Maira Vasconcelos
Maíra Mateus de Vasconcelos - jornalista, de Belo Horizonte, mora há anos em Buenos Aires. Publica matérias e artigos sobre política argentina no Jornal GGN, cobriu algumas eleições presidenciais na América Latina. Também escreve crônicas para o GGN. Tem uma plaqueta e dois livros de poesia publicados, sendo o último “Algumas ideias para filmes de terror” (editora 7Letras, 2022).
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Proteção é Vermelho, por Maíra Vasconcelos

(falemos de cores e meninos)

Ninguém dizia que ele estava ali, nem ao menos que diria aquilo a mim, da forma como disse: pomba-gira! Foram anos sem entender porque o menino Marcelo me chamaria de pomba-gira. Ele esteve mais à beira de um colapso do que qualquer outro de seus colegas, os outros meninos daquela casa-orfanato. Está bem considerar seus graves problemas, mas eu nunca havia visto Marcelo por ali, e ele nunca me havia visto, e nem assim hesitou ao chamar-me, sem nem ao menos dizer bom dia, e logo disparar: pomba-gira!

Marcelo era de passo mais transitório que os outros meninos da Casona, local de acolhimento dos meninos, nem sempre órfãos. Ali estava Marcelo: entre a casa da família, a casa emprestada, e o espaço meio-termo que era ele mesmo em algum lugar onde ninguém o alcançaria. Marcelo tinha um mundo próprio, sozinho, porque afinal ele estava mesmo sozinho; a mãe feria fortemente a sua alma de menino, ao ser uma mãe dependente química – o pai, este eu nunca soube nem ao menos se existia.

Mas no dia em que vi aquele menino com os punhos enfaixados, logo entendi tudo, além de encontrar Marcelo visivelmente dopado, contido por remédios. Mas foi passando por cima dessa turbulência toda, que Marcelo conseguiu ainda perceber e intuir, segundo suas crenças e modo de ver a espiritualidade, que a entidade pomba-gira poderia ter alguma relação comigo, uma pessoa até então desconhecida para ele.

Marcelo gostava de ver como eu me dava com os outros meninos, ele olhava olhava olhava, e queria que eu conversasse com ele, falasse brincando com ele, e logo me entrosasse com ele também. Assim, rapidamente! Mas vejam que nunca havia encontrado Marcelo por ali, e ele queria comigo uma amizade tão instantânea e fugaz, uma coisa de menino que estava a pedir-me muito mais do que os outros – eu olhava seu punho com aquela faixa branca e entendia o seu apelo. Porque ele queria utilizar-me para um fim de salvação, talvez. E depois, se assim nos encontrássemos, não seríamos amigos, mas teríamos uma ligação profunda demais.. Fiquei ali na Casona, eu, sozinha sem nenhum dos meninos, imaginando o que é salvar alguém.. Algo que talvez devesse acontecer, pois a nossa relação estava posta para qual fim?, a minha força chegaria ao objetivo de resgatar algum dos meninos?, ou somente a Marcelo?

Foi quando eu comecei a não entender a minha influência ali, naquele espaço com todos eles, às vezes eufóricos, às vezes desmanchados de tão quietos. E Marcelo se sobressaltava, ele queria a minha atenção somente voltada para ele, que fez com que eu tirasse uma foto de seu belo sorriso. Enquanto era tão difícil apenas distrair aos demais, jogar bola, e achar que isso os tiraria da rua. O efeito das minhas visitas, qual seria?, eu queria arriscar a minha pele e a pele deles, numa tentativa que talvez fosse.. Eu estava ali com um caderninho para rabiscos e outras besteiras, e uma máquina fotográfica velha, que os detinha algum tempo com o fascínio das imagens.

Tão difícil conseguir a atenção daqueles meninos, que várias vezes sentiam prazer em apenas rir da nossa cara, desobedecer e rir rir rir– da minha cara e de todos os voluntários que trabalhavam na Casona. Mas Marcelo não era de deboches, nem de raivas, ele sorria com maior frequência, sem ter os dentes e bochechas presos, sem ter a tensão fria e a adolescência que reprimida contida pairava em todos os demais.

Marcelo, sim!, se distraia fácil e tinha muita vontade de tentar estar ali. Sei que ele se desfez da rebeldia antes do tempo, desobediências já não o satisfaziam. Ele queria! E foi com essa vontade tão madura grande e esperta que ele pediu o meu caderno de capa vermelha emprestado: Marcelo queria escrever. E escreveu aquele pobre e repugnante relato, contou como cortou os punhos, a hora, o dia, a reação dos amigos, e como a mãe esteve a usar cocaína, naquele dia.

Agora, não sei contar isso de outra forma, senão com a realidade exposta, porque fora desta crônica, e fora do relato de Marcelo, esta realidade continua, e às vezes não sei o que fazer para tirá-la de mim, tão nua e fervendo. Não esqueço que Marcelo existiu, lembro-me, faço memória a Marcelo e aos meninos que são muitos, mas lembro também que eu tive o azar de acompanhar o seu processo, tão estranho e frouxo no ar. Isso que foi a sua coisa: de mais um punho atado. Cumpri até mesmo o papel de protagonista, quando perto de Marcelo eu não era ninguém, mas fui quase culpada: quem foi que deu esse caderno pro Marcelo escrever?; ele entrou novamente em crise, dizem depois de escrever no tal caderno.

Não me esqueço do menino Marcelo, porque passei a ver muitos outros Marcelos, em outros trabalhos, com outros meninos, passei a saber enxergar a beira, o pé que se dispõe a esse derradeiro fim de tudo, ou os pés que estão ali porque ali é o seu lugar, o lugar de perigo é a permanência do corpo inteiro de tantos meninos com os quais já convivi.

Mas agora vejo uma simplicidade em tudo isso que passou. Acho que pomba-gira não tem poderes sobre-humanos, acho que se existe essa pomba-gira que Marcelo aprenderia a ver, ela pode ser uma jóia vermelha de proteção – a proteção que eu tenho, sei que me acompanha a proteção-do-vermelho – e ficarei eternamente na dúvida se posso emprestá-la ou não, essa proteção vista talvez num palpável caderno vermelho vermelho vermelho, eu tenho esse proteger que Marcelo tentou buscar em mim, em minhas palavras?, ou em suas próprias palavras que não se sustentavam?, assim, viu sozinho, na sua solidão, a enorme necessidade de proteção da qual ele padecia, e que ele nunca poderia enfim tê-la. Então, Marcelo foi embora por escolha própria: por ser um tão desprotegido menino.  

Maira Vasconcelos

Maíra Mateus de Vasconcelos - jornalista, de Belo Horizonte, mora há anos em Buenos Aires. Publica matérias e artigos sobre política argentina no Jornal GGN, cobriu algumas eleições presidenciais na América Latina. Também escreve crônicas para o GGN. Tem uma plaqueta e dois livros de poesia publicados, sendo o último “Algumas ideias para filmes de terror” (editora 7Letras, 2022).

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