As abelhas da discórdia ferroam o STF, por Fábio de Oliveira Ribeiro

O ministro Luis Barroso parece acreditar que está acima das obrigações impostas pelo §1º, inciso IV, do art. 489, do CPC ou, pior, que tem o direito de modificar sozinho o regimento do STF.

As abelhas da discórdia ferroam o STF

por Fábio de Oliveira Ribeiro

Há alguns dias narrei no GGN o início de um caso interessante no STF https://jornalggn.com.br/destaque-secundario/as-abelhas-da-discordia-por-fabio-de-oliveira-ribeiro/ . Retorno ao tema para comunicar seus primeiros desdobramentos. Resumindo: o ministro Luís Barroso, designado para o caso, proferiu decisão sumariamente rejeitando a representação. Em razão dos defeitos formais na decisão dele protocolei Embargos de Declaração. O recurso foi rejeitado sem que o mérito dele fosse julgado e o ministro Luís Barroso me condenou a pagar uma multa processual.  

Como sou extremamente insistente resolvi recorrer, pois estou enterrado em casa assistindo a série “Declínio e queda do meu escritório de advocacia”, melodrama baseado em fatos verídicos, comprovados pela contabilidade dos últimos 2 anos. Confinado no “home office” sem ter muito o que fazer, o protagonista fica lendo livros, vendo filmes antigos no YouTube e arrumando tretas no STF.  

“I- A petição do agravante foi sumariamente indeferida pelo ministro Luís Barroso sob o fundamento de que a AVOCAÇÃO é impossível se houver decisão transitada em julgada e não admitir recurso com efeito suspensivo. No caso em tela, haveria possibilidade de recurso com efeito suspensivo, razão pela qual não seria admissível o PGR estudar a AVOCAÇÃO pretendida pelo embargante. Na oportunidade, o ministro ameaçou o agravante com punição em caso de interposição de recurso. 

II- Inconformado, o agravante interpôs Embargos de Declaração por dois motivos:  

1- o ministro Luis Barroso interpretou incorretamente o dispositivo regimental mencionado na petição inicial; 

2- os fatos alegados na inicial acerca do perigo que justificaria a AVOCAÇÃO foram simplesmente ignorados pelo relator. 

III- Ao julgar os Embargos de Declaração, sem adentrar ao mérito do recurso, o ministro Luis Barroso indeferiu a pretensão do agravante dizendo queA alegação da parte agravante expressa mero inconformismo com a decisão recorrida, uma vez que não há omissão na decisão impugnada”. 

O fundamento dado para a rejeição dos Embargos de Declaração foi genérico, pois o ministro Luis Barroso não demonstrou como e porque o recurso manejado pela parte não se ajusta à hipótese legal. Isso só seria suficiente para o Tribunal considerar nula a decisão, pois além de carecer de fundamento, ela dificulta a parte manejar o recurso adequado. 

IV- Ao indeferir a petição, o ministro Luis Barroso diz que para que a AVOCAÇÃO seja possível o regimento do Tribunal exige dois requisitos: não ter ocorrido trânsito em julgado “e” a inexistência de recurso com efeito suspensivo. 

Vejamos então o que diz o regimento do STF interpretado pelo referido ministro: 

“Art. 252. Quando, de decisão proferida em qualquer Juízo ou Tribunal, decorrer imediato perigo de grave lesão à ordem, à saúde, à segurança ou às finanças públicas, poderá o Procurador-Geral da República requerer a avocação da causa, para que se lhe suspendam os efeitos, devolvendo-se o conhecimento integral do litígio ao Supremo Tribunal Federal, salvo se a decisão se restringir a questão incidente, caso em que o conhecimento a ela se limitará. 

Parágrafo único. Não caberá pedido de avocação, se a decisão impugnada houver transitado em julgado, ou admitir recurso com efeito suspensivo. ” 

A partícula de ligação no parágrafo único do dispositivo regimental supostamente aplicada pelo ministro relator é “ou”. Ela obviamente não pode ser interpretada como se fosse “e”. No primeiro caso, o texto indica a inexistência de obrigação dos dois requisitos serem preenchidos de maneira concomitante. No segundo (caso da interpretação dada pelo ministro Luís Barroso), a concomitância ou preenchimento dos dois requisitos seria indispensável.  

Portanto, nós estamos diante de um problema que merecia ser apreciado e resolvido quando do julgamento dos Embargos de Declaração. Todavia, não foi isso o que ocorreu. O ministro Luis Barroso não apenas DEFORMOU o conteúdo do regimento do STF como USURPOU o direito da parte de obter dele uma decisão específica referente à matéria jurídica levada ao seu conhecimento através do recurso adequado.  

O comportamento do ministro Luis Barroso não é apenas indigno, ele é ofensivo. Não compete a ele MODIFICAR o conteúdo do regimento do STF. Tampouco pode ele ENTERRAR uma pretensão juridicamente plausível mediante uma decisão genérica que diz que a parte não fez o que devia quando o que na verdade ocorreu foi uma evidente SONEGAÇÃO da prestação de jurisdição da parte dele. 

O CPC permite à parte interpor Embargos de Declaração e obriga o julgador a conhecer e decidir o que lhe foi submetido de maneira específica, pois “Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que: não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador.” (§1º, inciso IV, do art. 489, do CPC). 

O regimento interno do STF não deve ser interpretado de maneira inadequada, mas foi isso o que ocorreu no caso em tela. A questão foi exposta de clara e racional nos Embargos de Declaração e o julgamento da questão poderia infirmar a conclusão adotada no acórdão, pois a interpretação correta leva inevitavelmente ao processamento do pedido formulado (o qual foi rejeitado mediante uma interpretação maliciosa e deliberadamente equivocada da norma regimental). 

Tal como foi formulado, o pedido do agravante encontra fundamento, pois não há decisão transitada em julgado no caso que se pretende AVOCAR. A satisfação desse requisito foi comprovada e seu preenchimento justificaria o estudo da AVOCAÇÃO do caso pelo PGR. Não é necessário o agravante cumprir os dois requisitos concomitantemente como dá a entender a decisão agravada da lavra do ministro Luis Barroso, pois o Regimento do STF admite a AVOCAÇÃO quando não há decisão transitado em julgado (caso do requerente) ou quando inexiste recurso com efeito suspensivo (situação diferente daquela submetida ao Tribunal). 

Ao interpretar a partícula “ou” da norma regimental como se fosse “e”, o relator proferiu uma decisão paradoxal, obrigando a parte a cumprir um requisito que inexiste. Ele tinha o dever de esclarecer esse aspecto da decisão, pois ou bem o regimento diz uma coisa ou diz outra. Todavia, o ministro Luis Barroso parece acreditar que está acima das obrigações impostas pelo §1º, inciso IV, do art. 489, do CPC ou, pior, que tem o direito de modificar sozinho o regimento do STF.  

Não só isso. Além de não fazer o que estava obrigado legalmente a fazer, o ministro Luis Barroso cumpriu a promessa inicialmente feita. Ao julgar os Embargos de Declaração ele puniu a parte que fez o que a Lei lhe permitir. Isso não é apenas ultrajante. A punição imposta ao agravante pode e deve ser revogada, pois essa Corte é guardiã do sistema constitucional e não da arrogância de um ministro que acredita ser um avatar da deusa da justiça. 

V- Outra omissão do julgado levada ao conhecimento do ministro Luis Barroso através dos Embargos de Declaração diz respeito ao perigo que justificaria a AVOCAÇÃO. 

O Ministro Luís Barroso indeferiu a petição do agravante dizendo que não há perigo para a colmeia de abelhas objeto da disputa entre a cliente do requerente e sua ex-adversa, pois o processo não foi julgado e está sujeito a recurso com efeito suspensivo. 

Todavia, não foi este o perigo que motivou o protocolo da representação e que foi explicitado uma segunda vez nos Embargos de Declaração. 

Em duas oportunidades o agravante sustentou que disputas semelhantes àquela que foi levada ao conhecimento do STF têm sido decididas exclusivamente com base no direito de vizinhança. Há prova documental nos autos de que as abelhas correm o risco de ser extintas e que isso pode afetar de maneira negativa o bem-estar e até mesmo a existência da espécie humana. Essa prova foi obviamente ignorada pelo relator, razão pela qual convém reproduzi-la nesse recurso. Ela está às fls. 69/72 do processo que se pretende AVOCAR (anexado na íntegra á petição inicial do agravante):  

O STF é o guardião de uma Constituição que contém regras que protegem o meio ambiente (art.225, da CF/88). Elas foram colocadas lá com a finalidade de garantir tanto o bem-estar dos cidadãos, quanto para preservar a natureza para as gerações futuras.  

No momento em que ajuizou sua representação, o agravante provou que as abelhas estão em perigo e os seres humanos também. Isso fato, cientificamente admitido, foi comprovado nos autos através de uma publicação jornalística que goza de grande credibilidade. Ao permitir que os Tribunais inferiores continuem decidindo disputas como a da cliente do agravante exclusivamente com base no Código Civil, o STF não apenas fragiliza o texto constitucional que deveria proteger como torna inócua a regra do seu Regimento Interno que possibilitaria a AVOCAÇÃO.  

O perigo que o Ministro Luís Barroso interpretou como sendo apenas da parte ou para uma colmeia é da sociedade como um todo. Mas essa questão levantada pela parte (as disputas semelhantes serem resolvidas com base no direito de vizinhança sem a limitação imposta pela norma constitucional) não foi objeto decisão. Pior, ao julgar os Embargos de Declaração o ministro Luis Barroso rejeitou o recurso dizendo genericamente que A alegação da parte agravante expressa mero inconformismo com a decisão recorrida, uma vez que não há omissão na decisão impugnada”. 

Nunca é demais repetir um argumento importante: o CPC permite à parte interpor Embargos de Declaração e obriga o julgador a conhecer e decidir o que lhe foi submetido de maneira específica, pois “Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que: não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador.” (§1º, inciso IV, do art. 489, do CPC). Não foi isso o que ocorreu no caso em tela, pois o ministro Luis Barroso SOTERROU a pretensão da parte sem conhecer de maneira específica do perigo que foi levado ao conhecimento do STF e provado através de documentos. 

VI-  Ao interpor Embargos de Declaração, o agravante comprovou que protocolou representação semelhante na PGR utilizando o website do MPF. A representação foi recebida e rapidamente processada e descartada, provavelmente porque o caso não tem valor econômico nem visibilidade na imprensa. 

Abaixo o agravante reproduz referida decisão, pois ela merece ser comentada: 

O art. 252, do regimento do STF concede exclusivamente ao Procurador Geral da República o poder/dever de requerer a AVOCAÇÃO nos casos que especifica. O requerimento do agravante foi rejeitado não pelo PGR Augusto Aras e sim pelo chefe Carlos Henrique Nunes Correa. Isso prova satisfatoriamente que no MPF a pretensão foi ignorada sem que a autoridade competente (o Procurador Geral da República) tomasse conhecimento dos fatos que a parte pretendia levar ao seu conhecimento. Isso obviamente também ocorreu em virtude do indeferimento sumário do pedido do agravante formulado perante o STF. 

A norma regimental (art. 252, do regimento do STF) foi assassinada tanto no MPF quanto no STF. O agravante não é um bolsonarista, muito pelo contrário. Todavia, levando em conta a maneira como sua pretensão foi tratada, ele está começando a se convencer que nossas instituições não funcionam e que elas merecem ser destruídas pela besta-fera levada ao poder após o golpe “com o Supremo, com tudo”.  

Em sua obra Jenaer Realphilosophie, Hegel sugere que durante a construção da realidade o princípio unitário  

“… que subjaz a todo o processo como uma lei de formação sempre igual é aquele duplo movimento de exteriorização e de retorno a si mesmo, em cuja repetição permanente o espírito se realiza passo por passo. Mas visto que esse processo de desenvolvimento já é em si um processo de reflexão, ou seja, já se efetua na forma de diferenciações intelectuais, a análise filosófica só precisa por sua vez reconstituí-lo com exatidão suficiente para chegar ao seu objetivo sistemático; pois, tão logo tenha reconstruído metodicamente todas as etapas daquele processo de formação, ela terá chegado de modo consequente ao ponto final, em que o espírito se diferenciou completamente e, nesse sentido, alcançou um saber ‘absoluto’ de si mesmo.” (Luta por reconhecimento, Axel Honneth, editora 34, São Paulo, 2017, p. 69/70) 

No caso em tela, assim como o PGR se recusou a atender o cidadão, o ministro Luis Barroso rejeitou sua pretensão proferindo uma decisão formalmente defeituosa. 

Em termos hegelianos, podemos dizer que a Constituição Cidadã é o princípio unitário que rege o Estado e as relações que ele mantém com seus cidadãos. Mas o reconhecimento deste princípio só pode ocorrer se o Tribunal encarregado de ser o guardião do texto constitucional não se recusar a dar às pretensões dos cidadãos o tratamento adequado.  

Infelizmente não foi isso o que ocorreu no caso em tela. Ao interpretar a partícula “ou” da norma regimental (parágrafo único do art.  252 do regimento do STF) como sendo “e” se omitir em relação ao perigo paras as abelhas em geral (e para a espécie humana em particular) que foi levado ao seu conhecimento, o ministro Luís Barroso não apenas aviltou a cidadania do requerente, como também se recusou a reconhecer a validade e eficácia da norma constitucional que protege o meio ambiente que ele deveria cumprir e fazer cumprir.  

Esse não reconhecimento do texto constitucional mediante um artifício retórico foi completado mediante a punição do cidadão que manejou o recurso adequado. Nem mesmo Kafka seria capaz de imaginar o que ocorreu no caso em tela.  

Face ao exposto, requer o PROCESSAMENTO e o PROVIMENTO do presente recurso, para, reformando-se o acórdão e seu infame complemento, determinar o processamento da REPRESENTAÇÃO nos termos em que foi ajuizada, revogando-se a punição imposta ao agravante e advertindo-se o ministro Luis Barroso que ele tem o dever de cumprir e fazer cumprir fielmente as normas do regimento do STF e o disposto no §1º, inciso IV, do art. 489, do CPC.” 

Impossível dizer como o STF julgará a questão. Todavia, alguns desdobramentos interessantes ocorreram. No curso do processo, meus amigos do XRebellion da Inglaterra se interessaram pelo caso, razão pela qual traduzi o texto publicado no GGN para divulgação na página deles https://xrwordsmiths.wordpress.com/2021/06/08/the-bees-of-discord/. A atualização em inglês do caso também já está disponível na internet https://docs.google.com/document/u/0/d/1FMyPAXah258racQz_UlZET1jwrUBfvMEj67rbW7iq7E/mobilebasic.  

Este artigo não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

Fábio de Oliveira Ribeiro

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