Aracy de Almeida, a Dama da Central

Por Mara L. Baraúna

Aracy Teles de Almeida (Rio de Janeiro, 19 de agosto de 1914 — Rio de Janeiro, 20 de junho de 1988)

Criada no subúrbio carioca, no bairro de Encantado, numa grande família protestante; o pai, Baltazar Teles de Almeida, era chefe de trens da Central do Brasil e a mãe, dona Hermogênea, dona de casa. Tinha apenas irmãos homens.

Estudou num colégio no bairro do Engenho de Dentro, passando depois para o Colégio Nacional, no Méier. Desistiu de continuar os estudos porque queria ganhar dinheiro e sair de casa. 

Começou a cantar aos onze anos na igreja evangélica, em terreiros de macumba escondido dos pais, e tocava cuíca no bloco ‘Somos de pouco falar’.

Mais tarde, conheceu Custódio Mesquita, por intermédio de um amigo. Cantou para ele a música Bom-dia, Meu Amor (Joubert de Carvalho e Olegário Mariano), conseguindo entrar a Rádio Educadora (depois Tamoio), em 1933. Ali mesmo, conheceu Noel Rosa e aceitou o convite, que ele lhe fez, para “tomar umas cervejas cascatinhas na Taberna da Glória”. Desde este dia, o acompanhou todas as noites e tornou-se sua maior intérprete.

Em 1936, foi filmado o famoso “Alô, alô, carnaval”, dirigido por Adhemar Gonzaga e produzido pelo americano Wallace Downey. Neste filme Noel Rosa sugeriu aos roteiristas e compositores João de Barro (o Braguinha) e Alberto Ribeiro, que alguns versos da canção Palpite Infeliz fossem interpretados pela cantora Aracy de Almeida lavando roupa num quintal modesto. Dizem que a Aracy ficou irritada com a sugestão de Noel Rosa e recusou-se a interpretar a cena, retirando-se das filmagens!

Aracy de Almeida era uma mulher culta, diferente e competente, não só pela voz , mas também pela disciplina. Ela chegava uma hora antes do show, experimentava todos os microfones, passava os instrumentos, conferia tudo com o operador de som. E dava muita bronca nos músicos, que sempre chegavam em cima da hora, quando não atrasados.

Em 1960, com a entrada da Bossa Nova e do Rock no Brasil, o samba deixou de ser prioridade na MPB. Logo, Aracy de Almeida, uma das figuras brasileiras mais importantes deste século, caminhou, sem frescura, para a TV, numa nova atividade, jurada de programas de auditório, onde criou fama como uma das artistas mais exigentes na escolha dos calouros.

Pessoa de fino trato, inteligência incomum e, paradoxalmente, mulher de maus modos quando exposta ao público. Aquele estereótipo que a televisão exacerbara  para consumo das massas, exposto cruelmente como um ser humano intratável, desglamurizada e permanentemente de maus bofes, na verdade guardava os contornos meio punks que ela já rascunhara na década de 30, quando ia cantar nos bordéis do Mangue, levada por Noel Rosa. 

A casa onde vivia, no bairro do Encantado, era casa no mais vasto sentido: ampla, com jardins ao fundo, janelas permanentemente abertas, ensolarada. E quadros de Di Cavalcanti, Clovis Graciano, Antonio Bandeira, Walter Wendhausen, Heitor dos Prazeres, Luis Canabrava, Aldemir Martins.

“Quero voltar para o Encantado”. E não adiantava insistir, falar dos compromissos assumidos. Era novembro. Deixava de lado contratos fabulosos em boates e televisão, queria de novo vestir seu traje caseiro. Confessava, enfim, que o Natal a pegava pelo pé. Tinha um incrível bom gosto e uma habilidade manual inacreditáveis para armar seus badulaques natalinos.  

Aracy de Almeida é vidrada no Velho Testamento. Evangelista por influência paterna, agora converteu-se ao judaísmo. Toda essa contradição místico-religiosa se conflita ainda no culto quase religioso a Noel Rosa, de quem é a melhor intérprete.

Tinha cúmplices fiéis, e Tico era um deles. Roqueiro, filho de Míquel e Abrahão, donos da  Vigotex – uma indústria de tecidos finos, responsável pelos trajes que ela adotara como uniforme, desde que abandonara os vestidos de laise e brocados que seu protegido Denner confeccionava para ela. 

Araca era uma espécie de precursora natural dos grandes transgressores que ditavam mudanças comportamentais. Foi existencialista antes de Sartre e Simone de Beauvoir, foi hippie bem antes dos abalos provocados por Woodstock. Enrolando um baseado e guardando-o entre as dobras da camisa, saía para desarrumar as noites paulistanas a bordo do belo Mercedes guiado por Tico, no Cadillac de Denner, cuja instalação do primeiro atelier ela patrocinou. 

Em 1968, a pedido da própria Aracy, Caetano Veloso compôs uma música para ela, “A voz do morto”. Ela a gravou, num compacto-simples, para a Bienal do Samba de São Paulo daquele ano. O morto, claro, era Noel Rosa. Não se sabe por que, a música foi proibida pela censura, e ficou praticamente desconhecida. Mas ela ainda a cantava no ano seguinte, no show Que maravilha!, com Jorge Ben e Paulinho da Viola. Aracy gostava daquela turma nova. Eles a adoravam.

Aracy de Almeida nunca foi bonita. Sempre com um palavrão cabeludo engatado na boca, gírias em escala industrial, não atraía muitos amantes. Já os seus principais amigos eram todos homens, como Maria, Vinicius, Fernando Lobo, Clóvis Graciano, Di Cavalcanti, Carlão Mesquita e Aldemir Martins.

Ainda assim, Aracy possuía um tesouro que não se furtava a exibir a amigos, muito pelo contrário: os seios. Eles eram uma unanimidade para quem os tinha visto – lindos. São vários os relatos de Aracy mostrando os seios em boates, restaurantes e festas.

A Aracy que morreu em 1988 não era mais a artista favorita de amigos influentes e interessantes.  A cantora dos versos mais tristes do samba e marchinhas surreais, a amiga que ministrou supositório em Antônio Maria, a mulher que tinha orgulho de seus seios, que gastava todo o dinheiro que ganhava com presentes para os amigos, ouvinte de Debussy, que dizia gostar mais de cachorro do que de gente, refugiada em sua casa no Encantado, fazendo feira, lendo a Bíblia, foi enterrada numa véspera de São João. Milhares de pessoas cantaram “Não me diga adeus” (de Luiz Soberano, J. C. da Silva e Paquito), seu grande sucesso de 1948.

“Costumo dizer que Aracy de Almeida elevou o palavrão à categoria de uma cantata de Bach.” Hermínio Bello de Caravalho.

 Saiba mais sobre Aracy em:  Aracy: a voz do coração, da página Noel Rosa – 100 canções para o centenário  

Aracy de Almeida – Momentos Musicais da Funarte 

Aracy de Almeida: mulher do futuro, por Alexandre B. de Souza e Leonardo S. Prado

Aracy de Almeida : o samba em pessoa – Rádio Batuta

O centenário de Aracy de Almeida, a preferida de Noel Rosa, por Elson Rezende e Luciano Hortencio

A Dama do Encantado, por João Antônio

Dicionário Cravo Albin

A paixão Aracy de Almeida segundo Hermínio Bello de Carvalho

Projetos tentam reabilitar a imagem de Aracy de Almeida, lembrada como a jurada ranzinza da TV, por Silvio Essinger

Wikipédia

Homenagens:

Aracy de Almeida: rainha dos Parangolés e Arquiduquesa do Encantado, por Hermínio Bello de Carvalho 

 A Dama do Encantado : Tributo à Aracy de Almeida, por Olívia Byington

Espaço Cultural Aracy de Almeida 

Praça Cantora Aracy de Almeida, Projeto de Lei Nº 1336/2003 

Vídeos:

Redação

3 Comentários

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  1. Aracy de Almeida e seus parangolés

    nas palavras de Mara 

    “Araca era uma espécie de precursora natural dos grandes transgressores que ditavam mudanças comportamentais. Foi existencialista antes de Sartre e Simone de Beauvoir, foi hippie bem antes dos abalos provocados por Woodstock.”

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