Rui Daher
Rui Daher - administrador, consultor em desenvolvimento agrícola e escritor
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Onomatopeias de uma cidade, por Rui Daher

Onomatopeias de uma cidade, por Rui Daher

Em 2004, a prefeita de São Paulo na época, Dona Martha Suplicy, instituiu um concurso de crônicas sobre a cidade em comemoração aos seus 450 anos. Concorri. Não ganhei, mas entre as 2 mil crônicas apresentadas fiquei entre as 50 melhores e fui premiado sendo publicado no livro que comemorava a data. Apresento-a em “revival”, neste 25 de janeiro de 2019, pelos 465 anos da cidade, lembrando que expostas, hoje, as onomatopeias desta cidade seriam ainda mais estridentes e tétricas.

 

ONOMATOPÉIAS DE UMA CIDADE (São Paulo, 2004)

Quando a cidade de São Paulo completou quatrocentos anos choveu prata.

Anunciados pelas sirenes do edifício do jornal “A Gazeta” milhares de pequenos triângulos de papel laminado foram lançados sobre a noite paulistana de 25 de janeiro de 1954, uma segunda-feira.

Na expectativa de que cada pacote arremessado do céu se abrisse e despejasse as torrentes de gotas prateadas, o paulistano olhava para o alto, acompanhava os fachos de luz desenhados pelos holofotes e especulava sobre a tecnologia que propiciava aqueles efeitos.

Para as crianças as preocupações eram outras: o porquê de as gotas tão brilhantes lá no alto chegarem apenas bruxuleantes em suas mãos; a ousadia do par de renas que, simulando a perda do caminho de volta e adiando o reencontro com o frio do pólo norte, aceitara o serviço extra de lançar prata sobre São Paulo.

Na sacada de um prédio da Rua do Seminário, próximo ao Largo Santa Ifigênia, a preocupação era recolher o maior número daquelas gotas, juntá-las em montinhos cuidando para que não amassassem, para no dia seguinte do Colégio de São Bento mostrar aos amigos o tlec-tlec-tlec que elas faziam ao cair do céu.

Naquele mesmo ano as sirenes do jornal voltariam a se manifestar pelo menos por mais duas vezes, uuuóóóóóóó. Uma, na terça-feira de 24 de agosto, suspendendo as aulas que seguiam preguiçosas pela manhã: o presidente Getúlio Vargas estava morto. A outra, como em todas as meias-noites de 31 de dezembro, dando as largadas para a Corrida de São Silvestre –  vencida pelo iugoslavo Franjo Mihalic – e para o ano de 1955.

Fossem situações auspiciosas ou graves aquele toque de sirenes era percebido pelos paulistanos com a mesma atenção e respeito dedicados a um desfile da Banda dos Fuzileiros Navais do Rio de Janeiro, no Anhangabaú, ou a uma apresentação no Teatro Municipal da Orquestra Sinfônica Brasileira.

É claro que outras sirenes de sons parecidos se manifestavam na cidade, as do cotidiano, mas essas eram escassas e burocráticas: as das fábricas que circundavam os bairros próximos ao centro, pautando o regime de trabalho dos operários; as das ambulâncias, alertando para a sua pressa de 50 km/h; as do colégio, ensinando que a cada passar de ano a vida nos cobraria mais regras e menos pausas.

Agora que estamos próximos de comemorar o IV Centenário e meio da cidade – 4,5 numa representação mais adequada aos pragmáticos tempos atuais – confesso não acreditar que nesse dia irá chover prata. Até mesmo uma iniciativa isolada de um par de renas parece improvável. Do jeito que as coisas andam por aqui, elas têm preferido esquecer o verão e ir logo embora, ainda que para enfrentar o frio do pólo norte.

O certo é que tal fenômeno ainda não consta do programa de comemorações, que só dá conta de missas, concertos, apresentações musicais, desfiles, eventos esportivos. Ah, também teremos inaugurações, algumas delas simbólicas, como o foram, em 1954, a do Planetário – somente entregue ao público em 1957 – ou da Catedral da Sé, inaugurada sem as suas torres.

Sirenes deverão soar, ainda que não mais percebidas com o mesmo respeito. No mínimo terão que conviver com os novos sons. Antes controladas, delicadas, tímidas, hoje, são histéricas, apavorantes, oportunistas. Perderam a linearidade e aprenderam a nos alarmar em outras línguas: como a polícia francesa; ou como os serviços de saúde norte-americanos; ou ainda, sem critério, como o som fanhoso das focas.

A verdade é que, em cinqüenta anos, esses avisos sonoros mudaram muito, ficaram mais intrometidos, precisaram perder a delicadeza. E antes não se precisava de tantos deles e nem que fossem tão acionados. Afinal, acabada a  Segunda Guerra Mundial, assinada a paz, de quantos alertas precisaríamos nós se a esperança era de que São Paulo crescesse sem nunca poder parar?

Poder-se-ia serenamente continuar atendendo ao tilin-tilin-tilin dos bondes e, seguros, afastar-se dos trilhos ou alcançar os seus estribos. Aos fon-fon e bi-bi dos automóveis seguiríamos respondendo com acenos agradecidos diante do sorriso que nos saudava ou compreendia uma eventual falta de atenção. No máximo, chocadas com o atrevimento de um fiu-fiu, as moças disfarçadamente desviariam o olhar.

Durante o ano de comemorações que se aproxima, os sons de alarme que convivem com a cidade de São Paulo serão mais freqüentes e as formas onomatopéicas de reproduzi-los mais complexas e exclamativas. E não precisaria mais do que isso para entender o que mudou na cidade depois de 4,5 centenários.

Cabum, swooish, screeech, bam-bam, bruuum, bip-bip-bip, ratataaá-ta, plim-plim, pow(!), triiimmmm … 

Tente você também. Pense em alguns, mas sem desespero, pois uma coisa é certa: na manhã do domingo de 25 de janeiro de 2004, assim como aconteceu em 1954 e em todas as manhãs que se seguiram, os galos cantarão seus cocoricós anunciando para a cidade que todos já podem compor a sua onomatopéia para aquele novo dia.  

https://www.youtube.com/watch?v=fKxn_lPmfFc]

[video:https://www.youtube.com/watch?v=VAabpZpXmLQ

 

 

Rui Daher

Rui Daher - administrador, consultor em desenvolvimento agrícola e escritor

3 Comentários

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  1. As sirenes

    Assim como os ônibus atropelam os pombos, que confiantes nem os percebem, as sirenes de São Paulo alardeiam diuturnamente qualquer coisa, que já nem nos chamam mais a atenção.

    Dormimos ao som da sirene, se, e quando conseguimos conciliar o sono da São Paulo de hoje.

    A cidade mais chocante que eu vi foi Calcutá, ainda nos tempos em que São Paulo era humana.

    Achei que jamais eu veria miséria igual.

    São Paulo me desmentiu prontamente em poucas décadas.

    Calcutá

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    1. Pô, Amoraiza

      SE recebesse algo pelo que escrevo, neste post deveria dividir com você, Obrigado, emocionado. Abraçao, Quem dera alguns mais vissem nossa interação 

      1. Todo mundo vê

        Todo mundo vê, todo dia tanto quanto a miséria de São Paulo.

        Vê, participa, ignora, despreza, critica, sofre, faz alguma coisa e desacorçoa, cobra.

        Mas assim como os pombos, quem vê se acostuma e acaba tatuado no asfalto pelo busão que passa.

        Abrs.

        Melhoraremos

        Nada é para sempre.

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