O abraço ao Centro Cultural de São Paulo e a privatização das bibliotecas públicas, por Maria das Mercês

O abraço ao Centro Cultural de São Paulo e a privatização das bibliotecas públicas

Por Maria das Mercês Pereira Apóstolo*

As bibliotecas públicas representam uma das conquistas mais significativas do Estado moderno. Foram criadas no século XIX sob a égide dos direitos conquistados às revoluções burguesas (inglesa e francesa), com o propósito de ser uma das bases para a construção de uma cidadania ativa e de um estado democrático. Desde suas origens configuraram-se como um serviço público, estabelecido para atender as necessidades culturais e informativas dos cidadãos na perspectiva de que o patrimônio cultural e informacional é de produção e usufruto coletivos. Inserem-se atualmente no leque dos direitos sociais, são o apoio e o sustentáculo de políticas educativas e ferramentas imprescindíveis ao desenvolvimento econômico de um país.

Sempre é oportuno trazer à reflexão o Manifesto da IFLA/UNESCO sobre as Bibliotecas públicas.

Os serviços da biblioteca pública devem ser oferecidos com base na igualdade de acesso para todos, sem distinção de idade, raça, sexo, religião, nacionalidade, língua ou condição social. ”1

Os serviços da biblioteca pública devem, em princípio, ser gratuitos. A biblioteca pública é da responsabilidade das autoridades locais e nacionais. Deve ser objeto de uma legislação específica e financiada pelos governos nacionais e locais. Tem de ser uma componente essencial de qualquer estratégia a longo prazo para a cultura, o acesso à informação, a alfabetização e a educação.”2

A declaração da IFLA/UNESCO em que pese ser um marco na defesa e na configuração do perfil da biblioteca pública no mundo ocidental, deixa à mostra uma brecha muito bem aproveitada pelo capitalismo informacional: ela não afirma que os serviços da biblioteca devem ser gratuitos; ela diz que “devem, em princípio, ser gratuitos”. Ou seja, pode-se entender que a gratuidade é uma questão desejável, recomendável, mas não necessariamente obrigatória. É por essa brecha que podemos olhar o movimento de privatização das bibliotecas públicas em curso no mundo ocidental.

As primeiras ações de privatização dos serviços das bibliotecas começaram durante a década de 90 nos Estados Unidos e se expandiram durante a década seguinte, consolidando-se de tal maneira que a ALA (American Library Association) possui uma seção dentro de seu website que trata do fenômeno das terceirizações e privatizações das bibliotecas públicas, discriminando o que seria o outsourcing (terceirização de atividades de suporte como a limpeza e a manutenção que não são propriamente atividades bibliotecárias) e a privatização propriamente dita (abarcando tanto a gestão técnica como a administrativa das unidades de informação). E mais importante, contém uma declaração de princípios condenando a prática de privatização das bibliotecas públicas

B.8.8 Privatização de bibliotecas financiadas pelo setor público (número antigo 52.7) A ALA afirma que as bibliotecas com financiamento público devem permanecer diretamente responsáveis perante o público que servem. Portanto, a Associação Americana de Bibliotecas opõe-se ao deslocamento da formulação de políticas e a supervisão da administração de serviços de biblioteca do público para o setor privado com fins lucrativos.”3

A chegada dessas propostas à Europa se deu graças às políticas de austeridade e de cortes nas administrações públicas que trouxeram a restrição orçamentária em serviços e em coleções e depois atingiram o pessoal das bibliotecas. É o mesmo pretexto que observamos agora no Brasil: sob o discurso da crise e do arrocho econômico, busca-se aplainar o caminho para a introdução das políticas impostas pelo acordo GATTS ou Acordo Geral sobre o Comércio de Serviços (AGCS).

O AGCS existe desde a criação da OMC (Organização Mundial do Comércio) em 1995, porém, começou a ser implementado com mais vigor a partir de janeiro de 2000, depois do Encontro de Seattle, no qual se compactuaram ações para o progressivo deslocamento de todos os serviços para o comércio internacional. Uma das características mais marcantes desse acordo é o marco institucional aplicado a todos os países signatários, os quais são obrigados a subordinar suas políticas nacionais ao Acordo, sem limites de alcance ou de duração do processo.

O setor cultural dentro do AGCS está contemplado nos denominados “Serviços de Comunicação” e nos “Serviços de entretenimento, cultura e esporte”. Dentro dos Serviços de Comunicação se incluem os Serviços Audiovisuais, classificados em: serviços de produção e distribuição de filmes e vídeos; serviços de rádio e televisão. Os Serviços entretenimento, cultura e esporte, abrangem: serviços de espetáculos (teatros, orquestras, circos); serviços de agências de notícias; Bibliotecas, arquivos, museus e outros serviços culturais; serviços esportivos e outros serviços recreativos.

Em 2004 os países que comprometeram seus serviços bibliotecários foram Albânia, Áustria, Bolívia, República Centro-africana, Equador, Estônia, Gâmbia, Geórgia, Hong Kong, Islândia, Japão, Jordânia, Lituânia, Serra Leoa, Singapura, USA, Venezuela. Curiosamente, são países com estabelecidas políticas neoliberais, em vias de desenvolvimento ou recentemente ingressados no sistema de mercado; é interessante destacar nessa época a escassa presença de países democráticos com tradição de estado do bem estar social.4

Há duas grandes situações no Acordo Geral sobre Comércio de Serviços:

  1. Quando a privatização é completa desde o princípio e é irreversível.

Quando se privatiza parcialmente – mediante subcontratação (caso da administração de bibliotecas brasileiras por OS- organizações sociais)5  ou 

  1. pagamento por serviços em um sistema público (caso de várias bibliotecas na Europa).

No Brasil essas políticas se tornaram viáveis por meio das Organizações Sociais criadas pela Lei Federal nº. 9.637, de 15 de maio de 1998 no âmbito do Plano Diretor de Reforma do Aparelho do Estado (PDRAE), no governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002).5

Vários elementos contribuíram na formulação da política de OSs. Segundo Paulo Henrique Rodrigues (2016)6 um deles foi a Lei de Responsabilidade Fiscal que estabeleceu limites para os gastos do governo com pessoal, o que em outras palavras significou a redução do corpo de funcionários, o congelamento de concursos públicos e a abertura para entrada das OSs na administração de serviços públicos, sob o argumento de que poderiam ser mais eficientes, pois podem funcionar por fora da burocracia e dos entraves da máquina pública. Nesse contexto verifica-se que OSs que são organizações privadas desempenhando serviços típicos da atribuição do Estado e pagas com dinheiro público, muitas vezes oferecem aos seus profissionais, salários mais altos do que aqueles recebidos pelos funcionários públicos que exercem a mesma função.

Com exceção das áreas da saúde e educação, que tem produzido reflexões e ações de resistência pouco se tem falado sobre o avanço das OSs em outros setores como o cultural por exemplo, onde seu domínio é extenso e consolidado. Estão presentes na gestão de teatros, casas de cultura, oficinas de cultura, fábricas de cultura, museus, bibliotecas etc., sem provocar nenhuma reação ou repercussão tanto da mídia, usuários e principalmente dos bibliotecários a esse avanço da transferência da gestão de equipamentos culturais públicos à iniciativa privada O caso mais emblemático é o das gestões da Biblioteca São Paulo e o da Biblioteca Villa Lobos ambas administradas integralmente pela OS SP Leituras, que recebeu pela tarefa em 2016, R$ 11.216.437,76 do governo do estado.  No Rio de Janeiro, desde 2014 as bibliotecas parques são administradas pelo Instituto de Desenvolvimento e Gestão (IDG), que recebe cerca de R$ 20 milhões por ano para as quatro unidades. Em dezembro a empresa demitiu os 153 funcionários alegando falta de pagamento por parte do governo.

Nenhum clamor se elevou por ocasião da passagem desses equipamentos para a gestão privada. Algumas, como é o caso da gestora da Biblioteca São Paulo, recebem avaliações elogiosas dos usuários, pela eficiência de sua administração.

São fenômenos complexos, não há dúvida, compostos de múltiplas camadas, visto que agregam e reúnem aspectos, os mais diferenciados, da sociedade. Por exemplo:

– a questão da eficiência, pode refletir uma visão parcial de usuários que não compreendem a natureza e o papel do serviço público e que podem mudar radicalmente de opinião a partir do momento em que essa eficiência passa a ser cobrada e a pesar decisivamente no seu bolso.

– O silêncio e a omissão dos próprios profissionais das bibliotecas em relação ao avanço do processo, talvez reflexo da ideologia dominante na profissão de transferência de marcos conceituais e terminologia do mundo empresarial (considerados como eficientes no contexto neoliberal) aos serviços públicos, rotulados como ineficazes a partir da ótica mercantilista. Termos como cliente, gestão, carta de serviços, eficácia, indicadores, etc. fazem parte hoje da realidade cotidiana das bibliotecas e dos cursos de biblioteconomia. Pensemos na adesão acrítica e generalizada dos princípios da gestão empresarial aos nossos serviços ou a escassa reflexão que o constructo sociedade da informação e conhecimento tem gerado em relação com a profissão – fatores que contribuem para a construção e fomento da ideologia do consumidor em lugar do cidadão, o fortalecimento da lógica mercantilista e o aprofundamento das diferenças sociais.

Ora, os benefícios sociais e econômicos proporcionados pelas bibliotecas são por definição intangíveis e simbólicos. Só podem ser identificados através de ações em que a aplicação dos conhecimentos fornecidos por essas organizações os tornem visíveis. Seu valor econômico não é possível de ser calculado mediante procedimentos de “oferta e demanda”. Os serviços oferecidos não se aplicam à lógica de mercado e nem podem estar à disposição do comércio e da exploração econômica.

Conforme afirma Birdsall […] Os bibliotecários não estão, é claro, inconscientes de que este é um tempo de transformação social. Porém, eles evitam análises críticas a estas mudanças: ao contrário, eles têm adotado acriticamente a simplificação popular de uma mudança para uma sociedade da informação. […] É especialmente importante neste momento que os bibliotecários se preocupem com as relações de poder corporificadas na economia e na organização política porque grande parte das políticas públicas governamentais de informação estão atualmente sob o encanto de uma ideologia da tecnologia da informação. […] Há uma ideologia que promove fins econômicos em detrimento da vontade política e do poder da cidadania em geral. Essa ideologia promove a soberania do consumidor sobre a soberania do cidadão. Assim, denigre o valor de instituições públicas como a biblioteca e defende a transposição dos serviços que elas oferecem da categoria de bens públicos para a categoria de mercadorias a serem comercializadas no mercado […]. (BIRDSALL, 2005, p.7)7

Por outro lado, vemos também uma resistência que se manifesta em situações de perda de postos de trabalho e em defesa de direitos constituídos aos trabalhadores do serviço público, o que se revela como outro elemento importante no discurso fundamentalista da ideologia de mercado – mais mercado, menos estado. Entretanto, essa resistência não consegue se articular como discurso alternativo e abrangente na defesa do espaço e do patrimônio públicos, ficando restrita a uma perspectiva corporativista.

Grandes são os desafios colocados aos profissionais de biblioteca, mas o principal deles é o de resistir aos processos de mercantilização dos espaços não excludentes, espaços de encontro e debate onde a coletividade pode participar racional e conscientemente da construção do social.

É necessário, portanto, revisar os contextos nos quais atuamos como profissionais e os princípios que supostamente fundamentam os objetivos e finalidades sociais dos serviços públicos, em especial, as bibliotecas: analisar criticamente se, efetivamente, os discursos e as práticas que nos guiam estão nos levando no sentido da construção e fortalecimento da esfera pública – aquela que contribui para formar ou autoeducar os cidadãos na sua inserção no mundo, e também para que possam participar na construção das regras de convivência que beneficiem a maioria.

As bibliotecas sustentadas com recursos públicos, independentemente de sua origem, devem comprometer-se com o princípio de defesa do público em seus objetivos, dinâmicas e finalidades, e na relação com seus usuários: recuperar uma relação de compromisso social, ético e democrático.

E mais ainda, se entendemos que esse equipamento cultural é tão importante como apregoamos, teremos que lutar por ele, lutar por sua existência e sobrevivência.  Isto significa que os bibliotecários vão necessitar do seu mais valioso ativo: os usuários da biblioteca. Estas comunidades terão que lutar por suas bibliotecas junto com os bibliotecários. Para isso terão que reconhecê-las como suas, terão que responsabilizar-se por elas, apossar-se delas, criar com elas e com seus trabalhadores vínculos de pertencimento e solidariedade, vínculos de cidadãos e não de meros clientes.  

* Maria das Mercês Pereira Apóstolo é bibliotecária, historiadora e docente da FESPSP, mestre em Metodologia da História e História Paulista. Atualmente é bibliotecária coordenadora do Centro de Documentação do sindicado dos Bancários de São Paulo, Osasco e Região, e foi vice-Presidente do Conselho Regional de Biblioteconomia- 8a. Região, gestão de 2009 a 2011.

1Manifesto da IFLA/UNESCO sobre as Bibliotecas públicas, 1994.

2 idem

3 B.8.8 Privatization of Publicly Funded Libraries (Old Number 52.7)

ALA affirms that publicly funded libraries should remain directly accountable to the public they serve. Therefore, the American Library Association opposes the shifting of policy making and management oversight of library services from the public to the private for-profit sector.”
 
4 GIMENO PERELLÓ, Javier; LÓPEZ LÓPEZ, Pedro; MORILLO CALERO, Mª Jesús. (Coords.). De volcanes llena: biblioteca y compromiso social. Pról. José Saramago. Gijón: Trea, 2007.
 
5 BARBOSA e ELIAS, As organizações sociais de saúde como forma de gestão público/privado. In: Ciência & Saúde Coletiva, v.15, n.5,  2010.
 
RODRIGUES, Paulo Henrique de A. As organizações sociais na saúde. Disponível em: http://cebes.org.br/2016/11/as-organizacoes-sociais-na-saude-peca-chave-para-a-privatizacao-da-saude. Acesso em 07/02/2017
 
7 BIRDSALL, W. F. Uma economia política da Biblioteconomia? Perspectivas em Ciência da Informação, Belo Horizonte, v.10, n.1, p.1-8, jan./jun. 2005.
 
Redação

6 Comentários

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  1. A propósito deste TEXTO

    A propósito deste TEXTO “Manifesto da IFLA/UNESCO sobre as Bibliotecas públicas, 1994.”, não me ocorre outra expressão de que “ESTÁ TUDO DOMINADO”, ou seja … – nossos alimentos são trangênicos, … – nossos medicamentos não curam mas nos tornam dependentes … – nossas fontes de informação, notícias, todas devidamentes trabalhadas ideologicamente … – nossas inocentes e até LÚDICAS BIBLIOTECAS estão agora a serviço do domínio completo e ideológico de que devemos ler, assistir, pesquisar e ETC. ETC., … e pasmem agora pagando em dobro por este serviço que já está embutido nos diversos impostos já pagos … estamos vivendo na ERA DO livro 1984 de George Orwell, que pelo ovisto não temos saída para este sistema vigente … SOCORRO – aquela “democracia” tão ortodaxamente anunciada e cultivada em nossas mentes era tudo UMA GRANDE MENTIRA o que vale é o “deus MERCADO” o resto são emoções humanas sem nenhum valor venal, assim … !!!

  2. A propósito deste TEXTO “Manifesto da IFLA/UNESCO sobre as Bibli

    A propósito deste TEXTO “Manifesto da IFLA/UNESCO sobre as Bibliotecas públicas, 1994.”, não me ocorre outra expressão de que “ESTÁ TUDO DOMINADO”, ou seja … – nossos alimentos são trangênicos, … – nossos medicamentos não curam mas nos tornam dependentes … – nossas fontes de informação, notícias, todas devidamentes trabalhadas ideologicamente … – nossas inocentes e até LÚDICAS BIBLIOTECAS estão agora a serviço do domínio completo e ideológico de que devemos ler, assistir, pesquisar e ETC. ETC., … e pasmem agora pagando em dobro por este serviço que já está embutido nos diversos impostos já pagos … estamos vivendo na ERA DO livro 1984 de George Orwell, que pelo ovisto não temos saída para este sistema vigente … SOCORRO – aquela “democracia” tão ortodaxamente anunciada e cultivada em nossas mentes era tudo UMA GRANDE MENTIRA o que vale é o “deus MERCADO” o resto são emoções humanas sem nenhum valor venal, assim … !!!

  3. o abraço….

    O governo Temer está projetando descaradamente a volta da Privataria, a volta do Tucanato. A grande mídia escondendo como pode Picolé de Chuchu. Só que se esquecem que é só aumentar um pouco a temperatura e Picolé derrete, facinho. A febre amarela retornou em SP, mas logo transferida para MG pela mídia. A tragédia da falta de água foi a mesma coisa. Assim como surtos de dengue e microcefalia. Ou pensam que não enxergamos. Se seremos propriedade de alguma transnacional estrangeira através de privatarias, para que governo? Este é o futuro projetado por estes medíocres, que tem na figura de Dória mais um capitulo de 25 anos de mediocridade. Vamos acordar. Enquantro é tempo. 

  4. o abraço….

    O governo Temer está projetando descaradamente a volta da Privataria, a volta do Tucanato. A grande mídia escondendo como pode Picolé de Chuchu. Só que se esquecem que é só aumentar um pouco a temperatura e Picolé derrete, facinho. A febre amarela retornou em SP, mas logo transferida para MG pela mídia. A tragédia da falta de água foi a mesma coisa. Assim como surtos de dengue e microcefalia. Ou pensam que não enxergamos. Se seremos propriedade de alguma transnacional estrangeira através de privatarias, para que governo? Este é o futuro projetado por estes medíocres, que tem na figura de Dória mais um capitulo de 25 anos de mediocridade. Vamos acordar. Enquantro é tempo. 

  5. ”Ora, os benefícios sociais

    ”Ora, os benefícios sociais e econômicos proporcionados pelas bibliotecas são por definição intangíveis e simbólicos.”

     

    Um benefício intangível, imensurável, simbólico(?!) é por definição, um benefício?

    Essa coisa de ”benefício simbólico” remete àquela anedota ademarista, onde o governador Ahemar de Barros foi solicitado por correligionários a ajudar uma cidade com mais leitos para um hospital; daí que ele mandou várias camas hospitalares para a instituição…

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