As marcas do escravismo na sociedade

Comentário ao post “A chegada dos novos tempos – 4

Fomos forjados uma nação e que ainda hoje assombra-nos o espectro socioeconômico de uma sociedade vincada pelas marcas do escravismo. Uma sociedade marcada pela divisão político-econômica entre senhores e escravos, pela herança fenomenal do habitus (BORDIEU) sociocultural de 300 anos de regime escravocrata no Brasil. Talvez para se compreender melhor a importância, para educação brasileira e a visão de mundo da sociedade brasileira, de se estudar a história das mentalidades, seja observar melhor a definição de habitus:

um conjunto de pensamentos, valores, gostos e comportamentos que foram culturalmente adquiridos na infância e que o indivíduo presume serem “normais” e/ou “o que todo mundo faz”. Habitus é a herança social expressada nos hábitos, disposições e “atos impensados” que conferem ao indivíduo: “disposição para agir de um jeito, para entender as experiências de uma certa maneira, para pensar de uma certa forma” (Grenfell e James, 1998, p.15). (BROCK & Cols., 2011, p. 82)

Isto me faz concluir que por mais que positivamente Estado e Sociedade instituam leis, regras, direitos humanos, condutas politicamente corretas, cotas raciais, ativismos midiáticos e de mercado há que se levar em conta a presença seminal, espectral, subliminar do habitus arraigado na mentalidade cultural da nação. Há que se ter paciência, ternura, empatia, tato (sentido de tatear), determinação, atitude – processos seculares – para vingar uma transformação de mentalidade (internalização) do ancestral habitus e construir-se socialmente outra mentalidade humanística, plural, tolerante, afirmativa de valores sociais e da ética.

 En passant, no livro Raízes do Brasil, Sérgio Buarque de Holanda, ao analisar nosso sistema político-social, afirma: “…, está em pretender-se compassar os acontecimentos segundo sistemas, leis ou regulamentos de virtude provada, em acreditar que a letra morta pode influir por si só e de modo enérgico sobre o destino de um povo. […] Escapa-nos esta verdade de que não são leis escritas, fabricadas pelos jurisconsultos, as mais legítimas garantias de felicidade para os povos e de estabilidade para as nações. Costumamos julgar, ao contrário, que os bons regulamentos e a obediência aos preceitos abstratos representam a floração ideal de uma apurada educação política, da alfabetização, da aquisição de hábitos civilizados e de outras condições igualmente excelentes. No que distinguimos dos ingleses, por exemplo, que não tendo uma constituição escrita, regendo-se por um sistema de leis confuso e anacrônico, revelam, contudo, uma capacidade de disciplina espontânea sem rival em nenhum outro povo.” (Holanda, 1995, p. 178)

Ontem mesmo, sapeando por aí, ouvi na loja de móveis aqui da periferia do centro do mundo o seguinte acontecido relatado pela vítima, uma senhora negra vestida com distinção carregando sacos de compras do supermercado: ela trabalha como ajudante de cozinha numa churrascaria simples do bairro e o churrasqueiro (eu o conheço, moreno cabelo curto crespo) lhe perguntou no serviço onde tinha bombril e ela disse que lá em cima na cozinha (tinha que subir uma escada) e o churrasqueiro, brincando, colocou a mão no cabelo dela e disse: – acho que vou pegar esse daqui mesmo! No que ela respondeu com grosseria a brincadeira de mau gosto preconceituosa e foi reclamar para a dona da churrascaria o acontecido… No dia seguinte, a dona mandou embora o churrasqueiro. A colega de trabalho vítima foi interceder junto a dona para que então mandasse ela embora também, pois ela retrucara com uma baixaria também. A dona disse-lhe que já havia tido reclamações de clientes do modo mal educado de zombarias e judiações do churrasqueiro comportar-se no trabalho e, mais essa com ela, fora a gota d’água… No outro dia, a mulher do churrasqueiro, mulata voluntariosa de roupa justinha, junto com o demitido, foi conversar com a dona da churrascaria…

A ajudante de cozinha, vítima da brincadeira de mau gosto entendida uma discriminação racial, disse para mim, que só agira assim porque fora injuriada, no serviço, por ser negra de cabelo ruim e foi reclamar atrás dos seus direitos…

Luis Nassif

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