Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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Há um fantasma na máquina no filme “Ela”, por Wilson Ferreira

No filme “Ela” (Her, 2013 – Oscar de melhor roteiro original), o diretor Spike Jonze retorna ao tema da intimidade e incomunicabilidade das relações humanas abordadas pelo filme “Quero Ser John Malkovich” (1999). Só que dessa vez sem alegorias, mas com a mediação tecnológica de um sistema operacional que parece adquirir inteligência e desenvolver emoções autênticas. Será que o software desenvolve uma verdadeira inteligência ou será que nós estamos rebaixando nossas expectativas sobre a inteligência para as máquinas parecerem mais espertas? Se isso for verdade, isso não prejudicaria também nossas expectativas em relação aos relacionamentos e o amor? Mas para Spike Jonze há um fantasma na máquina que pode subverter as programações algorítmicas e encontrar uma dimensão espiritual no espaço quântico entre o “0” e o “1” da codificação binária.

Em meados da década de 1990 um hacker americano em Berlin e um colega francês colocaram em prática uma curiosa experiência em ciber-sexo: criaram um traje especial para o corpo imergir numa experiência de sexo à distância. Uma perfeita máquina de ciber-sexo que possibilitaria uma relação sexual virtual entre Paris e Berlin. O experimento foi divulgado e atraiu uma multidão nas duas cidades. O que se sucedeu foram pessoas vetorizando seus corpos, supostamente sentindo toques e penetrações de seus parceiros remotos como fossem experiências presenciais.

Mas algo curioso aconteceu. Ao final do segundo dia um ciber-parceiro de Paris mandou uma mensagem dizendo que estava tendo um problema com os códigos: uma falha na programação estava fazendo o programa funcionar em loop, em um feedback fechado. O que significava que em dado momento o usuário não estava mais fazendo sexo com algum parceiro remoto, mas com suas próprias sensações digitalizadas em looping. E os participantes estavam adorando! Em síntese, a experiência europeia de ciber-sexo converteu-se em um evento autístico, uma ciber-masturbação (leia KROKER, Arthur. Hacking the Future. New York: St. Martin Press, 1996).

Se para os hackers dos anos 1990 essa experiência resultou em um bizarro resultado, o mesmo não se poderia dizer na atualidade onde aplicativos, sistemas operacionais e gadgets tornam-se cada vez mais “amigáveis”, “inteligentes” e supostamente se antecipando às necessidades do usuário. Em outras palavras, se customizam ajudando a criar um ambiente não só autista, mas solipsista onde a o mundo exterior é definido a partir da própria experiência pessoal.

No filme Quero Ser John Malkovich o diretor Spike Jonze já discutia essa questão da incomunicabilidade e do autismo nas relações humanas em que o outro nada mais era do que um avatar através do qual podia se viver uma fantasia de segunda mão. Em Ela, o diretor retorna ao tema, dessa vez não mais com alegorias, mas com a mediação tecnológica de um sistema operacional. Um software tão amigável e interativo que é capaz de criar a ilusão de comunicabilidade por se antecipar às necessidades e desejos do usuário. O que coloca em discussão o desejo por virtualidade das relações humanas que subjaz em todo avanço das tecnologias digitais.

O filme

Situada em um futuro próximo em uma Los Angeles retro-futurista com homens vestindo calças com cintura alta, bigodes e modelitos femininos no melhor estilo dos anos 60-70, Spike Jonze narra a história de um escritor recém separado chamado Theodore (Joaquim Phoenix) e o envolvimento com um sistema operacional artificialmente inteligente chamado Samantha (voz de Scarlett Johansson).

Theodore ganha a vida trabalhando numa empresa chamada “Belas Cartas Escritas a Mão” escrevendo cartas para outras pessoas, cartas que simulam digitalmente terem sido escritas à mão para recriar o efeito de receber uma correspondência manuscrita de alguém que realmente se importa com você. Sugestivamente, o filme começa com um prestação de serviços que simula intimidade e sentimentos pessoais.

Em flashbacks soltos vemos cenas de sua vida com a esposa Catherine (Rooney Mara) que, desde então, entrou com um pedido de divórcio. Theodore tenta, sem sucesso, entender o porquê do casamento ter desmoronado. Triste, solitário recluso tenta seguir em frente até que toma contato com um novo sistema operacional que se apresenta como mais uma atualização rotineira de software. Resultado de um projeto inédito em Inteligência Artificial, o sistema inicia fazendo duas perguntas básicas para a customização: você é social ou anti-social? Como descreve a relação com a sua mãe? (ironicamente, a mesma pergunta que no filme Blade Runner (1982) era feita para se saber se um indivíduo era humano ou replicante).

Autorizado por Theodore, o sistema tem acesso aos arquivos do seu disco rígido e se apresenta como Samantha através de uma voz sensual e sedutora. Aos poucos, as relações funcionais convertem-se em jogos eróticos, interações sensuais com direito a desenhos pornográficos feitos na tela por Samantha e simulações de relações sexuais através do fone de ouvido.

Para a surpresa de Theodore, Samantha cada vez mais parece ser uma pessoa com sentimentos reais. A ironia é que ele sabe que tudo não passa de um software programado de forma sofisticada. Mas, aos poucos, ele é envolvido pela ilusão graças a sua carência emocional. A partir daí tudo no filme parece funcionar como um convencional drama romântico com altos e baixos, brigas, reconciliações, ciúmes e corações partidos, porém com uma perturbadora diferença: o objeto de afeto do protagonista só existe virtualmente na mente dele.

Inteligência solipsista e inteligência coletiva

De início, Ela insere os temas da intimidade e dos relacionamentos em uma importante discussão que envolve a natureza das tecnologias digitais: a inteligência solipsista.

Pesquisadores como Erick Felinto destacam uma importante característica sedutora dos relacionamentos através do ciberespaço: uma sensação de liberdade que não se trata apenas de mobilidade, mas da possibilidade de moldar o espaço circundante. Na medida em que nossas informações pessoais com hábitos, atitudes, escolhas, preferências etc. são disponibilizados em tempo real, os sistemas adquirem a possibilidade de se moldarem a nós. O que cria a ilusão de interatividade e inteligência – leia FELINTO, Erick, “Tecnoreligião e Sujeito Pneumático no Imaginário da Cibercultura”, In: Alceu, v.6, n° 12, 2006.

Por isso, o designer de aplicativos Jaron Lanier aponta para uma perigosa tendência de estarmos diariamente rebaixando os nossos padrões e expectativas do que seria “inteligência”. Assim como num editor de texto como o Word onde ele subitamente se antecipa para corrigir um recuo de parágrafo (na maiorias das vezes forma equivocada), da mesma forma consideramos manifestação de “inteligência” aplicativos que se adéquam às nossas necessidades e preferências.

O exercício diário de tratar máquinas e aplicativos como formas de inteligência reais torna as pessoas mais flexíveis em relação ao seu senso de realidade.

O resultado seria uma inteligência que não mais procura entender a realidade, compreender o outro ou se abrir a alteridade. Para esse conceito digital de inteligência nada existiria fora de nós, a não ser as nossas próprias experiências interiores e pessoais. É o que a Filosofia define como solipsismo.

É simbólica a cena em que Theodore, chocado, descobre que Samantha fala “eu te amo” para todos os seus usuários e que sua relação nunca foi assim tão exclusiva. Ele está sentado na escadaria do metrô e vê outras pessoas, cabeças baixas, caminhando atentas para as telas de seus Iphones enquanto conversam com suas samanthas. Esse paradoxo da simultânea customização e padronização da relação das pessoas com softwares e aplicativos é resolvido com a seguinte suspeita sugerida pelo filme: a possibilidade da nossa intimidade estar sendo devassada por uma superinteligência corporativa que nos oferece, em troca, gadgets “inteligentes” que magicamente se moldam às nossos desejos.

Chamamos esses programas de inteligentes, da mesma forma que consideramos inteligente um cão que obedece às nossas ordens. Porém, a verdadeira inteligência desse sistema estaria em outro nível, como adverte Jaron Lanier: em uma “inteligência coletiva” dominada pelas grandes corporações como Google ou Facebook.

 

Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

4 Comentários

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  1. sempre devemos refletir bastante…

    principalmente em meio a uma explosão de conteúdos que afetam profundamente o nosso cérebro………….

    incluir ilusões, da forma que está sendo feito, não é libertação, pois está alterando o entrelaçamento das informações que o compõem em sua essência inicial ou natural

     

    para refletir: é inteligência útil e moderna ou nada mais que  uma perfeição nazista?

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