O “homem cordial” de Ribeiro Couto

Por Gilberto .

Confunde-se até hoje o significado de um termo, pinçado por Sérgio Buarque de Holanda de Ribeiro Couto (cuja obra aliás estimava) com a acepção dada pelo último ao homem cordial. Ora, SBH evidentemente se interessou por este “achado” de Ribeiro Couto, mas inverteu o seu sinal. O que era um legado para Couto, passa a ser uma espécie de sina que marca nossas relações sociais, traduz nossa preferência absoluta pela paixão e consequente recusa à razão. Desta surge a impossibilidade de estabelecer laços sociais amplos. Apostamos o futuro na esfera do íntimo, do familiar, do privado.

Entender diferente, significa dizer então que a truculência brasileira é um fenômeno recente?  SBH não tinha portanto conhecimento dela, traço marcante da história de nosso país, pois não? Não sabia que a mão que afaga é a mesma que bate? Que o pai que gera é o mesmo que estupra?  Que a violência é travestida no mesmo e igual gesto que é também uma forma de demonstração do amor? 

Somos e fomos o país que detesta o conflito, mas apenas em nosso meio próximo e pessoal. O país onde a mãe, consternada, abafa o estupro cometido pelo pai à própria filha. Onde o medo do conflito, em nosso “protegido” círculo familiar e dos amigos próximos, esconde em seu interior mais oculto, em suas celas (aqueles quartos sem janela que guardava as donzelas para seus pais), a truculência que sempre existiu. Violência esta que, de fato e segundo as estatísticas, é menor hoje do que foi no passado. Apenas retirada está das celas e se encontra agora exposta, o que gera a falsa impressão de ser maior na “média”.

Ou será que SBH desconhecia a nossa história e pensava que a gente era feliz e não sabia

 

……………………………………………………………………………

Sérgio Buarque de Holanda

 

“A inimizade bem pode ser tão cordial como a amizade, nisto que uma e outra nascem do coração, procedem, assim, da esfera do íntimo, do familiar, do privado.”

……………………………………………………………………………

 

Antônio Candido no prefácio do livro Raízes do Brasil (“O significado de “raízes do Brasil” dezembro de 1967)

 

O capítulo sobre “o homem cordial” aborda características que nos são próprias, como consequência dos traços apontados antes. Formado nos quadros da estrutura familiar, o brasileiro recebeu o peso das “relações de simpatia”, que dificultam a incorporação normal a outros agrupamentos. Por isso, não acha agradáveis as relações impessoais, características do Estado, procurando reduzi-las ao padrão pessoal e afetivo. Onde pesa a família, sobretudo em seu mol de tradicional, dificilmente se forma a sociedade urbana de tipo moderno. Em nosso país, o desenvolvimento da urbanização criou um “desequilíbrio social, cujos efeitos permanecem vivos ainda hoje” (p. 145). E a essa altura, Sérgio Buarque de Holanda emprega, penso que pela primeira vez no Brasil, os conceitos de “patrimonialismo” e “burocracia”, devidos a Max Weber, a fim de elucidar o problema e dar um fundamento sociológico à caracterização do “homem cordial”, expressão tomada a Ribeiro Couto.

O “homem cordial” não pressupõe bondade, mas somente o predomínio dos comportamentos de aparência afetiva, inclusive suas manifestações externas, não necessariamente sinceras nem profundas, que se opõem aos ritualismos da polidez. O “homem cordial” é visceralmente inadequado às relações impessoais que decorrem da posição e da função do indivíduo, e não da sua marca pessoal e fa miliar, das afinidades nascidas na intimidade dos grupos primários.

Redação

11 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. A violência aumentou

    [[[Violência esta que, de fato e segundo as estatísticas, é menor hoje do que foi no passado. Apenas retirada está das celas e se encontra agora exposta, o que gera a falsa impressão de ser maior na “média”.]]]

    A violência não se mede pelas estatísticas. A percepção da violência se dá andando pelas ruas. Quando se pode, de forma segura, andar por elas.

    Há 40 anos, na minha cidade, eu ia, de madrugada, a pé para casa confiante de que estava seguro. E realmente estava. Nunca tive problemas. Hoje em dia, em que a violência está “menor”, depois das dez, eu me tranco em casa.  

    Moro em um bairro de classe média. Já fui roubado duas vezes e já entraram na minha casa uma vez.

    1. Cuidado com a amostra

      Uma situação como esta não se avalia com observações de cunho pessoal. Estas, por definição, carecem de representatividade que lhes dê a característica de serem significativas, como se diz em estatística. Quando você se define como morador de um bairro de classe média, obviamente de uma determinada cidade, sua observação tomada isoladamente de imediato assume tanto o viés de classe social quanto o viés geográfico, além de já trazer o problema do erro decorrente do tamanho insuficiente da amostra (apenas uma observação) em relação ao universo – a população que se deseja representar. Para que qualquer afirmação sobre um grupo social tão grande e heterogêneo (no caso, o “brasileiro”) seja estatisticamente válida, tem que ser obtida através de pesquisa feita com um “desenho amostral” que assegure que o número de entrevistados tenha dimensão e distribuição (por classe, por região, etc. ) adequados. Que fique claro: não estou afirmando que sua opinião está errada nem que o contrário dela é verdadeiro. Apenas alertando que a natureza de sua afirmação é tal que demanda uma pesquisa estatisticamente controlada para sua validação, aí sim ao contrário do que você afirma. No caso, o problema da captura da trajetória temporal da variável observada (a percepção de segurança) é de fato não-trivial e exigiria uma dose extra de imaginação na concepção da pesquisa, mas nada que torne sua realização inviável. 

    2. Não neguei a violência

      Não neguei a violência atual. Até afirmei que ela é agora visível. Isto não deixa de ser um passo essencial, embora sofrido, para suprimi-la.

      Mas não será conseguido através da cordialidade, da paixão, do ódio ou da irracionalidade. Somente através de um amplo pacto social, de uma justiça ampla, e da supressão das desigualdades ainda presentes na nossa sociedade (que considero em processo de formação).  

       

  2. SOMOS TRUCULENTOS PORQUE SOMOS CORDIAIS

    Todos parecem fazer essa confusão na definição do que venha a ser o “Homem Cordial” na obra de Sérgio Buarque. Até mesmo o Ministro do Supremo, Barroso,  parece ter caído nessa armadilha na entrevista que deu a Kennedy Alencar, num vídeo ótimo postado nesse blog.

    Explica-se: A visão do Homem Cordial, por estar restrita à esfera familiar e pessoal (EMOTIVA) nada tem de positiva no campo das relações sociais maduras, onde predominam a razão e a impessoalidade. Ela se assenta, sim, num primitivismo só visto nas sociedades mais rudimentares do planeta,  onde grassam a miséria e a truculência. Portanto, cordialidade e truculência na acepção de Sérgio Buarque são complementares e não opostas, ou seja, nossa truculência advém, justamente, de nossa cordialidade.

    1. precisamente…

      Vê-se que na cultura superficial, de típico leitor de orelha de livro, o Ministro Barroso não se afasta muito daquele outro recentemente entrevistado pelo Roberto D´Ávila. 

      Para SBH, cordialidade = bloqueio à impessoalidade e à racionalidade nas relações humanas. 

      Não há nehuma contradição com a violência e o vandalismo, é quase o oposto. 

  3. O BRASILEIRO CORDIAL

    Dizer que o brasileiro é cordial é incorrer num mito. Para início de conversa, ele não tem consideração com o próprio corpo. E só porque um dia lhe cortaram o cordão umbilical, ele então acha que pode fazer tudo. Pôr o dedo na ferida, torcer o nariz, bater perna na rua, sacudir as cadeiras, emprenhar pelo ouvidos, dar a mão à palmatória, queimar os miolos, as pestanas etc. Inclusive fazer corpo mole.
    Atire a primeira pedra quem ainda não levou uma facada do brasileiro! Ou, por causa dele, não haja se metido numa fogueira, segurado um rabo de foguete…. Sobre ter o calo pisado, idem. É, os outros que o digam. Pois o brasileiro, além de assassinar o Português, de gastar o Latim, vive arranhando o Inglês, o Francês…
    (O demônio não é tão feio, mas quem o pintou, hein?)
    O desprezo que ele tem pela ecologia! Do contrário, ele não amolaria o boi, não afogaria o ganso, não cutucaria a onça com a vara curta, não deixaria a vaca ir para o brejo… Ah, o “não matarás” não é para o brasileiro, que vive matando cachorro a grito. E a cobra (que ele mata para mostrar o pau) e os coelhos (que ele mata com uma só cajadada) sabem disso perfeitamente. Como os sapos que ele também engole. É pouco? Pois o brasileiro dito cordial ainda gosta de dar no couro e ficar por cima da carne seca.

    Siga lendo… http://preblog-pg.blogspot.com.br/2008/02/o-brasileiro-cordial.html

    1. Não foi o que quis colocar

      Se me expressei mal, compreendo perfeitamente que a explicação não é mera negativa. O caráter do homem cordial é dual, “não abrange, por outro, apenas e obrigatoriamente, sentimentos positivos e de concórdia”

      ……………………………………………………..

      “Nenhum povo está mais distante dessa noção ritualística da vida do que o brasileiro. Nossa forma ordinária de convívio social é, no fundo, justamente o contrário da polidez.” (HOLANDA, 1963, p. 137).

      Cabe dizer que, pela expressão cordialidade, se eliminam aqui, deliberadamente, os juízos éticos e as intenções apologéticas a que parece inclinar-se o Sr. C. R., quando prefere falar em bondade ou em homem bom. Cumpre ainda acrescentar que essa cordialidade, estranha por um lado a todo formalismo e convencionalismo social, não abrange, por outro, apenas e obrigatoriamente, sentimentos positivos e de concórdia.(HOLANDA, 1969, p.213 – 2a edição de Raízes do Brasil). 

       

  4. Conflito, Discussão e Violência

    “Somos e fomos o país que detesta o conflito, mas apenas em nosso meio próximo e pessoal”

    Concordo parcialmente nesta afirmação. Detestamos o conflito, na maioria das ocasiões. No lado profissional amenizamos as relações para que não interferiam nos resultados, no trato com o Estado somos cordiais, ate mesmo porque outra atitude poderia ser interpretada como um desrespeito. No trato social, mesmo com amigos, preferimos conversar sobre as amenidades.

    Há uma confusão ao associar a violência com o conflito. Um não tem a ver com o outro, e na minha opinião são antagônicos. Os conflitos são necessários e a discussão é o meio por onde as idéias vem a tona. Mesmo que a discussão seja acalorada, resolve ou ameniza conflitos e evita o uso da violência.

    O homem cordial evita o conflito e por consequência reduz a discussão. Ai abre-se o espaço para a violência. O espaço virtual deve ser hoje o espaço onde a esta lógica é mais bem exemplificada. Onde não há discussão de idéias, aparecem  comentários recheados de ódio, que não resolvem os conflitos.

    Quem nunca ouviu que Política, Futebol e Religião não se discute?

  5. A falsidade dos comportamentos reside em qualquer cultura

    Porque há algo chamado sociabilidade, e isso dá a todos nós a possibilidade de fingir, de usar das aparências e por aí vai. 

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador