Urariano Mota
Escritor, jornalista. Autor de "A mais longa duração da juventude", "O filho renegado de Deus" e "Soledad no Recife". Também publicou o "Dicionário Amoroso do Recife".
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Walter Benjamin e o negro amarrado hoje, por Urariano Mota

Na notícia desta semana, o ouvidor afirmou que a forma como o homem foi carregado lembra a de um "pau de arara".

Walter Benjamin e o negro amarrado hoje

por Urariano Mota

Eu estava lendo sobre Walter Benjamin e de repente uma frase dele me acordou como se eu recebesse um raio:

“A revolução copernicana na visão histórica é a seguinte: considerava-se o passado como ponto fixo, atribuindo-se ao presente o esforço de se aproximar, tateante, do conhecimento desse ponto fixo. Agora essa relação deve ser invertida, recebendo o passado a sua reviravolta dialética, o irromper da consciência desperta. Atribui-se à política o primado sobre a história. Os fatos históricos tornam-se algo que acaba de nos acontecer: fixá-los é tarefa da recordação. E o despertar é o caso exemplar da recordação”.  

No romance “A mais longa duração da juventude”, eu havia notado:

“Enquanto escrevo, a vida que narro está ocorrendo aqui. Este passado que revivo não morreu, os personagens não são bonecos de cera. São pessoas que foram, que são e agem agora mesmo, em Olinda, no Recife. Não falo de entes mortos. Falo de quem caçavam como o terrorista Luiz do Carmo e perambula na Praia dos Milagres. Ele percorre a areia da praia antes que a caneta percorra esta página”.

Então isso me vem, numa triste associação à notícia de um homem negro amarrado e arrastado por policiais militares em São Paulo. O seu crime foi o furto de duas pequenas caixas de chocolate.  Esse dado fere a gente. Então os miseráveis também gostam de chocolate! E por não terem dinheiro, furtam o objeto do seu desejo. Trinta reais o valor do crime. E por isso merecem o tratamento de animais desobedientes.

Lembro Vauthier, o grande engenheiro que construiu o Teatro de Santa Isabel no Recife:  

“Madame Sarmento nos contou que como sua negrinha lhe tinha roubado seis vinténs, ela amarrou-lhe as mãos e deu-lhe umas boas chicotadas!!! Levantando- lhe a roupa!!! Sem nenhum constrangimento!!! Diante dos filhos!!! O mais velho deles observou que o posterior da negrinha não era mais bonito do que o de um cavalo, quando levanta a cauda. Qualquer pessoa poderia chegar a praticar coisas semelhantes num momento de excitação e envergonhar-se delas depois, mas contá-las. Que mulher! Que alma!…

Hoje o cadáver de um negro ficou boiando na praia, debaixo das nossas janelas, levado e trazido pelas oscilações das marés. Mil pessoas passaram, viam-no, pararam um instante antes de seguirem caminho muito filosoficamente. Aprecio pouco as ideias geralmente admitidas sobre cadáveres que tendem em alguns casos a conceder mais cuidados aos despojos sem alma do que ao ser quando está vivo – mas este descaso, essa indiferença geral perante a morte – é verdade que era um negro! Um negro vivo já é pouca coisa: o que será então um negro morto? Essa incúria generalizada com as exalações que emanam de um cadáver, tudo isso caracteriza de modo bem saliente esta barbárie, engastada na selvageria e mal maquilada em civilização”.

Na notícia sobre o criminoso arrastado: “A gente não pode naturalizar esse tipo de tratamento”, disse o ouvidor das polícias de São Paulo Cláudio Aparecido da Silva. “Aquilo é tortura, não é abordagem policial”. Para ele, existiam outras condições para render o homem, pois o número de policiais era grande e, no limite, o acusado poderia ter sido algemado pelas pernas.

Mas uma juíza do caso entendeu que “não há elementos que permitam concluir ter havido tortura, maus-tratos ou ainda descumprimento dos direitos constitucionais assegurados ao preso”. Um entendimento igual ao tempo em que a escravidão era legal no Brasil. Não havia tortura a negros escravizados, de um ponto de vista legal. 

Maria Graham, a digna escritora que visitou Pernambuco em 1821. Cito as palavras da inglesa:

“Os cães já haviam começado uma tarefa abominável. Eu vi um que arrastava o braço de um negro de sob algumas polegadas de areia, que o senhor havia feito atirar sobre os seus restos. É nesta praia que a medida dos insultos dispensados aos pobres negros atinge o máximo. Quando um negro morre, seus companheiros colocam-no numa tábua, carregam-no para a praia onde, abaixo do nível da maré-cheia, espalham um pouco de areia sobre ele”.

Na notícia desta semana, o ouvidor afirmou que a forma como o homem foi carregado lembra a de um “pau de arara”. A expressão é usada para descrever um instrumento de tortura utilizado contra as pessoas que eram consideradas inimigas da ditadura militar brasileira: “Aquele formato de carregamento, quando você vai fazer alguma analogia na história, é com o pau de arara”, disse.

E lembro: por um lado, vem o comportamento da sobrevivência sob os torturadores na ditadura brasileira.  Por outro, se fosse desenvolvida ao nível do real, do histórico, as torturas contra homens e mulheres dariam vômitos pela agonia da dor. Porque a realidade é ainda mais cruel que o mostrado em filmes de cinema. E os corações mais delicados, e hipócritas por extensão, se recusam a ver que os negros escravos no Brasil eram passados em moendas de cana, que expulsavam suas vísceras como bagaço. Outros, após o chicote, condenados à morte tinham as feridas abertas lambidas por bois. E aqui não preciso falar o quanto é áspera, cruel e ferina a língua de um boi. Poupemos os corações mais delicados. Mas de passagem menciono que  negros eram ferrados no corpo como os quadrúpedes na fazenda. 

Agora, em vídeo que circula nas redes sociais, o homem aparece sendo arrastado e carregado pelos policiais, colocado em uma maca e depois na parte de trás de uma viatura.

E leio sobre isso um comentário de leitor de jornal: “Queriam que a polícia militar transportasse o marginal numa limusine Mercedes Benz? Esses vermelhos corruptos não mudam”.

A vítima, ainda sem nome até agora, teve sua prisão preventiva decretada pela Justiça de São Paulo.  Como no tempo anterior para os escravos fujões.

 “A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil”, como escreveu  Joaquim Nabuco.

*Vermelho https://vermelho.org.br/coluna/walter-benjamin-e-o-negro-amarrado-hoje/

Urariano Mota – Jornalista do Recife. Autor dos romances “Soledad no Recife”, “O filho renegado de Deus” e “A mais longa duração da juventude”

Urariano Mota

Escritor, jornalista. Autor de "A mais longa duração da juventude", "O filho renegado de Deus" e "Soledad no Recife". Também publicou o "Dicionário Amoroso do Recife".

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