Foto: FGV/CPDOC
Publicado por Celina Vargas Amaral Peixoto
“GETÚLIO VARGAS, MEU PAI” de ALZIRA VARGAS DO AMARAL PEIXOTO, 2017.
Tanto em 1945, quanto em 1954, tínhamos condições para resistir, mas G. V. não o quis. Em 45 fez exatamente o que sempre aconselhava–me a não fazer; “ Não se cutuca onça com vara curta” Ele cutucou, provocando a própria deposição e proibindo qualquer reação. A 19 de Abril de 45 respondendo a um apelo que lhe era feito para que se candidatasse, ao em vez de apoiar o Gen. Dutra, declarou: “ Pela primeira vez estou diante de um dilema e não sei qual é o meu dever. Se aguento um pouco mais, para vencermos a Paz, pois a guerra já vencemos, reconstitucionalizo o país e o entrego ao meu sucessor, indo aproveitar este restinho de vida, ou se renuncio agora, largo tudo, jogo na cara deles este governo que eles pensam que é tão bom. Estou enojado, mas hesito, porque sei que deixo atrás de mim um rastilho de pólvora”.
O trecho acima faz parte do livro “Getúlio Vargas, meu pai”, lançado originalmente em 1960 e que ganha sua segunda edição com memórias e escritos inéditos de Alzira Vargas. Leia mais abaixo:
Da Ilustríssima
No dia seguinte recebo a notícia de que estava com “pólio”. […] Altamente perigoso na idade dele, 24 anos, e de um caráter violento. Pouco depois, outro telefonema me dizia que ele já tinha desordem no falar. Aí, não tive outro remédio e contei tudo. Minha mãe, é claro, não dormiu e, às cinco da manhã, tomou um avião militar e foi para junto dele. Meu pai não podia. Devia ser recebido oficialmente pelo governo do Estado [de São Paulo], receber homenagens militares, inaugurar uma exposição e tudo isso em horas previamente marcadas.
Eu passei a noite em claro. Foi meu penúltimo apelo a Deus. Dizia para mim mesma: “Se eu ficar quieta e sem dormir ele estará ainda vivo amanhã e se ainda estiver vivo eu vou salvá-lo”.
Cheguei a São Paulo duas horas depois de minha mãe. Encontrei-a em prantos em um quarto, dizendo que não tinha mais esperanças. […]
Papai, livre de seus compromissos oficiais, chegou. Depois de algumas palavras de ternura às quais meu irmão mal podia responder, chamou-me e disse: “O Roosevelt dentro de cinco dias passa por Natal e quer ter um encontro comigo. Ele vem secretamente de Casablanca, onde esteve com o Churchill, mas eu não posso deixar meu filho assim”. Respondi-lhe: “Vai, pode ir tranquilo. Mamãe e eu ficamos aqui. Eu não volto enquanto ele não ficar bom. O senhor não pode deixar de ir”¹. Houve o encontro em Natal. Mas queria ser chamado de volta ao menor sinal de piora. Roosevelt havia sido vítima do mesmo mal que fulminou o meu irmão. A guerra estava em pleno apogeu. Não era possível que ele embarcasse preocupado. Disse a meu irmão, que ainda estava plenamente lúcido: “Quando papai chegar para se despedir, diz a ele que tu estás te sentindo bem e deseja-lhe boa viagem. Depois eu te explico”. E assim foi.
Estávamos em fins de janeiro e, embora um dos médicos assistentes me tivesse dito que a doença já atingira o bulbo, recusei admitir a derrota. […] Decidimos buscar um pulmão de aço. Foi difícil achar. Conseguimos um na Argentina por intermédio do sr. Eliezer Magalhães. Mas quando chegou já era tarde! Já havia atingido o bulbo. Veio a visita da saúde e ele quis ver seus amigos. Entraram todos como uma despedida. Meu marido […] chamou-me e me disse: “É melhor avisar seu pai”. Reagi. “Ele não vai morrer!” “Pode ser que não, mas se for acho que ele preferiria estar presente.” Telefonei e disse a papai que viesse. Getulinho começara a delirar desde a véspera e eu não queria que fosse verdade.
Papai chegou em tempo para ser reconhecido e assistir a sua agonia e morte. Era o dia 2 de fevereiro. Pouco mais que uma semana, eu me recusava a reconhecer minha primeira derrota. Pensava que o pudesse salvar. Quando minha mãe em prantos me chamou para vê-lo pela última vez, recusei. Queria me lembrar dele como sempre o havia visto, vivo. Mas não foi aí que meu pai chorou.
Quando, fugindo das cerimônias do vestir, do preparar, entrei em uma das salas, encontrei meu pai conversando com os médicos e agradecendo-lhes a dedicação e o interesse por seu filho. Haviam feito tudo o que era possível. Já me ia retirar da sala quando papai, virando-se para um dos médicos reconhecidamente católico e crente, perguntou-lhe: “O senhor que é católico praticante e também é médico talvez possa responder a uma minha pergunta: ‘Quando é que a alma entra e quando é que sai do corpo?'”.
Saí do quarto para não ouvir a resposta que seria tão vaga quanto os nossos conhecimentos sobre o assunto. Evidentemente o doutor não conseguiu responder. Falou em sopro divino, falou que a alma é quem faz o corpo viver, falou em todas as teses já debatidas por todos os filósofos e… Ficou assim. Ele assentiu com a cabeça e não tratou mais do assunto. […]
Seguiu-se um período infernal em nossas vidas. Minha mãe, que sempre fora uma das mais belas e elegantes de nosso meio, entregou-se ao mais cruel desespero. Ensimesmada, passou todo um ano sem sair sequer de seu quarto. Como e quando eu nunca soube, mas alguém havia sussurrado em seus ouvidos que Getulinho havia sido vítima de um “trabalho” contra meu pai. Como ambos possuíam o mesmo nome, Getulinho absorvera o malefício destinado a Getúlio e [ela] afastou-se de meu pai. Pela primeira vez passaram a dormir em quartos e horários separados, eles que sempre haviam compartilhado o mesmo leito. Ela, que sempre fora o aguilhão que o impulsionava para a frente, faltara-lhe no momento mais terrível de sua vida.
Preocupada em recuperá-la esqueci-me, durante algum tempo, de meu pai, de meu serviço e de meu marido. Até que um entardecer, um assunto urgente me fez entrar intempestivamente no gabinete de meu pai. Encontrei-o só, um monte de papéis que deviam ser assinados à sua frente, e ele, olhando o vazio, permitiu que duas lágrimas lhe corressem pelo rosto. Assustou-se quando me viu e fingiu ser um resfriado. Também fingi não ter visto. Dei-lhe o recado urgente e depois me sentei a sua frente como se fosse despachar, como de costume. Senti sua solidão. De repente, como quem não quer saber, fiz-lhe a seguinte pergunta ingênua: “Papai, vovó foi muito severa contigo?”. Levantou a cabeça que havia voltado para seus decretos e me disse: “Foi. Por que você quer saber, sua bisbilhoteira?”. Respondi: “Porque o senhor tem tanto medo de ser amado, ou, por outra, de se entregar, que deve ter havido alguma coisa na sua infância que o reprime de mostrar suas emoções”.
Não sei se meu pai derramou outras lágrimas além destas. Nem mesmo sei se alguma vez chorou por mim. Quando estive gravemente doente, quando me operei, quando fiquei noiva, quando me casei e parti, quando por questões matrimoniais e de serviço me afastei dele. Nada sei porque não vi. Espero que sim. O que sei é que todas as vezes em que ficava longe dele muito tempo, me chamava de volta.
1. Em outra versão do episódio: “Tanto ele como meu marido deveriam regressar aos seus respectivos postos. Meu pai chamou em segredo meu marido e disse-lhe que deveria encontrar-se com o presidente Roosevelt, em Natal, em sigilo. Nada poderia transparecer antes”.
ALZIRA VARGAS (1914-92) filha de Darcy e Getúlio Vargas, foi auxiliar de gabinete da Presidência da República e responsável pelo arquivo de seu pai.
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Volta ao passado
Pois é…. Falando em Getúlio, parece que vamos necessitar outra Revolução de Trinta….