O que o filme Homem Aranha 3 tem a ensinar aos inimigos de Lula?

Os requisitos da sentença são definidos pelo Código de Processo Penal:

Art. 381. A sentença conterá:

I – os nomes das partes ou, quando não possível, as indicações necessárias para identificá-las;

II – a exposição sucinta da acusação e da defesa;

III – a indicação dos motivos de fato e de direito em que se fundar a decisão;

IV – a indicação dos artigos de lei aplicados;

V – o dispositivo;

VI – a data e a assinatura do juiz.

Quando era jovem, fui serventuário concursado lotado num cartório criminal da Justiça Comum paulista. Naquela época manuseava diariamente centenas de processos criminais, alguns sentenciados outros por sentenciar. Trabalhei com vários juízes, mas marcou-me muito a precisão técnica e a concisão de um deles: o titular da Vara.

Pessoalmente eu não gostava muito daquele juiz. Certa feita ele implicou com minha estrelinha do PT e eu sustentei meu direito de usá-la no cartório. Mesmo assim, devo fazer aqui uma modesta homenagem ao tal.

As sentenças que ele proferia tinham no máximo 4 ou 5 laudas. Na primeira o juiz cumpria os requisitos dos incisos I e II, do art. 381, do CPP. Nas demais, ele fundamentada a decisão com base na prova pericial, documental e testemunhal levando em conta as características do crime atribuído ao réu. O dispositivo geralmente consumia apenas um parágrafo contendo a fundamentação legal da absolvição ou da condenação do réu da pena lhe imposta.

As decisões proferidas por juiz eram secas, vertidas numa linguagem desprovida de adornos. Nelas não se via qualquer emoção em relação à vítima, ao réu, aos defensores e ao Promotor. As questões jurídicas não eram tratadas de uma maneira sofisticada e elegante. Ao aplicar a Lei Penal, o juiz se limitava a respeitar a jurisprudência e a doutrina sobre o assunto. Ele não criava o Direito no ato de julgar, ele apenas dizia qual Direito preexistente deveria ser dito em cada caso específico.

Vi algumas daquelas sentenças serem reformadas. Em alguns processos o TJSP reduzia a pena por causa de uma atenuante não observada pelo juiz e invocada no recurso. Em outros, a pena era aumentada a pedido do MP por causa de uma condição agravante ou porque o juiz havia cometido um deslize ao efetuar o cálculo. Todavia, em todo período que trabalhei naquele cartório criminal não vi uma só sentença ser anulada porque o juiz titular não havia cumprido fielmente os requisitos do art. 381, do CPP.  

Em geral, ao sentenciar aquele juiz de Vara criminal de uma cidade na periferia de São Paulo fazia jus à máxima de Piero Calamandrei:

“Nem sempre sentença bem fundamentada quer dizer sentença justa, e vice-versa. Às vezes, uma fundamentação negligente e sumária indica que o juiz, ao decidir, estava tão convencido de que sua conclusão fosse correta que considerava perda de tempo pôr-se a demonstrar a evidência; do mesmo modo que, outras vezes, uma fundamentação prolixa e acurada pode revelar no juiz o deseja de dissimular a si mesmo e aos outros, à força de arabescos lógicos, sua perplexidade.” (Eles, os juízes, vistos por um advogado, Piero Calamdrei, WMF Martins Fontes, São Paulo, 2015, p. 118)

A sentença proferida por Sérgio Moro no caso do Triplex tem 238 páginas. Um exagero… Em razão de minha experiência como serventuário da justiça criminal paulista, fiquei com a impressão de que ao invés de sentenciar o processo o juiz da Lava Jato resolveu escrever um livro sobre Lula. O livro condenatório de Sérgio Moro, contudo, não me convenceu.

Não sou especialista em Direito Penal, mas me parece que a dúvida sobre a propriedade do Triplex deveria ser resolvida pela análise do registro no Cartório de Imóveis. O documento tem fé pública e a informação que ele contém não poderia ser desprezado pelo juiz, exceto se ficasse provado através de Perícia que o documento foi falsificado.

O fato de um jornalista atribuir a propriedade do Triplex ao réu é irrelevante. A matéria jornalística é um documento particular e como tal não faz prova do fato que enunciou contra terceiro. No máximo o texto faria prova da ofensa contra quem assinou a reportagem. O conflito entre o documento particular (matéria jornalística) e a certidão do Cartório de Imóveis pode ser facilmente solucionado: o documento público tem infinitamente mais valor jurídico do que um documento particular que enuncia fato diverso.

A delação não faz prova do crime atribuído ao terceiro. No máximo o criminoso-delator fornece um indício frágil que justificará uma nova investigação criminal. Aplica-se aqui o princípio da presunção de inocência prescrita na CF/88, o qual não pode ser revogado ou transformado numa presunção de culpa só porque um criminoso-delator atribuiu outro crime ao terceiro para receber um benefício legal.

Tudo bem pesado, a sentença absolutória de Lula poderia ter no máximo umas 10 laudas. A condenação prolixa e o excesso verbal neste caso devem ser atribuídos à perplexidade de um juiz que não leu todos os documentos existentes nos autos (como dito na longuíssima sentença) porque desejava condenar Lula para angariar para si mesmo uma glória imortal. Sérgio Moro certamente conseguirá a imortalidade que deseja, mas talvez isto ocorra de uma forma diferente daquela que ele imaginou.

Antes da oitiva de Lula, a revista Veja delineou o encontro entre Sérgio Moro e Lula como um confronto entre o herói e o vilão de uma HQ. Para ficarmos nos medíocres limites conceituais daquela revista, devo dizer que a injustiça cometida pelo juiz da Lava Jato vai aderir à pele dele como aquela substância negra repugnante que colou na fantasia do Homem Aranha no terceiro filme da série lançado em 2007. O personagem de HQ conseguiu se livrar do estigma, Sérgio Moro provavelmente não conseguirá fazer isso.

Fábio de Oliveira Ribeiro

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