Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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A dialética do senhor e escravo no filme “Expresso do Amanhã”

Mais um filme hollywoodiano de ficção científica distópico e pós-apocalíptico? Com elenco estelar dirigido pelo coreano Jooh-ho Bong em sua estreia em filmes de língua inglesa, “Expresso do Amanhã” (Snowpiercer,  2013) narra como uma espécie de arca ferroviária com sobreviventes da espécie humana após uma catástrofe climática que fez o planeta entrar em nova Era do Gelo, se transforma em um microcosmo da Terra. Em um gigantesco trem com centenas de vagões que circula indefinidamente pelo planeta cria-se um sistema totalitário com luta de classes, exploração, dominação e manipulação psicológica. Mas as dificuldades de distribuição e lançamento do filme apontam para uma produção com narrativa não convencional que foge da dualidade Bem/Mal lembrando a famosa dialética do senhor e escravo tal como descrita pelo filósofo alemão Hegel. Porém, com desfecho não convencional nem para Hollywood e nem para Hegel. Filme sugerido pelo nosso leitor Joari Carvalho.

Um filme com diversos problemas de produção e, principalmente, distribuição. A ideia de associar o ótimo diretor coreano Jooh-ho Bong com atores conhecidos nos EUA como Chris Evans (Capitão América), John Hurt, Ed Harris e Tilda Swinton era promissora dentro da atual política de Hollywood em globalizar os aspectos de direção e produção cinematográficas. Porém, algo não deu certo: mesmo já tendo sido exibido na Ásia, o filme ainda não estreou no Ocidente (nos EUA até o dia 31/03 não havia estreado e no Brasil e era esperado para esse mês nos cinemas brasileiros) e sua estreia tem sido adiada diversas vezes: diversas versões do filme parecem terem sido criadas, com diversos cortes que chegam a totalizar 20 minutos, tentando agradar os estúdios e desagradar o diretor Bong.

Por que essa dificuldade de lançamento de um filme com atores mainstream hollywoodiano com um tema sci fi aparentemente tão clichê? É o que vamos tentar descobrir.

O Filme

Baseado na HQ francesa Le Transperceneige, o filme Expresso do Amanhã (Snowpiecer, 2013) é ambientado em um futuro distópico e pós-apocalíptico. Numa tentativa de frear o aquecimento global, 79 países firmam um acordo de dispersar na alta atmosfera uma substância resfriadora chamada CW-7 como a última alternativa para evitar o colapso climático.

Mas o plano dá errado e ocorre um catastrófico efeito inverso: o planeta é congelado extinguindo toda a vida sobre a face da Terra. Os únicos sobreviventes são uma pequena parcela da população em uma espécie de arca indestrutível sobre rodas. Projetado por Wilford (Ed Harris), um engenheiro fascinado por trens e ferrovias e um cético em relação a emissão de CW-7 na atmosfera. Prevendo a catástrofe, criou um projeto faraônico de uma ferrovia interligando todos os continentes onde rodaria um gigantesco trem (o “Snowpiecer”) com centenas de vagões que circularia os 438 mil quilômetros em um ciclo exato de um ano.

Dezessete anos depois da tragédia climática, a Terra vive sua nova Era do Gelo com milhares de sobreviventes nessa arca ferroviária que se transformou em um sistema totalitário de exploração e luta de classes que lembra a distopia orwelliana de 1984. O engenheiro Wilford transformou-se numa entidade divina e mítica, glorificado em um misto de adoração e idolatria, que habita na locomotiva e controla as máquinas, comandando um sistema repressivo onde os mais pobres foram colocados nos últimos vagões imundos e sem janelas. São diariamente castigados de forma sádica e humilhados em contagens com finalidade de controle populacional feitos por soldados. O único alimento para os chamados “vagões da cauda” é uma barra de proteína escura e de péssimo aspecto.

Liderados por Curtis (Chris Evans), um grupo planeja iniciar mais uma revolta – ao longo dos anos outras foram reprimidas com terríveis chacinas. Mas dessa vez querem fazer diferente: com a ajuda de Song Kang-Ho (projetista do sistema de segurança do trem) pretendem atravessar toda a extensão do Snowpiecer até chegar à locomotiva para arrancar os controles das mãos de Wilford.

Tem início uma jornada pelas mais diversas formas de vidas humanas que são descobertas ao passar por cada vagão. Cada vez mais o espectador vai percebendo que o gigantesco trem é uma reprodução microcósmica de todas as mazelas da política, economia e a da estrutura de classes que levou o planeta à catástrofe de dezessete anos atrás. Vagões onde encontrarão as primeiras janelas depois de tantos anos, confrontos com exércitos fortemente armados, sessões arborizadas com jardins belíssimos e outros com aquários espetaculares. Além de vagões onde encontramos os filhos da classe média que entoam cânticos de idolatria a Wilford e outros da elite se divertindo em boates regadas a bebidas e drogas.

Hegel e a dialética senhor-escravo

O tema geral do filme são as estratégias de manipulação e dominação psicológica do Poder através da religião, drogas, entretenimento, o medo de ser jogado do trem ser congelado em segundos e a guerra como forma maquiavélica de controle populacional.

Fazendo a sinopse dessa maneira, parece que estamos em mais um daqueles filmes clichês hollywoodianos de corajosos heróis querendo libertar seu povo como em Jogos Vorazes (Hunter Games, 2012). Mas Expresso do Amanhã surpreende com uma narrativa que, quanto mais avança, vamos percebendo que não estamos numa simples batalha entre o Bem e o Mal. Nada é o que parece em um roteiro bem construído e cheio de reviravoltas, com um final primoroso com um sabor gnóstico: o confronto entre Bem e Mal representado pela luta Curtis versus Wilford, na verdade esconde uma estranha dialética que não transcende e nem encontra uma síntese.

Esse tema do confronto entre dominantes e dominados pela forma como é narrada pelo diretor coreano lembra bastante a famosa passagem da dialética do Senhor e do Escravo do livro Fenomenologia do Espírito escrito pelo filósofo alemão Hegel no século XIX. Passagem marcante na dialética hegeliana por ser o ponto de partida das reflexões de Karl Marx.

Vamos tentar fazer um resumo dessa reflexão hegeliana: O senhor obriga o escravo, ao passo que ele próprio goza os prazeres da vida. O senhor não faz sua própria comida e não acende seu fogo: ele tem o escravo para isso. O senhor não conhece mais os rigores do mundo material, uma vez que interpôs um escravo entre ele e o mundo. O senhor, porque lê o reconhecimento de sua superioridade no olhar submisso de seu escravo, é livre, ao passo que este último se vê despojado dos frutos de seu trabalho, numa situação de submissão absoluta.

Porém, o senhor só o é em função da existência do escravo, que condiciona a sua. O senhor só é reconhecido como tal porque é reconhecido pela consciência do escravo e também porque vive do trabalho dele. Nesse raciocínio o senhor seria uma espécie de escravo de seu escravo. Por uma conversão dialética exemplar, o trabalho servil devolve-lhe a liberdade. Mas aqui acabam as semelhanças entre o filme e a dialética hegeliana do Senhor e do Escravo.

 

Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

4 Comentários

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  1. Eu vi e…

    … nao entendi o motivo de tanta polemica. o filme nao tem nada demais, alem é claro de cenas muito bem executadas de luta.

    1. Poser é um termo pejorativo,

      Poser é um termo pejorativo, usado frequentemente nassubculturas punkmetalgótico, entre outros, para descrever “uma pessoa que finge ser algo que ela não é”, copiando vestimentas, vocabulário e/ou maneirismos de um grupo ou subcultura, geralmente para conseguir aceitação dentro de um grupo ou por popularidade em meio a vários outros grupos, mas que não compartilha ou não entende os valores ou a filosofia da subcultura.

      [video:https://www.youtube.com/watch?v=mDNuFOYuxNE%5D

       

  2. “Porém, o senhor só o é em

    “Porém, o senhor só o é em função da existência do escravo, que condiciona a sua. O senhor só é reconhecido como tal porque é reconhecido pela consciência do escravo e também porque vive do trabalho dele. Nesse raciocínio o senhor seria uma espécie de escravo de seu escravo. Por uma conversão dialética exemplar, o trabalho servil devolve-lhe a liberdade. Mas aqui acabam as semelhanças entre o filme e a dialética hegeliana do Senhor e do Escravo.”

    Em sintese, o vagão é uma cópia do sistema bancário que aprisiona a todos, e como tal é reconhecido pela consciência do escravo, porque todas as coisas surgem do movimento do seu trabalho nele.

    As semelhanças acabam por ai, porque os bancos dominam o mundo real por uma ficção interna do Estado. A liberdade de desenvolver a forma da existência escrava, porém, continua existindo, mas controlada exteriormente, através de uma mera forma dos meios de trabalho e produção que se confrontam na combinação que vem formar o “Expresso do Amanhã”: o mercado financeiro.

  3. Os empregos do futuro evitaram o apocalipse

    O futuro do trabalho  

    Importante seminário foi realizado em Genebra sobre o futuro do trabalho. O evento foi patrocinado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) e focalizou o impacto das novas tecnologias e dos novos métodos de produção sobre o emprego e a renda dos trabalhadores (International Symposium for Employers on the Future of Work, ILO, 2013).

    Os últimos anos têm sido marcados por crescente ansiedade, decorrente do medo da possível destruição definitiva dos empregos em razão da robotização e da revolução computacional. A atual escassez de emprego nos países avançados é usada como “prova” daquela assertiva.

    Não é a primeira vez que seres humanos se amedrontam com o avanço das tecnologias. Desde os luddistas da Revolução Industrial até a criação do motor elétrico, do telégrafo, do telefone, do computador e outros avanços, o senso comum vê na máquina um inimigo do emprego. Mas a própria história mostra a falsidade desse modo de pensar. A chegada das novas tecnologias na agricultura, por exemplo, esvaziou os empregos no campo, mas criou uma enormidade de postos de trabalho na economia em geral. As máquinas que substituíram os artesãos pela produção em série fizeram o mesmo serviço – o emprego explodiu nas cidades.

    Os papers apresentados no aludido seminário demonstraram à exaustão que o maior impacto das novas tecnologias não está na destruição dos postos de trabalho, e sim na transformação da estrutura de emprego e das formas de contratação do trabalho.

    Quanto à estrutura, as atividades de rotina e repetitivas, assim como as perigosas e insalubres, passarão a ser executadas por robôs e computadores pensantes que dispensam chefes, supervisores e controladores de qualidade, o que reduzirá os empregos da camada média da estrutura ocupacional. No topo da estrutura haverá a expansão de atividades que demandam capacidade para resolver problemas, intuição, persuasão e criatividade. Outros descem da camada média para a baixa.

    Ou seja, a entrada das novas tecnologias provoca uma polarização dos empregos que é acompanhada de uma polarização da renda dos trabalhadores. Ganham os que vão para o topo e perdem os que vão para a base da pirâmide. Ninguém arrisca dizer se e como esses trabalhadores conseguirão recuperar sua renda. Mas há quem veja neles os candidatos para subir na estrutura de emprego, a depender de boa educação e qualificação profissional, o que se choca com os resultados recentes do Pisa, em que o Brasil ficou entre os piores países em teste de raciocínio, ocupando o 38.º lugar num grupo de 44 países. Nossos alunos, em sua maioria, não conseguem resolver problemas que, antes de tudo, envolvem lógica e bom senso.

    No que tange às formas de contratar trabalho, as novas tecnologias fragmentam as atividades e exigem a formação de alianças entre parceiros que são típicas das redes de produção. Isso significa que os novos métodos de produzir fazem declinar o contrato tradicional de trabalho por prazo indeterminado e estimular as formas flexíveis de contratação e subcontratação, ficando o desafio para as instituições sociais encontrarem os modos de proteger os trabalhadores. Neste campo, o quadro é igualmente desanimador no Brasil ao verificar que desde 1998 tramitam no Congresso Nacional vários projetos de lei que buscam disciplinar a terceirização, e até hoje nenhum deles foi aprovado por causa da resistência de forças que sonham com um mundo que se transforma a passos largos e que exige adaptabilidade.

    Se as mudanças tecnológicas representam um sério risco para o emprego e a renda, isso se transforma em fatalidade num país como o Brasil, que pretende ancorar o crescimento em cima de um ensino precário e de uma lei trabalhista desatualizada. Essa equação não fecha, nem nos dias de hoje e muito menos nos dias de amanhã. É hora de acordarmos, porque os nossos concorrentes não estão dormindo.

    José Pastore é professor da FEA-USP, presidente do Conselho de Emprego e Relações do Trabalho da Fecomércio-SP e membro da Academia Paulista de Letras.

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