1984, revisitado, por Jean Pierre Chauvin

Capa da edição brasileira de “1984”.

1984, Revisitado

por Jean Pierre Chauvin

“Por trás de Winston a voz da teletela tagarelava a respeito do ferro gusa e da superação do Nono Plano Trienal. A teletela recebia e transmitia simultaneamente. Qualquer barulho que Winston fizesse, mais alto que um cochicho, seria captado pelo aparelho” (George Orwell).*

Está em cartaz, no SESC Consolação, a peça 1984, baseada no romance homônimo de George Orwell. A narrativa, adaptada por Robert Icke e Duncan Macmillan, foi traduzida pelo também diretor Zé Henrique de Paula. Quem leu a história, publicada originalmente em 1949, relembrará o alto impacto que a história provoca. A trajetória de Winston Smith, técnico responsável pelo apagamento de registros em jornais e arquivos, mostra uma das violentas contradições a que ele e seus colegas estão submetidos pelo sistema, sob a chancela de um suposto Grande Irmão – espécie de demiurgo cuja existência não se pode provar.

Cercados de miséria, espremidos pela rotina e praticamente impedidos de ler ou escrever, é quase natural que Winston, Julia e os milhares de pequenos funcionários dos quatro Ministérios atrelados ao Partido pouco conversem entre si (e nunca com os funcionários do refeitório). Quer dizer: o mundo imaginado em 1984 é de uma massa um pouco diferente da nossa, no sentido de que – bem ou mal, ainda temos a habilidade de comentar amenidades e aplicar a função fática em conversas de elevador.

Quando li o romance, tinha 15 anos. Estava no primeiro ano do ensino médio e a proposta partiu de nossa professora de Filosofia, Wanda Antunes – que se desligou do Colégio ao final daquele ano. Às quintas-feiras, além das aulas matinais, tínhamos dobradinha com a professora, no período da tarde. Não preciso salientar que meu dia preferido, na semana.

Ao final do segundo bimestre de 1988, foi agendada a exibição do filme (na versão de 1984, com trilha sonora do Eurythmics), sucedida pelo debate em torno do livro de Eric Blair (o nome por trás do pseudônimo George Orwell). Lembro-me nitidamente como fiquei mexido com a leitura do romance, cuja edição, cheia de anotações das leituras feitas, guardo até hoje. Durante o intervalo entre filme e debate, fiquei no pátio do colégio praticamente em silêncio, cogitando em como as cenas do filme iluminavam as passagens do livro (os dois minutos de ódio, o encontro de Winston e Júlia na floresta, o quarto que supunham não ser monitorado por teletelas, o discurso dissimulado de O’Brien).

A narrativa começa da melhor forma, como se o escritor rendesse homenagens a Nós, de Zamiátin, e a Admirável Mundo Novo, de Huxley. De modo similar aos romances do russo e do inglês, Orwell inicia a história situando o percurso de Winston Smith pela plataforma de trens. Uma paisagem aparentemente banal, especialmente para quem vive em grandes cidades.

Talvez o que mais importe, na adaptação da literatura para o tablado, seja considerar os paralelos que tendemos a fazer com as nossas vidas, tanto do ponto de vista pessoal (o intervalo que costuma haver entre a expectativa e a frustração; nossa capacidade de conformismo, a despeito dos ingredientes diários que levariam outras gerações à rebeldia mais do que justificada; a administração dos afetos, sem lugar no mundo plenamente administrado e regrado), quanto do ponto de vista coletivo (a padronização dos comportamentos; a menor qualidade da comunicação; a simplificação redutora do idioma, em nome da falácia linguística em Novilíngua).

Evidentemente, o que mais se destaca é a onipresença das teletelas (que não podem ser desligadas) tanto nos cubículos habitados pelas personagens, quanto nos espaços públicos e locais de trabalho. Sob esse aspecto, vamos bem encaminhados. Bastaria fazer uma enquete com seus amigos, familiares, alunos ou colegas de trabalho. Por exemplo: “como você se sente, quando esquece o smartphone (ou congênere) em casa?”. Em muitos casos, a resposta será: “eu não vivo sem celular”.

Quer dizer, Winston Smith leva algumas vantagens sobre muitos dentre nós. Ele desconfia de que os dois minutos de ódio não são páreo para os argumentos de Goldstein (o inimigo inventado pelo Partido do Grande Irmão); ele suspeita que haverá maior perspectiva de vida, para além do vai-e-vem entre a moradia miserável e o trabalho emburrecedor. Acima de tudo, ele percebe que a teletela participa decisivamente da manipulação da história e que a verdade é uma quimera. Em suma, o sistema que o oprime estrutura-se de maneira a que os cidadãos – despidos de autonomia e dignidade – acreditem não haver alternativa. Em nosso caso, não só fomos ensinados a acreditar em que tudo o que dizem os “grandes” jornais; pagamos caro por dispositivos que, dentre outras coisas, roubam nossos textos, imagens e voz, em nome da praticidade; que rastreiam nossos passos, em nome da segurança. Certamente evoluímos, em relação ao Smith de papel: aprendemos a custear o nosso monitoramento e acreditar que é possível defender a diversidade de comportamento, gênero e pensamento num mundo cada vez mais planificado pela economia dos bancos e oligopólios.

Deve ser por isso mesmo que, em duas cenas da peça 1984, o ator que interpreta Winston Smith (Rodrigo Caetano) enviou recados para a plateia. O primeiro deles (“Fora, Grande Irmão!”) foi repetido três ou quatro vezes, mas não despertou um conhecido protesto por parte da audiência, tão silenciosa. O segundo convite foi enunciado aos gritos, pelo mesmo ator, através da máscara (quando Smith era submetido à tortura final, dentro da temível sala 101): “Vocês, levantem-se! Levantem-se, todos!”. Adivinhem se a plateia se moveu?

Talvez não, porque “Não passava um dia sem que espiões e sabotadores, obedientes a ordem dele [Goldstein], não fossem desmascarados pela Polícia do Pensamento”**. Diga lá até quando o internauta dará crédito a uma emissora que construiu seu império (nada isento) sabotando outras; que ateou fogo em parte de suas instalações para dar uso eficiente do seguro; que apoiou uma das ditaduras no Brasil, entre 1964 e 1985; que fingiu pedir desculpas por isso, em editorial de O Globo, mas voltou a fazê-lo em 2016?

 

* George Orwell. 1984. 20a ed. Trad. Wilson Velloso. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1986, p. 8.

** Idem, Ibidem, p. 17.

Redação

2 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. Não acho que a comparação ao

    Não acho que a comparação ao “Grande Irmão”, com relação a emissora, não seja cabível…Talvez, uma comparação ao Buster Friendly, de Blade Runner…

    Aliás, todo esse cenário de 1984, parece forçado.

  2. Perfeita “revisita” !!!

    Livro inesquecível e instigante à época em que li. Mas, com o passar do tempo e, especificamente nos últimos anos, cada vez mais nos vinha à mente o domínio do “Grande Irmão”. Analogia perfeita do Jean Pierre! Quantas vezes nesse mesmo espaço que nos confere o Nassif, em nossos pitacos fizemos refência ao Grande Irmão e à manipulação do Teletela!!  Parabéns pelo Post, Jean Pierre!   Perfeita e atual essa “REVISITA” !!!

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador