jones Johnson?

– É algum americano, Gordo?

– É não. É um grande compositor de frevo do Recife. Você já ouviu ‘A mamata é boa’? ‘Você sabe’?

– Sei não, Gordo.

– ‘Você sabe’ é um nome de frevo, Júlio. – E o Gordo gargalha até as lágrimas.

– Hum… – falo, gutural, num tom de ‘eu, pecador confesso, que nada sei, mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa’.

– Não sabe, mas já deve ter ouvido. Escute aqui.

E na sala vem a revelação de um frevo quente, complexo, popular e erudito ao mesmo tempo. Com o calor do Recife maior que o quadro Frevo, de Lula Cardoso Ayres.

– E este? – o Gordo é incansável na lição. – Você já deve ter ouvido ‘vou formar a turma pra tomar banho na beira do mar… um banho de maré tomei’.

– Sim, claro. Quem não ouviu? – falo, como se falasse ‘pensa que somos zeros absolutos?’. Ao que ele volta:

– Isso é Banho de Conde, sabia? – é um ‘sabia’ que ele nos pergunta retórico, porque nunca sabemos. – Sabia? Pois, em Olinda a turma do Elefante canta esse frevo com ‘um banho em Pitombeira eu dei’, e a turma do Pitombeira canta ‘um banho em Elefante eu dei’. Sabia?

Então nós, que somos intelectuais, puxamos a conversa para o que sabemos, ou pensamos saber na Portuguesa :

– Gordo, quem é maior compositor de frevo, Capiba ou Nelson Ferreira?

Essa é uma discussão que rende mais cervejas que outra metafísica: ‘quem é maior, Dostoiévski ou Tolstói?’. Capiba e Nelson Ferreira conhecemos melhor que os clássicos russos, porque escutamos frevo desde a longínqua infância Então o Gordo, árbitro superior, fala:

– Os dois são grandes. Mas eu gosto mais de Capiba.

Isso, para muitos de nós, é um escândalo. O Gordo, o popular, ousa gostar mais de Capiba, um pequeno-burguês, um alto funcionário – enfatizamos o ‘alto’ – do Banco do Brasil, em lugar de Nelson Ferreira, um gênio mulato. Absurdo. Nelson Ferreira é maior, eu falo, sob o calor da cerveja e convicção:

– Olhe, Nelson Ferreira é completo. Ele é o Pelé do frevo. Ele toca, arranja, compõe tudo, do frevo de rua ao frevo de bloco e frevo-canção. Até propaganda do sabão bem-te-vi ele fez. O que pode ser maior que a Evocação número 1?

E o Gordo calado, a sorrir. Parece que os golpes não ferem o Olimpo da cultura popular. Voltamos:

– E não é só a Evocação número 1. Todas as evocações de Nelson Ferreira formam uma obra. Elas sozinhas justificam uma vida, entende?

O Gordo sorri, e responde:

– As Evocações são lindas. A gente não pode viver sem elas. Mas olhem Capiba, olhem o que ele compôs de frevo-canção. É para a imortalidade. Quantas vezes no carnaval, quando bate na gente uma fossa, uma lembrança triste, quantas vezes a gente não escuta Capiba falando o que a gente não consegue falar? ‘Eu bem sabia que esse amor um dia também tinha seu fim ….’ E ‘Você diz que gosta de mim, mas só pode ser brincadeira de berlinda, por que você mente tanto assim?…’ Hem? E Modelo de Verão? ‘Até as viuvinhas do artista James Dean vieram incorporadas e hoje as coisas estão pra mim’. E olhe que Capiba fora do carnaval é muito bom ou melhor. Quer melhor que Maria Betânia? ‘Saudade do beijo que nunca te dei’. E Cais do Porto? ‘Aquela luzinha que lá longe apaga e acende fazendo um sinal, quem sabe, pra mim…’. Isso dá uma revolução no peito. É aquele aperto de garganta em dona Bangue. Olhe, eu nem posso falar muito.

O Gordo, emocionado, vira a cabeça. E pede socorro ao garçom:

– Me dê uma vodca. Dupla. – E volta para nós, com os olhos rasos d’água. – Capiba é maior.

É claro, o que em nós é infância, quando valorizamos Nelson Ferreira pelo mundo perdido que não mais podemos ressuscitar, no Gordo é mais outro sentimento, o clássico que veio e lhe fala da falta de amor, da ausência de carinho, nestas noites de bebedeira. Então Capiba é maior por razões estritamente sentimentais, assim como as nossas, mas em outro ponto. Seria como uma mágoa de quem sofreu o desprezo, que não se apresenta de cara nua e limpa, hoje o sabemos. E volta o Gordo, em outro ponto da noite, a ligar sem se dar conta a conversa do frevo de antes:

A gente, quando fica apaixonado, é que fica idiota. Imbecil. Eu também já fui imbecil. Eu achava que a minha boa conversa, que o meu sentimento, a minha poesia, sabe?, a gente fica todo besta pensando que fala poesia, encantado, eu achava que isso fazia de mim outra pessoa. Eu acreditava que com a minha sensibilidade eu saía do meu corpo. Que a minha alma pura me fazia um homem novo. Eu pensava. Mas além de feio, eu sou mesmo é gordo e pobre. Só tenho isso contra. Pra piorar, apareceu pra minha amada um rapaz branco, classe média, formado em medicina. Só deu o Gordo nas paradas de sucesso. Primeiro lugar na rejeição. Aliás, eu não fui nem rejeitado. Como é que se rejeita o que não foi nem visto? Imaginem uma baleia que ama. Imaginem um elefante de poesia. Pra barrão, lavagem é luxo.

O Gordo cala, olha de lado, põe a mão gorda em meu ombro, e fala:

– Mas eu não sou isso não, meu amigo. Eu sou José Luiz, neto de dona Bangue, filho de Ana Rita, está entendendo? Eu sou um homem. Eu sei mais que todos esses cretinos juntos. Eles vão morrer. Eu também. Mas o meu mundo não morre. O meu mundo é imortal, você está entendendo?

E abre os braços, cantando com voz embargada um dos frevos que lhe falam ao coração:

 – Eu sou isto: ‘Vem conhecer o que é harmonia nesta canção, o Inocentes apresenta um lindo panorama de folião… Vem, meu bem, alegria que o frevo contém é a do meu coração’. Eu sou isso. Puta que pariu pro barrão!”

Publicado no Vermelho http://www.vermelho.org.br/coluna.php?id_coluna_texto=8272&id_coluna=93

**O romance aqui https://www.amazon.com/longa-dura%C3%A7%C3%A3o-juventude-Portuguese-ebook/dp/B01N48T0JU 

Urariano Mota

Escritor, jornalista. Autor de "A mais longa duração da juventude", "O filho renegado de Deus" e "Soledad no Recife". Também publicou o "Dicionário Amoroso do Recife".

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