O “pessimismo esclarecido” de John N. Gray
por Antônio Sales Rios Neto
“Se é para existir a verdade sobre o mundo,
ela deverá ser não-humana.”
(Joseph Brodsky)
“Todas as religiões, praticamente todas as filosofias e
até uma parte da ciência testemunham o esforço
heroico e infatigável da humanidade para
desesperadamente negar sua contingência.”
(Jacques Monod)
Desde quando os ideais greco-judaicos afloraram por volta de 1.300 a.C., nas cercanias do Mediterrâneo, o maior consolo do Homo sapiens moderno – face ao seu conflituoso e destrutivo modo de viver – tem sido acreditar na grande ilusão de que o longo e tortuoso processo civilizador do Ocidente será um dia capaz de trazer alguma redenção às intermináveis dores decorrentes desse fantasioso projeto em prol de um suposto melhoramento progressivo da intratável convivência humana. Este é o impulso que tem seduzido a humanidade, sempre oscilando entre fé e razão; ora pendendo mais pela via dos dogmas das religiões monoteístas – em especial o cristianismo –, ora pelas crenças racionalistas herdadas da Grécia Antiga, ou ainda pela catastrófica combinação de ambos, como parece ocorrer nos dias atuais, face à exacerbação dos dois mais midiatizados conflitos históricos, intimamente imbricados, que estão em andamento: o da Ucrânia e o da Faixa de Gaza. E ainda há uma terceira possibilidade de conflito geopolítico que tende a irromper nos próximos anos em torno da cobiçada Taiwan, a maior exportadora mundial de semicondutores.
Esses dois conflitos representam hoje o principal palco de mais um dos muitos flagelos humanitários já ocorridos na história. Estima-se pelo menos 200 mil mortos e 6,4 milhões de refugiados na Ucrânia, e mais de 31 mil exterminados em Gaza, onde estão confinados 2,3 milhões de palestinos – desde quando Israel começou a invadir Gaza, a matança vem sendo mantida numa taxa média de cerca de 220 palestinos por dia. Nessa trágica cruzada civilizatória temos, de um lado, o Ocidente capitaneado pelos EUA contrapondo-se ao avanço da Rússia e da China, e, de outro, a renovação do confronto entre Israel e o mundo islâmico. O primeiro conflito representa uma disputa histórica guiada pelo racionalismo econômico-militar, enquanto o segundo reflete a milenar e insolúvel contenda religiosa pelo domínio de uma reclamada Terra Santa.
Esse tem sido o pano de fundo do longo e árduo percurso civilizatório que, refletido inicialmente na força das armas de grandes impérios (Idade Antiga), depois sob as rédeas do cristianismo (Idade Média) e, mais recentemente, apoiando-se no secularismo da modernidade (Idade Moderna), fez com que o Homo sapiens pós-neolítico fosse, pouco a pouco, colocando-se no centro do universo, até chegar ao atual estágio agônico da crise antropogênica amplificada pelo exacerbamento do individualismo capitalista (Idade Contemporânea), excludente, predatório e ecocida. Neste início do século XXI, o processo civilizador do Ocidente, ao ter alcançado sua supremacia global a partir do neoliberalismo totalizante desencadeado em meados dos anos 1970, moldando a realidade de quase toda a humanidade segundo uma visão tecnomercadológica de mundo e degradando perigosamente uma considerável parte do ecossistema Terra, que agora caminha rapidamente para uma situação de colapso climático, parece estar bem próximo do seu paroxismo. Para quem desconhece a ameaça existencial que as mudanças climáticas representam para a humanidade, a leitura do livro O decênio decisivo: propostas para uma política de sobrevivência (Editora Elefante, 2023), do pesquisador da Unicamp, Luiz Marques, dissipa qualquer dúvida.
Nos sombrios dias atuais, a humanidade, que já experimentou o fracasso de duas longas ondas de (des)regulações civilizatórias, a do cristianismo e depois a do secularismo do Estado-nação, ingressa agora na sua terceira onda de desarranjo civilizatório, que provavelmente será breve e derradeira. Trata-se do deus tecnomercado que, sob os auspícios de um capitalismo de hipervigilância, começa a deteriorar o que ainda resta de Estado garantidor de direitos, de regimes democráticos, de coesão social e de recursos naturais, em favor do despotismo de um punhado de megacorporações e associações criminosas, transnacionais, que comandam os algoritmos, arrastando-nos em direção a uma realidade cada vez mais distópica e terminal. A persistir nessa estupidez, a humanidade estará flertando, portanto, com a possibilidade do seu próprio fim, face à atual perspectiva de colapsos ambiental e nuclear, iminentes.
O fato é que estamos imbricados nesse influxo do absurdo do aprimoramento civilizatório que, a despeito das inúmeras evidências de sacrifícios humanos e de degradação ambiental, cada vez mais crescentes, já registrados na história, parece ratificar uma verdade imutável da condição humana: sua marcha da insensatez, aparentemente irrefreável, rumo à autodestruição.
O brevíssimo arco da história – que não deve ter mais do que 3.500 anos de registros documentados – nos mostra que o autoengano tem sido a norma quando observamos a interação entre o modo de viver dos seres humanos e a complexidade das muitas realidades com as quais estamos implicados, sobretudo quanto ao entendimento de que há uma superioridade do animal humano em relação às outras espécies. Os seres humanos, ao se reconhecerem constitutivamente detentores dessa suposta “superioridade biológica”, estão na verdade assumindo um projeto de civilização que terminará por inviabilizar e negar a sua própria existência, e este talvez seja um dos principais impasses da condição do Homo sapiens moderno, que neste início do século XXI começa a ganhar claros contornos de crise existencial.
Ao longo da história, sempre tivemos pouquíssimo pensamento crítico e reflexivo à altura da compreensão dessa insustentável condição humana, por isso a dificuldade de uma radical reorientação civilizatória. São raros os pensadores que conseguiram perceber, por exemplo, a dissonância entre esse modo de viver humano, que insistiu em se ver apartado da natureza e sua complexidade, e a perturbadora descoberta de Charles Darwin (Teoria da Evolução das Espécies – 1859), que pôs um fim à aura de divindade em torno do homem até então, tornando-o mortal e colocando-o na mesma categoria dos seus parentes animais. Percepção esta que o sociólogo francês Edgar Morin expressou nos seguintes termos: “a disjunção homem/animal é tão profunda em nossa cultura que esquecemos que somos ao mesmo tempo e indissoluvelmente animais e humanos.”
Um desses pensadores é o filósofo político e escritor britânico John Nicholas Gray, nascido em 1948, na antiguíssima cidade costeira de South Shields, ex-professor de pensamento europeu da London School of Economics e de Política em Oxford, colunista do jornal The New Statesman, considerado na Europa um dos mais conceituados nomes em filosofia política e história das ideias, cujas concepções de mundo são altamente recomendáveis para quem deseja compreender esse lado tão obscuro e autodestrutivo da condição humana e vislumbrar alguma remota possibilidade de saída da agonia civilizatória que se avista num horizonte muito próximo.
Até meados da década de 1970, Gray era um estudante de esquerda a favor do Partido Trabalhista na Inglaterra. Em 1976, assumiu a posição liberal da Nova Direita, ao entender que a esquerda não dava mais conta das transformações advindas dos avanços tecnológicos, do realinhamento dos mercados financeiros e das novas conformações de poder geoeconômico. No entanto, logo depois que se sucederam eventos de grande impacto geopolítico como o Consenso de Washington (1989) e a Guerra do Golfo (1990-1991), apoiados pela New Right privatista da era Reagan e Thatcher (da qual tinha sido um aliado), nos anos 1980, Gray percebeu que o lassez-faire global desregulamentado e a deterioração da coesão social caminham juntos, e que “a política é arte de inventar remédios temporários para males recorrentes – uma série de expedientes, não um projeto de salvação. Thatcher foi um desses expedientes.” Assim, ele chegou a novos entendimentos como o de que “não há alternativa sustentável para as instituições do capitalismo liberal, ainda que reformadas”.
No início dos anos 2000, após ampliar ainda mais suas percepções sobre a dinâmica que move o processo histórico e que nos arrastou para o atual impasse civilizatório de âmbito planetário, Gray vai mais a fundo nas raízes dos nossos males e chega a conclusões como a de que “se os seres humanos são diferentes dos outros animais, é principalmente por serem governados por mitos, que não são criaturas da vontade, mas criaturas da imaginação. Emergindo sem serem convidadas de regiões subterrâneas, estas criaturas governam as vidas daqueles que empolgam. Muitos dos piores crimes do último século foram cometidas por pessoas empolgadas pelo que elas acreditavam ser a razão.”
Todo o pensamento de Gray é permeado por essa compreensão acerca do animal humano, que ele entende ser mais apropriado chamar de Homo Rapiens: “uma espécie altamente inventiva que também é uma das mais predadoras e destrutivas”. Dentre os muitos ensaios que ele já escreveu, o livro Cachorros de Palha: reflexões sobre humanos e outros animais (Record, 2006) é um dos melhores compêndios do seu pensamento, e um legítimo tratado sobre como opera na contemporaneidade a cultura patriarcal que predomina há milênios e que constitui a raiz do processo civilizador do Ocidente. Neste ensaio, Gray expõe seu entendimento de que a realidade é governada pelo acaso e pela necessidade, exposto no enunciado-síntese extraído do Tao Te Ching, obra do filósofo fundador do taoísmo, Lao-Tsé: “Céu e terra não têm atributos e não estabelecem diferenças: tratam miríades de criaturas como cachorros de palha”. Uma noção da complexidade inerente ao mundo real convergente com o pensamento do bioquímico francês Jacques Monod, Nobel de fisiologia em 1965, para quem a evolução adaptativa dos seres vivos decorre da imprevisível interação entre acaso e necessidade.
Portanto, a ideia aqui é compartilhar um pouco do incomum ativismo intelectual de John Gray e tentar mostrar que as suas percepções, embora muito perturbadoras para aqueles que depositam muitas esperanças no projeto civilizador do Ocidente, são muito úteis para o entendimento sobre como a cultura de dominação milenar que sustentou o longo processo civilizatório eurocêntrico nos arrastou para a emblemática situação de policrise terminal que começa a preocupar muitos analistas na atualidade. Policrise esta, vale ressaltar, que já havia sido nomeada por Edgar Morin durante os anos de 1970.
Cabe aqui um breve parêntese. As origens dessa cultura de dominação patriarcal que forjou o processo civilizador do Ocidente, segundo estudos da arqueóloga lituana Marija Gimbutas (1921-1924), remontam às invasões patrocinadas pelos povos pastores guerreiros indo-europeus vindos do leste, ocorridas entre sete e seis mil anos atrás, também conhecida por ondas Kurgas, que teriam mudado radicalmente o padrão cultural até então predominante dos povos pré-patriarcais (povos de culturas matrísticas) que habitavam a Europa Antiga. Essas descobertas de Gimbutas são tratadas nos seus últimos livros: As Deusas e Deuses da Antiga Europa (1974); A Linguagem das Deusas (1989); e A Civilização da Deusa (1991). Essa abordagem também se encontra sintetizada no livro O Cálice e a Espada: nossa história, nosso futuro (1987), da escritora e socióloga austríaca Riane Eisler.
No atual contexto sombrio de carência de pensamentos e ideias que possam nos desviar da rota de colapso civilizatório para a qual caminha a humanidade neste século XXI, diria que John Gray integra o seletíssimo rol de pensadores contemporâneos, no qual incluo nomes como o já mencionado Edgar Morin, o neurobiólogo Humberto Maturana, falecido em 2021, e o economista francês Jacques Attali, cujas percepções de mundo que desenvolveram nos permitem vislumbrar explicações mais razoáveis sobre a intrincada dinâmica da realidade e, sobretudo, o quanto o animal humano, após o condicionamento cognitivo que lhe foi imposto durante milênios pela cultura patriarcal, se desvinculou de sua condição natural, a qual assegurou a sua existência e a de seus ancestrais hominídeos por milhões e milhões de anos.
Conhecedor em profundidade tanto das ideias quanto das idiossincrasias dos pensadores mais influentes na filosofia ocidental, de Sócrates a Descartes e Auguste Comte, de Santo Agostinho a Schopenhauer e Nietzsche, John Gray consegue perceber as múltiplas inquietações do pensamento humano e a complexidade do mundo real sem se iludir com as formulações, dogmas e crenças por trás das tentativas de modelagem do mundo patriarcal. Talvez por isso podemos considerá-lo dentre aqueles raros intelectuais privilegiados por uma incomum compreensão acerca do fragmentado, confuso e autodestrutivo modo de viver dos humanos, milenarmente aprisionados nesse padrão cultural dominador despertado há cerca de seis mil anos.
O conflito interno
“A única realidade suscetível de ser observada
é o animal humano multitudinário,
com seus objetivos, valores e modos de vida conflitantes.”
(John Gray)
Para John Gray, a natureza do Homo rapiens (usando aqui o termo que ele considera mais adequado) é definida pelo Conflito. Vale frisar que Gray não se refere à natureza do Homo sapiens e seus ancestrais hominídeos que o precederam, ao longo de milhões de anos, mas à do chamado Homo historicus, aquele que protagonizou todo o tortuoso processo civilizador, desde quando eclodiram as pulsões humanas de apropriação e predação até os insólitos dias atuais, nos quais se alcançou a perigosa confluência de fenômenos que marcam o tempo presente: consumismo gerado pela globalização do fetiche mercadológico, algoritmização da vida, crescente declínio dos regimes democráticos, exacerbação dos conflitos geopolíticos e religiosos, degradação ambiental em escala planetária e a consequente ameaça à estabilidade dos ecossistemas e à habitabilidade do planeta Terra.
Se considerarmos os últimos seis mil anos, de fato, o Conflito tem sido a melhor expressão do que significa ser um Homo sapiens moderno, em processo de civilidade, seja no plano individual, social, político, ético, econômico, religioso, ambiental, ou em qualquer outra dimensão da experiência humana. Somos a única espécie que pretendeu levar a cabo o desejo de superioridade em relação às demais espécies, tentando moldar a realidade segundo visões de mundo muito dissonantes em relação à complexidade do mundo real, para um dia alcançar o chamado mundo civilizado. Existe, é claro, algumas esperançosas exceções à margem desse inalcançável projeto de modelagem da realidade, como é o caso dos povos originários – sempre vistos pelos civilizados como povos primitivos e selvagens –, cujo modo de viver talvez seja o referencial de convivência humana mais próximo do que existia antes do processo civilizatório do Ocidente ter sido desencadeado.
A compreensão de que o ser humano é essencialmente conflituoso permeia toda a obra de John Gray. No seu livro A alma da marionete – um breve ensaio sobre a liberdade humana (Record, 2018), Gray resume não só a condição humana, mas também sua natureza, nos seguintes termos:
“O que parece singularmente humano não é a consciência nem o livre-arbítrio, mas o conflito interno – os impulsos conflitantes que nos separam de nós mesmos. Nenhum outro animal busca a satisfação dos próprios desejos e ao mesmo tempo a amaldiçoa; passa a vida no terror da morte, mas se dispõe a morrer para preservar uma imagem de si mesmo; mata a própria espécie em nome de sonhos. Não é a autoconsciência, mas a divisão de si mesmo, que nos torna humanos.”
O Conflito como característica principal da condição humana, tal como compreendido por Gray, converge com a ideia do surgimento, na região que hoje compreende a Europa, da prevalência da cultura patriarcal em relação às culturas matrísticas precedentes, imposta por povos pastores guerreiros indo-europeus vindos do nordeste da Europa e noroeste da Ásia, ocorridas entre sete e seis mil anos atrás. Ou seja, o início da predominância da cultura patriarcal, que antes era episódica e limitada a alguns povos nômades das estepes euroasiáticas, provavelmente foi desencadeado com as sucessivas ondas de invasões desses povos guerreiros – o fenômeno da kurganização que mencionei antes. Essa abordagem foi examinada, amparando-se nos estudos da arqueóloga Marija Gimbutas, pelo neurobiólogo chileno Humberto Maturana, que definiu esse modo de viver patriarcal “pelas coordenações de ações e emoções que fazem de nossa vida cotidiana um modo de coexistência que valoriza a guerra, a competição, a luta, as hierarquias, a autoridade, o poder, a procriação, o crescimento, a apropriação de recursos e a justificação racional do controle e da dominação dos outros por meio da apropriação da verdade”. Já a vida matrística originária observada nos povos pré-patriarcais que habitavam a Europa Antiga tratava-se de “uma cultura na qual homens e mulheres podem participar de um modo de vida centrado em uma cooperação não-hierárquica”.
Enquanto Maturana explica as origens da destrutividade do comportamento humano considerando o aspecto da transformação (bifurcação) cultural ocorrida na Europa Antiga, John Gray articula uma compreensão dos humanos a partir da ideia de que o conflito interno constitui uma característica inarredável do seu atormentado modo de viver. São abordagens complementares que nos ajudam a compreender melhor a condição do Homo sapiens moderno e, assim, abre-se uma alternativa de investigação mais razoável para escaparmos das travas cognitivas que sempre tentaram compreender a natureza humana pelas vias da teologia e da teleologia, para as quais o mundo humano seria supostamente resultante do desdobramento de um processo progressivo de superação de imperfeições, um mundo governado por Deus e pela Razão, símbolos da perfeição desejada pelos ideais greco-judaicos – o Télos que o “espírito do tempo” estaria nos reservando para um futuro que tem se revelado cada vez mais irrealizável.
O fim das utopias
“Se tomarmos a história como nosso guia, devemos esperar que o livre
mercado global pertencerá, em pouco tempo, a um passado irrecuperável.
Como outras utopias do século 20, o laissez-faire global – junto com
suas vítimas – será engolido pelo buraco da memória da história.”
(Jonh Gray)
Para tornar a convivência humana tratável num mundo de sucessivas guerras intratáveis, o ser humano passou a sistematizar o conhecimento e a estabelecer visões de mundo para tentar dar um sentido a si mesmo e ao mundo em sua volta. Foram muitas as tentativas de buscar esse entendimento e de caracterizar a natureza humana, já formuladas ao longo dos 2.500 anos de percurso da Ciência e da Filosofia. Esse longo esforço para alcançar um conhecimento que tornasse viável uma cultura patriarcal frontalmente incompatível com a realidade perdura até os dias atuais. Por isso, a visão que parece mais razoável para definir o comportamento do que se convencionou chamar Homo historicus – usando aqui a expressão adotada para se referir aos cerca de seis mil anos de nossa tortuosa trajetória civilizatória, é essa de John Gray, que assume o comportamento conflituoso como característica inata da condição humana moderna, congruente com o modo de viver patriarcal, tal como identificado por Maturana.
O fluxo dos acontecimentos agonizantes da atualidade tem demonstrado que o grande empreendimento da busca de um sentido para o modo de viver humano, pela via do conhecimento filosófico e científico – que invariavelmente sempre foi influenciada pelos dogmas das religiões monoteístas, em especial o cristianismo –, começa a se revelar em vão. Esse infrutífero esforço cognitivo representou apenas um reflexo da inquietude humana gerada pelo viver patriarcal, como bem concluiu John Gray: “a religião e a filosofia têm a mesma finalidade. Ambas tentam atenuar a inquietação permanente que afeta os seres humanos. (…) Fingindo ser uma cura, a filosofia é um sintoma da desordem à qual ela tem a pretensão de remediar”. A filosofia, assim como o cristianismo ao qual ela está intimamente ligada, tem sido apenas uma tentativa, recorrentemente frustrada, de estancar a perene agonia do modo de viver patriarcal.
Dentre as muitas narrativas que tentam compreender e explicar as diversas crises enfrentadas pela civilização – e a atual, diferentemente das anteriores, tem gerado uma vulnerabilidade de alcance planetário –, não é incomum atribuir suas raízes a fatores externos às pulsões humanas, como frequentemente tem ocorrido em outros momentos de profunda regressão civilizatória, isto é, valendo-se de interpretações metafísicas acerca da realidade, cujas origens normalmente estão na religião. A disfunção cognitiva gerada pela cultura patriarcal, que se ancorou na quimera da salvação via progresso da ação humana, nos impede de perceber, como Gray tão bem o faz, que “a crença de que as instituições humanas são indefinidamente melhoráveis replica a fé teísta de que a história é uma narrativa moral do pecado seguida de redenção”.
A história da civilização foi forjada a partir de cosmovisões amparadas em sistemas de pensamento lastreados na crença em supostas entidades acima da vontade humana, sempre prevalecendo os mitos mais próximos de Tânatos do que de Eros – retomando aqui as formulações sobre as tensões da psique humana, tão bem elaboradas por Freud, um dos pensadores que John Gray gosta muito de se referir. Praticamente todo o nebuloso percurso civilizatório tem sido condicionado, até os dias atuais, por visões teleológicas (a ideia de que a história tem uma finalidade) e escatológicas (e também um fim) por trás das crenças milenaristas – a convicção de que o tempo é linear e, portanto, a história é regida por um Princípio e um Fim. Este Fim, que nunca se concretiza, seria demarcado, no caso da religião anunciada pelo Apóstolo Paulo, pela volta de um Cristo salvador. Um bom aprofundamento sobre esse assunto está no livro Missa negra – religião apocalíptica e o fim das utopias (Record, 2007), onde Gray afirma que “o mundo em que vivemos no início do novo milênio está coberto de escombros de projetos utópicos, os quais, embora estruturados em termos seculares que negavam a verdade da religião, constituíam de fato veículos para os mitos religiosos”.
Mesmo após o declínio do cristianismo, esses mitos religiosos permaneceram refletidos nos dilemas do Estado hobbesiano, dando continuidade aos problemas insolúveis da subordinação patriarcal, agora no contexto das sociedades de mercado, esse arranjo resultante do entrelaçamento entre economia de mercado e Estado-nação. A história tem demonstrado que a utopia de uma pacificação social ideal, mediante a imposição de uma vida social ordenada pelos instrumentos do Estado, também caminha lado a lado com as regressões totalitárias. Como bem afirmou Gray, “todas as sociedades contêm ideais divergentes de vida. Quando um regime utópico se defronta com este fato, o resultado só pode ser repressão ou derrota. O utopismo não causa o totalitarismo – para que surja um regime totalitário, são necessários muitos fatores –, mas o totalitarismo sempre sobrevém quando o sonho de uma vida sem conflito é persistentemente perseguido mediante o uso do poder do Estado.”
Talvez o maior exemplo histórico de fracasso utópico tenha ocorrido logo após a queda do muro de Berlim, em novembro de 1989, quando o filósofo e economista político nipo-estadunidense, Francis Fukuyama, vislumbrou, provavelmente movido por uma inspiração hegeliana do processo histórico, que a redenção humana, após tantas tentativas frustradas, havia chegado a um bom termo com uma suposta tendência de expansão global da democracia liberal, ao concluir que a dissolução das Repúblicas Socialistas Soviéticas representava “uma inconfundível vitória do liberalismo econômico e político, o ponto final da evolução ideológica da humanidade e a universalização da democracia liberal ocidental como a forma final de governo humano.” (The End of History, The National Interest, Summer, 1989)
Logo após esse anúncio ilusório de Fukuyama, de que alcançamos o fim da História, John Gray, reforçando mais uma vez sua posição de que é muito questionável imaginar que o progresso representou algum avanço ético no processo civilizatório, replicou: “Pelo menos sabemos de uma coisa: a história não há de acabar com a morte do liberalismo, nem com o colapso do comunismo. A segunda coisa que sabemos com certeza é que não temos nenhuma razão para esperar que o futuro seja marcadamente diferente do nosso passado. Como a temos conhecido, a história humana é uma sucessão de contingências, catástrofes e lapsos ocasionais de paz e civilização.” (The End of History, again?, National Review, October, 1989)
Contrariando a percepção de que alcançaríamos na História alguma estabilidade na convivência humana, chegamos ao século XXI, que se revela cada vez mais sombrio e terminal, com pelo menos quatro novas circunstâncias globais regressivas que não existiram em nenhum momento da história e que têm um enorme potencial de arrastar a civilização para uma situação de colapso inaudita e, talvez, irreversível. São elas:
1) a superpopulação de 8 bilhões, em um planeta que já está desde 1970 com acelerado déficit de biocapacidade de regeneração, paradoxalmente acompanhada pela crescente solidão do especismo humano;
2) as mudanças climáticas, tendentes a ultrapassar o limite de 2ºC acima dos níveis pré-industriais (Acordo de Paris, 2015), tornando a Terra cada vez mais inabitável;
3) a escassez energética, que provavelmente representará o maior indutor de guerras e conflitos neste século XXI, agora pela disputa de recursos naturais declinantes;
4) a regressão democrática, associada à acelerada desconstituição do Estado-nação enquanto eixo regulador da civilização (como ocorreu com o Cristianismo antes dele), movimento impulsionado pela distopia do novo totalitarismo de mercado guiado pela hipervigilância dos algoritmos.
São fenômenos agônicos globais entrelaçados que se reforçam mutuamente e seus desdobramentos serão, muito provavelmente ainda na primeira metade deste século, os propulsores tanto do ápice quanto do ocaso capitalista. Resta-nos apostar que essa confluência de circunstâncias catastróficas, que estão pondo por terra todas as utopias do século XX, representem o último fôlego do modo de viver patriarcal.
Ilusões necessárias
“O progresso na ciência e na tecnologia é um fato,
ao passo que o progresso na ética e na política é uma ficção. (…)
Os velhos demônios regressam, geralmente com novos nomes.
O que vemos como características inalteráveis da vida civilizada
se desvanece em um piscar de olhos.”
(John Gray)
Em um dos muitos de seus esclarecedores ensaios sobre a condição humana, John Gray afirma que “a história das ideias obedece a lei da ironia. As ideias têm consequências, mas raramente são as que os autores esperam ou desejam, e nunca apenas estas. Com bastante frequência, são o oposto.” Esse pensamento de Gray converge com um dos chamados operadores cognitivos do pensamento complexo, desenvolvidos por diversos autores, especialmente por Edgar Morin, considerado o maior expoente das Ciências da Complexidade. Trata-se da “ecologia da ação” cujo enunciado-síntese é o seguinte: “as ações com frequência escapam ao controle de seus autores e produzem efeitos inesperados e às vezes até opostos aos esperados.” Muitas das ilusões humanas seguem exatamente essa “lei da ironia”. A ideia de que podemos observar um progresso na ação humana é provavelmente o exemplo mais emblemático dessa ironia.
Vários pensadores influentes têm comungado, ao longo do tempo, de uma compreensão progressiva da história. A visão hegeliana de que a “história universal é o progresso da consciência da liberdade – um progresso cuja necessidade temos de reconhecer”, atestando um suposto processo gradual de conquista e aprimoramento da condição humana, tem sido reforçada de tempos em tempos.
John Gray, segundo o qual “filósofos de Platão a Hegel têm interpretado o mundo como se fosse um espelho do pensamento humano”, é também uma das melhores referências para quem deseja compreender a noção de progresso como um dos mitos mais poderosos e autodestrutivos que a humanidade já produziu. Gray é um dos raros intelectuais que conseguiu perceber que o que impulsionou o que entendemos por civilização foram as diversas utopias já experimentadas, invariavelmente de raízes greco-judaicas, que alimentaram um tortuoso solipsismo humano, forjando, ao longo da história, realidades exclusivamente antrópicas, conflituosas, degradantes e, por isso, totalmente desconectadas da complexidade do mundo real.
Em uma das passagens do livro A alma da marionete: um breve ensaio sobre a liberdade humana (Record, 2018), nos deparamos com uma das esclarecedoras sínteses do pensamento de John Gray. Ele afirma que “depois de aparentemente aniquilado pelo cristianismo, o gnosticismo conquistou o mundo. A crença no poder libertador do conhecimento tornou-se a ilusão dominante da humanidade moderna. A maioria quer acreditar que algum tipo de explicação ou compreensão vai libertá-los de seus conflitos.”
O fato é que se tornou lugar comum, inclusive entre grandes expoentes da Ciência e da Filosofia, desde tempos imemoriais, o ideário de que o conhecimento induz o progresso, que, por sua vez, é capaz de libertar o ser humano das suas supostas limitações, conter seus instintos bárbaros e melhorar seu grau de civilidade, mitigando seus conflitos e, quem sabe, um dia podendo até mesmo eliminá-los. Não são poucos os exemplos pela história que demonstram como a mais alta intelectualidade tem insistido e reforçado essa grande ilusão de que o avanço do conhecimento está levando, inexoravelmente, a civilização, apesar de tantos reveses, para um estágio cada vez mais aprimorado de convivência e de maior liberdade de ação humana.
Se há uma crença que alimentou o buraco negro em que se transformou o atual sistema-mundo capitalista – esse modo de viver resultante da longa prevalência da cultura patriarcal que está, literalmente, inviabilizando todas as condições de sociabilidade humana – é a fantasia de que o conhecimento é única via para libertar a humanidade dos seus conflitos, que, por sua vez, poderá alçá-la a patamares cada vez mais altos de aprimoramento civilizatório, proporcionado pelo tal progresso. No fundo, “a ideia de progresso baseia-se na crença em que o crescimento do conhecimento e o avanço das espécies caminham juntos – se não agora, pelo menos a longo prazo”, como bem disse Gray, levando-o a concluir: “O conhecimento não nos torna livres. Ele nos deixa como sempre fomos, vítima de todo tipo de loucura.”
O mais razoável seria aceitarmos que depois que o Homo sapiens dissociou-se da natureza, como bem percebeu Edgar Morin, passou a viver em permanente autoengano, alimentando ilusões totalmente desconectadas da dinâmica do mundo real. Estamos falando aqui das visões de mundo que foram sendo elaboradas e vivenciadas ao longo da história, até chegarmos à visão tecno-econômica de mundo, que impera quase absoluta na época atual. Todas as cosmovisões já experimentadas, desde o teocentrismo da idade média, passando pelo antropocentrismo da cultura renascentista e moderna, que foi mesclado com o mecanicismo determinista iniciado no século XVII e degenerou no tecno-economicismo atual – e até mesmo a aposta no transumanismo proporcionado pelos algoritmos, que alguns projetam para o futuro próximo –, constituem subprodutos da cultura patriarcal, a qual está amparada na apropriação da verdade de que o mundo é uma grande arena regida pela ideia de luta, hierarquia, poder, controle e extração de recursos naturais.
O ser humano é um animal que não vive sem ilusões e são elas que, para o bem ou o mal, dão significado ao seu modo de viver. Portanto, é extremamente importante que saibamos hoje diferenciar as boas das más ilusões, inclusive para melhor lidarmos com os desafios civilizatórios em curso. Por isso Gray afirma que “de agora em diante, nosso propósito será identificar nossas imbatíveis ilusões”. Para isso, ele sugere acolhermos os bons mitos, recomendando dois critérios para identificá-los: primeiro verificar se o mito se aproxima das contradições e ambiguidades inerentes à condição humana e segundo que não seja excludente, demonizando e eliminando segmentos da sociedade tal como fizeram muitas religiões e ideologias políticas ao longo da história. No fundo, Gray está propondo que adotemos mitos que se aproximem da complexidade do mundo real e se afastem do nosso condicionamento patriarcal milenar.
Modus vivendi
“Embora o liberalismo ocidental possa estar em grande parte extinto,
as ideias ocidentais iliberais estão moldando o futuro.
O Ocidente não está morrendo, mas vivo nas tiranias que agora o ameaçam.
Incapazes de compreender essa realidade paradoxal,
nossas elites ficam olhando fixamente enquanto o mundo
que consideravam natural desliza para as sombras.”
(John Gray)
Para John Gray, há dois principais mitos que governam e alimentam o conflito humano – cujo cerne encontra-se na religião, em especial na fé cristã que moldou toda a Idade Média – e que sustentam a política moderna até os dias atuais. Um é a crença no progresso da humanidade e o outro, atrelado ao primeiro, é a ideia de que a história caminha inexoravelmente para uma civilização universal pacificada, sob um modo de vida único. Segundo Gray, o fluxo dos acontecimentos demonstrou o contrário: “com o enfraquecimento do cristianismo, a intolerância por ele legada ao mundo tornou-se ainda mais destrutiva. Seja no imperialismo, no comunismo ou nas incessantes guerras para defender a democracia e os direitos humanos, os mais bárbaros modos de violência têm sido promovidos em nome de uma civilização mais elevada.”
Esses dois mitos (o progresso e o universalismo) constituem os principais fundamentos do fracassado projeto civilizatório da democracia liberal estadunidense. São eles que alimentam a fantasia humana de tentar moldar o mundo segundo a sua imagem e, desse modo, salvá-lo de um suposto mal (que inclui aqueles que não seguem a cartilha do Ocidente) a ser exterminado. Gray, um “pessimista esclarecido”, como alguns o chamam, não acredita que possamos algum dia sair dessa dinâmica maniqueísta – herdada dos mesmos ideais greco-judaicos que forjaram o cristianismo e moldaram toda a história do Ocidente –, muito menos que o animal humano consiga retornar ao seu estado primordial. Uma vez experimentado o fruto proibido do conhecimento, não haveria mais volta. No máximo, ele vislumbra que o sofrimento humano possa ser atenuado, caso haja um esforço de remodelagem do projeto liberal que possa evoluir para o que ele chama de “modus vivendi”, uma proposta que ele defende no primeiro capítulo do livro A anatomia de Gray (Record, 2011).
O Estado liberal é resultado de um longo experimento iniciado na Europa do século XVI que, apesar de muitos desvios, parecia estar imbuído do propósito de uma convivência humana mais tolerante e plural. No entanto, as forças da cultura patriarcal milenar, que a partir da modernidade ancoraram-se na razão, no progresso e no individualismo, com muito mais vigor do que no passado guiado pelos dogmas da fé cristã, inviabilizaram tal direcionamento. Fomos, desse modo, sendo arrastados para a convergência das múltiplas crises globais imbricadas que enfrentamos hoje, principalmente a política, a social, a econômica e a ambiental. Esta última, a mais perturbadora de todas, está cada dia mais próxima de se tornar insolúvel e irreversível.
Durante o período de 1946 a 1973, em que prevaleceu o Welfare State proporcionado pelas regras keynesianas aprovadas nos Acordos de Bretton Woods, em 1944 (quando o Norte Global ainda estava convulsionado pela Segunda Guerra Mundial), que aparentava ser a única resposta possível para recuperar a economia global de um Ocidente devastado por duas guerras mundiais seguidas, o ideário do “capitalismo democrático” estadunidense avançou e foi se consolidando como sistema político e econômico hegemônico. Após este período, o sistema-mundo orientado pelo regime de acumulação do capital entrou silenciosamente numa espiral de crises recorrentes. As principais estão refletidas, hoje, na iminência de colapso ambiental e na assombrosa perspectiva de uma conflagração nuclear global. Ou seja, as crises que se sucederam desde o final dos anos gloriosos não foram suficientes para alertar a inteligência política e acadêmica sobre o que estaria por vir. Esta cegueira ficou evidenciada depois que se festejou com entusiasmo o “fim da história”, com o colapso do regime soviético.
São poucos os que observam o fluxo da história sem se deixar iludir pelo autoengano, como é o caso de John Gray, que entende que “precisamos de um ideal que não esteja baseado em um consenso racional sobre o melhor modo de vida, nem num razoável desacordo sobre esse melhor modo de vida, mas antes no fato de que os seres humanos sempre terão razões para viver diferenciadamente. O modus vivendi é tal ideal.” Para alcançá-lo, Gray também entende que “não precisamos de valores comuns para vivermos juntos e em paz. Precisamos de instituições comuns, nas quais muitas formas de vida possam coexistir.”
A ideia do modus vivendi proposta por Gray tem muita similaridade, por exemplo, com a possibilidade de um resgate neomatrístico, como acreditava Humberto Maturana, ideia também similar à perspectiva de uma metamorfose cultural, tal como imaginada por Edgar Morin, para quem “quanto mais nos aproximamos da catástrofe, mais a metamorfose é possível. Então, a esperança pode vir do desespero”. Inclusive, a possibilidade de realização de uma democracia desapropriada do patriarcado, como defendia Maturana (tratei desse assunto no artigo Como o patriarcado engole a democracia), talvez possa emergir se o projeto liberal for capaz de reformular-se e abrir-se a esse modus vivendi.
A proposta de Gray ainda converge com a possibilidade de alcançarmos uma “hiperdemocracia” daqui a aproximadamente 40 anos, conforme vislumbrado por Jacques Attali no livro Uma Breve História do Futuro (2006). O porquê desse longo interstício de quatro décadas é que, segundo Attali, a humanidade ainda deverá experimentar duas “ondas do futuro”, o “hiperimpério” (mercado planetário, sem Estado) e, como derivação desta, o “hiperconflito” (após a violência do dinheiro, a violência das armas), inclusive como uma espécie de pré-requisitos agônicos para que a hiperdemocracia possa aflorar.
Aliás, o mais recente livro de Gray, publicado em setembro de 2023, The new leviathans: thoughts after liberalism, que inclusive causou enorme pânico naqueles que não admitem existir outra forma de sociabilidade humana que não contemple a ideia de progresso – tendo o neoliberalismo como o seu principal indutor –, aborda a mesma antevisão trágica prognosticada por Jacques Attali 20 anos atrás, a percepção de que iremos nos deparar brevemente com a agonia do “hiperimpério” seguida da catástrofe do “hiperconflito”. Por isso é que para Gray “muito provavelmente, olharemos o século XX como um tempo de paz.”
O historiador inglês Eric Hobsbawm encerra o quarto e último volume de sua principal obra [A era das revoluções (1962), Era do capital (1975), A era dos impérios (1987) e Era dos extremos: o breve século XX (1994)] concluindo que “se a humanidade quer ter um futuro reconhecível, não pode ser prolongamento do passado ou do presente. Se tentarmos construir o terceiro milênio nessa base, vamos fracassar. E o preço do fracasso, ou seja, a alternativa para uma mudança da sociedade, é a escuridão”. Nesse contexto terminal em que a humanidade se encontra, a aposta num modus vivendi que consiga resgatar a pluralidade e a tolerância como princípios norteadores da convivência humana, tal como formulado por Gray, talvez represente a mudança civilizatória imaginada por Hobsbawm que possa nos livrar do condicionamento patriarcal, ante a escuridão das catástrofes que nos esperam.
Outros animais
“Se você busca as origens da ética,
olhe as vidas de outros animais.
As raízes da ética estão nas virtudes animais.
Os humanos não podem viver bem sem as virtudes
que partilham com seus parentes animais.”
(John Gray)
Nossa crise civilizatória, que se arrasta há seis milênios, é também uma crise de percepção da realidade. As descobertas de Darwin dissiparam qualquer possibilidade de termos algum privilégio evolutivo em relação às outras espécies animais. Mais recentemente, as contribuições das Ciências da Complexidade para a compreensão da imbricada dinâmica da vida, a partir de nomes como Einstein (relatividade) Heisenberg (incerteza), Prigogine (neguentropia), Lorenz (atratores caóticos), David Bohm (ordem implicada), Henri Atlan (auto-organização), Mandelbrot (fractais), Morin (complexidade), Maturana e Varela (autopoiese), Jacques Monod (acaso e necessidade) e tantos outros, demonstraram que estamos enredados numa misteriosa teia de processos adaptativos complexos, que não se coaduna com nenhuma das visões de mundo dominantes já experimentadas pela humanidade, sobretudo a atua visão de que o universo é um grande tecno-mercado.
Ainda assim, o Homo rapiens – como bem caracterizou John Gray –, surgido após o neolítico, continua a insistir no propósito de um dia conseguir forjar uma realidade totalmente governada pelos mitos criados a partir da sua ilusão patriarcal dominadora, atualmente refletida no progresso, no individualismo, nos algoritmos e na exaustão dos recursos naturais. Gray intuiu bem essa nossa crise de percepção ao afirmar: “outros animais não precisam de um propósito na vida. Uma contradição em si mesmo, o animal humano não pode passar sem um. Será que não podemos pensar o propósito da vida como sendo simplesmente ver?” Conseguirá o animal humano recuperar essa simplicidade e voltar a ver o que os seus inúmeros parentes animais veem? Não estaria nos outros animais a saída dessa sujeição à cultural patriarcal?
Um dos melhores insights de John Gray provavelmente esteja nessa ideia de que temos muito o que observar e aprender com a despretensiosa vida dos outros animais, que, diferentemente dos seres humanos, nunca aspiraram ter uma vida além daquela que eles já têm. Talvez seja esta a janela que precisaríamos abrir para enxergarmos qual é o lugar do animal humano no mundo. Gray resumiu bem essa sua percepção quando disse: “Hegel escreve em algum lugar que a humanidade só se contentará quando estiver vivendo num mundo construído por si mesma. Ao contrário, argumento a favor de uma mudança que se afaste do solipsismo humano. Os humanos não podem salvar o mundo, mas isso não é razão para desespero. Ele não precisa de salvação. Felizmente, os humanos nunca viverão num mundo construído por si mesmos.”
Conseguiremos escapar da ruína civilizatória que está sendo desencadeada por esse solipsismo humano?
A complexidade do mundo real, com suas misteriosas imprevisibilidades e imponderáveis emergências, provavelmente dará uma resposta aos seres humanos ainda neste século XXI, permitindo, quem sabe, ao homo historicus encapsulado em si mesmo retornar à sua condição de homo sapiens demens (lembrando aqui mais uma das esclarecedoras compreensões de Edgar Morin sobre a fragilidade da condição humana),reconciliado com a natureza e com as suas limitações, imperfeições e contradições. A mesma condição dos primatas hominídeos que o precederam por milhões de anos, uma condição que aceita o conflito e a contingência, e que, para conviver melhor com a incerteza e a aleatoriedade do mundo real, abraça a pluralidade, a diversidade e a interdependência de todas as formas de vida. Enfim, que se percebe como apenas mais um animal dentre inúmeros outros, viajantes que ainda estão resistindo em coexistir e coabitar esse nosso degradado e resiliente planeta Terra.
“O mundo não é respeitável;
é mortal, atormentado, confuso, para sempre iludido;
mas é permeado de beleza, amor, centelhas de coragem e riso;
e nessas coisas o espírito floresce timidamente,
esforçando-se na direção da luz em meio aos espinhos.
Esta é a vida esvoaçante dessa coisa alada,
o espírito, nessa velha, sórdida e maternal Terra.”
(Georde Santayana, citado por Jonh Gray no ensaio Sete tipos de ateísmos, 2018)
Leitura recomendada:
GRAY, John. Falso amanhecer – os equívocos do capitalismo global. Rio de Janeiro: Record, 1999.
GRAY, John. Al Qaeda e o que significa ser moderno. Rio de Janeiro: Record, 2004.
GRAY, John. Cachorros de palha: reflexões sobre humanos e outros animais. Rio de Janeiro: Record, 2006.
GRAY, John. Jogos finais: questões do pensamento político moderno tardio. São Paulo: Editora UNESP, 2008.
GRAY, John. Missa negra – religião apocalíptica e o fim das utopias. Rio de Janeiro: Record, 2008.
GRAY, John. A anatomia de Gray. Rio de Janeiro: Record, 2011.
GRAY, John. O valor liberdade: diálogos sobre possibilidades do humano. Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2013. Disponível aqui.
GRAY, John. A busca pela imortalidade: a obsessão humana em ludibriar a morte. Rio de Janeiro: Record, 2014.
GRAY, John. A alma da marionete: um breve ensaio sobre a liberdade humana. Rio de Janeiro: Record, 2018.
GRAY, John. O silêncio dos animais: sobre o progresso e outros mitos modernos. Rio de Janeiro: Record, 2019.
GRAY, John. Sete tipos de ateísmo. Rio de Janeiro: Record, 2021.
GRAY, John. Filosofia felina: os gatos e o sentido da vida. Rio de Janeiro: Record, 2022.
GRAY, John. The new leviathans – thoughts after liberalism. London: Allen Lane, 2023. (ainda sem tradução no Brasil)
Antônio Sales Rios Neto – Servidor público federal. Estudioso da cultura patriarcal (entendida como principal elemento constitutivo do processo civilizatório e propulsor do antropoceno) e das novas abordagens da Complexidade (um dos meios de superação do patriarcado). Coordenador, representando o Brasil, do projeto “La Emergencia de los Enfoques de la Complejidad en América Latina”, iniciativa da Comunidad de Pensamento Complejo (CPC), sediada na Argentina.
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Olá Antonio
Também sou Antonio.
Fico grato por nos apresentar Gray, o João Cinza?
Um nome adequado para os tempos em que vivemos…
Sou um admirador inveterado de Bohm e de Jung.
Acredito ser necessário em ir além do patriarcado e da errônea noção de progresso, sem entretanto retornar para o matriarcado (ainda que sob a roupagem matrística de Maturana), chegando à alteridade de alguma maneira, sem saber como.
Acredito que os animais sejam superiores a nós e que nos fazem ver o quão equânimes eles são à dita condição ‘superior’ dos humanos.
Pelo que entendi, no fundo Gray abandona os mitos para depois retomá-los, selecionando aqueles que nos sejam favoráveis. Penso poder ser essa uma atitude ‘progressista’ e ‘patriarcal’.
Acredito na Jornada do Herói e em especial no livro Resposta a Jó de Jung, que nos permite entender o porque o ser humano necessita criar algo maior do que si mesmo, proveniente da dicotomia decorrente da terceirização da Omniciencia para a figura feminina, a Sophia, denominada atualmente por Inteligência Artificial.
Não acredito que possamos parar essa trajetória ecocida e genocida, nem sei o que virá no pós apocalipse.
O que sei é que ainda não dispomos de tecnologias que nos permitam controlar a gravidade e paradoxalmente a tecnologia da IA, a convergência tecnológica digital, o trans humanismo, a bio e a nano tecnologia, o computador quântico e sabe-se lá o que mais, possam tornar isso possível.
Para controlar a gravidade, sei que a realidade não é 4D e sim, no mínimo, 5D. Aí é necessário utilizar Kalusa-Klein (Universo 5D), Bohm (Totalidade), Prigogine (Complexidade), Sheldrake (Campos Morfogenéticos) e Tesla (ondas escalares).
Prefiro acreditar, talvez por autoengano, que mesmo que a humanidade se autodestrua estaremos com os mesmos dilemas na quinta dimensão, a qual está dobrada e além de nossos ilusórios sentidos.
Saudações
Antonio