As sequências em “bullet time” do filme “Matrix” (“The Matrix”, 1999) teriam se inspirado em trechos dos Evangelhos Apócrifos Gnósticos do início da Era Cristã? As narrativas do cinema hollywoodiano atual parecem se estruturar em dois mitos: o “monomito” da jornada do herói (Queda,Martírio, Morte e Ressurreição) e o “insight” místico de que a realidade é uma ilusão.
Em minhas pesquisas iniciais sobre Cinema e Gnosticismo no Mestrado, o texto “The Clouds Astonished – Gnostic Themes in Popular Cinema” (As Nuvens Atônitas – Temas Gnósticos no Cinema Popular) foi um dos primeiros subsídios em encontrados. O problema é que o texto parece ser apócrifo, apenas assinado por iniciais ou pseudônimo. Há tempos esse texto circula por fóruns de discussão sobre cinema na Internet, sem se saber exatamente a fonte.
A despeito da sua natureza não-científica, o texto oferece um interessante paralelismo entre as visões criadas em trechos dos evangelhos apócrifos gnósticos e sequências de filmes, como no filme “Matrix”: os efeitos em “bullet time” e o congelamento de ações e objetos enquanto a câmera gira comparado com a imagem descrita no Evangelho “Atos de João” que descreve o momento do nascimento de Cristo onde as “nuvens ficaram atônitas” e os “pássaros pararam” em pleno voo.
Além disso, o texto sugere uma estrutura mítica a partir da qual os filmes gnósticos são construídos: em primeiro lugar esses filmes partilhariam de um “monomito” comum a todos os filmes, a narrativa do “herói de mil faces” tal como descrita pelo historiador e mitólogo Joseph Campel (veja CAMPBEL, Joseph. “O Herói de Mil Faces”, Pensamento, 1995) – o drama da jornada de queda, martírio, morte e ressurreição do herói. Sobre essa narrativa comum o filme gnóstico construiria outra narrativa arquetípica: o súbito “insight” do herói de que a realidade seria uma ilusão.
O texto ainda lança uma hipótese para o súbito aparecimento de temas míticos gnósticos no cinema popular contemporâneo: esses filmes expressariam uma nova sensibilidade a partir do surgimento das interfaces virtuais e os efeitos com imagens geradas em computador: o crescimento dessas tecnologias no horizonte cultural que sugere uma noção plástica da realidade, como uma estrutura ilusória que poderia ser construída e manipulada.
Confira abaixo esse texto:
AS NUVENS ATÔNITAS – TEMAS GNÓSTICOS NO CINEMA POPULAR
Por FP
Quando, no filme “Show de Truman” (The Truman Show, 1998), o herói é questionado sobre porque ele não percebia que era a única pessoa real em uma cidade fictícia povoada por atores, o diretor do espetáculo (Cristoff) responde: “Nós aceitamos a realidade tal como nos é apresentada.” Este é o tema comum dos sistemas de crenças heréticas agrupados como Gnosticismo, que floresceu pouco antes do advento do Cristianismo. Em linhas gerais, os Gnósticos também acreditavam que vivemos prisioneiros em uma obra de ficção, dentro da qual somente o conhecimento pode nos libertar.
Qual a diferença entre o mundo |
No filme “Matrix” (The Matrix, 1999), o protagonista é indagado: “Alguma vez você já teve um sonho, Neo, onde você tinha tanta certeza que era real? E se você fosse incapaz de acordar desse sonho, Neo? Como saberia a diferença entre o mundo onírico e o mundo real?”
O escritor Philip K Dick, que foi grandemente influenciado por seus estudos sobre o Gnosticismo e por suas próprias experiências místicas, em “The Adjustment Team ” (a adaptação cinematográfica é “Os Agentes do Destino” – 2011) descreve o trabalho de um grupo de seres que, enquanto os humanos dormiam, reorganizavam a realidade que rodeava. Embora haja uma linha tênue entre paranoia e questionamento, essas visões apontam para uma estrutura mais profunda por trás das aparências. E cada vez mais esse questionamento tem sido expresso através do cinema. Certamente tal questionamento gnóstico de nossa experiência provou ser um terreno fértil para o cinema elaborar narrativas que constroem realidades alternativas – fato que torna muito desses filmes verdadeiras peças de ironia e auto-referência.