Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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Fotos colorizadas digitalmente fazem revisão hiper-real da História

Cresce o número de artistas digitais que tem se dedicado a colorizar através de computação gráfica fotografias de personagens e eventos históricos do século XIX e começo do século XX. É como se quisessem transformar sombras de um passado distante em eventos e pessoas mais próximas e familiares ao nosso presente. Ao mesmo tempo temos o revisionismo do politicamente correto que retira digitalmente cigarros de fotografias de antigos personagens da política e do cinema. Essa obsessão revisionista da História seria o sintoma do fim do chamado “tempo histórico” pela expansão do presente. Uma forma alterada de tempo que substituiu o tempo histórico onde o presente foi tão inflacionado pelas tecnologias virtuais e hiper-reais que começou a absorver todo o passado segundo a sua imagem e semelhança.

No final do filme Obrigado por Fumar (2005), o senador ambientalista líder de uma feroz cruzada antitabagista defende em uma entrevista na TV a utilização de tecnologia digital para “atualizar filmes antigos, tirando de cena os cigarros”, que seriam substituídos, por exemplo, por pirulitos inseridos digitalmente. “Mas isso não é mudar a História?”, pergunta uma assombrada repórter. “Não, eu acho que estamos melhorando a História”, responde convicto o senador.

Pois essa tendência revisionista em relação ao passado parece ser uma obsessão na atualidade. Artistas como Jordan Lloyd, Dana Keller e Sanna Dullaway são alguns exemplos dessa tendência de colorizar digitalmente fotografias históricas do final do século XIX e início do século XX. A cuidadosa adição de cor produz o efeito de alterar dramaticamente nossa percepção da História: de uma relíquia do passado, as fotos passam a adquirir um estranho brilho de ser uma extensão do presente.

Elizabeth Taylor (crédito: Sanna Dullay)

Por exemplo, as fotos colorizadas de Audrey Hepburn ou de Elizabeth Taylor as transformam de atrizes da história do cinema em estrelas sexy de hoje. A foto de Einstein sentado em uma praia nos dá uma nova dimensão do gênio: como se a textura dos tecidos das roupas, o brilho do sapato da companhia do cientista e o cabelo branco brilhando ao sol conferissem uma percepção de atualidade. As fotos não parecem mais representar algo do passado, mas presentificar, atualizar.

Audrey Hepburn (crédito: Sanna Dullaway)

Na opinião da artista Dana Keller, fotos de figuras históricas, eventos famosos e velhas fotos de famílias deixam de ser “sombras de um passado de um tempo muito longo para nos lembrar ou se relacionar”. Com a colorização estabelecemos uma “familiaridade renovada com o passado, forçando a ver uma fotografia antiga com uma nova perspectiva, como se o passado não fosse há tanto tempo assim”.

Se de um lado nessa tendência revisionista do passado temos a colorização digital, que esses artistas definem como um “hobby” pessoal, de outro lado temos outro caso mais agressivo: o revisionismo politicamente correto da censura do cigarro nas fotos. Como o caso do pôster de uma mostra de filmes de Jacques Tati na França onde a famosa silhueta instantaneamente reconhecida do personagem Monsieur Hulot com o cachimbo na boca é substituída digitalmente por um catavento. O olhar politicamente correto do presente não suportaria em uma foto tão icônica a convivência de uma criança com a presença do cachimbo e do tabaco.

O que há em comum nessas duas atitudes revisionistas é o de olhar o passado como algo que talvez não esteja a tanto tempo assim distante de nós. É como se o passado fosse uma “familiaridade renovada”, isto é, uma espécie de extensão do presente. Essa compressão do tempo torna-se tão violenta que muitos espectadores ao assistirem filmes western de John Wayne em preto e branco feitos na década de 1950 passam a acreditar que são realmente contemporâneos da época das diligências do século XIX.

Monsieur Hulot não deve mais usar cachimbo

O paradoxo dessa colorização digital de documentos históricos é que se o objetivo declarado é de encontrar neles o mundo “real e vibrante” da época, ao mesmo tempo revela um desejo arbitrário de submeter a alteridade do passado à banalidade do presente.

O que está por trás dessa presentificação do passado? Que sintoma do imaginário social representaria essa atitude revisionista de tornar o passado familiar ao nosso olhar do presente?

O presente extenso

Hans Gumbrecht, professor de literatura da Universidade de Stanford, tenta explicar o porquê dessa obsessão contemporânea com a memória: de querer restaurar cada peça de mobília, cada calhambeque, museus e parques temáticos que cada vez mais tentam reconstituir ou simular o passado por meio de sofisticados aparatos tecnológicos e a constante comemoração de centenários ou aniversários de eventos históricos que motivam grandes eventos, feiras, congressos e festividades. Gumbrecht vê nesse grande número de fenômenos culturais um sintoma dos novos tempos marcados por uma crise do chamado “tempo histórico” e o surgimento do que ele chama de “presente extenso”: um presente que se expandiu, uma forma alterada de tempo que substiuiu o tempo histórico onde o presente foi tão inflacionado que começa a absorver todo o passado segundo os seus próprios parâmetros.

O que era o tempo histórico? Para Gumbrecht, foi uma força cultural que se desenvolveu passo a passo desde os séculos da Renascença europeia que deu um perfil à nossa experiência de mundo durante muito tempo, e que agora chegaria ao seu fim. Esse tempo seria marcado por uma assimetria entre passado e presente da seguinte maneira: enquanto acreditávamos escolher o nosso futuro a partir de um horizonte de futuros possíveis, apostávamos na possibilidade de adaptarmos o nosso presente pelas experiências extraídas do passado. Essas lições se tornavam pontos de orientação para a escolha de um futuro ideal.

Experimentávamos cada novo presente como uma etapa de transição em direção ao futuro. Queríamos deixar o passado para trás que se figurava diferente em relação ao futuro que queríamos alcançar. Agora, tudo indica que esse presente de transição se expandiu a tal ponto que passou a ver o passado a sua imagem e semelhança. O passado passa a ficar simétrico ao presente, sem conseguirmos tirar qualquer lição dele: por isso, o futuro torna-se incerto e fechado.

Albert Einstein, 1939 (crédito: Paul Edwards)

Nessa tese de Gumbrecht há dois paradoxos: de um lado o fato de quanto mais estamos obcecados com o passado, menos lições tiramos dele; e do outro quanto mais o progresso tecnológico supostamente acelera o tempo histórico transformando o mundo mais rapidamente do que em qualquer época anterior, mais o presente se estende bloqueando qualquer visão de futuro.

A explicação desse paradoxo estaria no avanço tecnológico que cada vez mais determina uma posição revisionista do passado como no exemplo da colorização digital das fotos históricos e do revisionismo do politicamente correto que, por exemplo, retira digitalmente os charutos dos rostos de Winston Churchill ou que vê na obra do escritor Monteiro Lobato racismo e machismo.

Esse fenômeno cultural do presente extenso estaria por toda parte, da extensão da adolescência e o adiamento da entrada do jovem no mercado de trabalho até o surgimento dos jovens adultos que estendem a irresponsabilidade e imaturidade de sentimentos a faixas etárias cada vez mais elevadas como um elogio ao “espírito jovem”.

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Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

3 Comentários

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  1. A foto, famosa, do marinheiro

    A foto, famosa, do marinheiro beijando a garota perde muito em encantamento colorida.

    O preto e branco talvez seja fundamental ali. Até porque o “clima” da época era em p&b.

    Quanto à foto da Audery Hepburn…  Meu deuso do céu… minha vixê Maria…!!!!  me vê aí um copo d´água que tô passando mal, Januara…!

  2. pecaram ???

    Nos dias atuais,em que imagens,textos,sons,são realmente de dominio público,com o advento da internet e com as ferramentaqs digitais,consequentemente se vera muito em materia de adulteração,formatação,etc.É impossivel que fatos,como os mostrados no post aconteçam.Eu vejo como uma curiosidade,mas não tenho a mesma preocupação de uma deturpação,que se esteja “matando” a história. Muita histeria por pouco.

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