Igualdade, liberdade e solidariedade – apontamentos para uma crítica marxista

Uma vez que pretendo fazer uma leitura crítica dos direitos humanos a partir do marxismo, parece-me óbvio que preciso analisar três categorias que lhe são basilares: liberdade, igualdade e solidariedade.

Aliás, para o direito, as duas primeiras aparecem como primordiais, com destaque para o princípio jurídico da igualdade.

Sobre a igualdade e a liberdade já mencionei anteriormente a minha adesão ao que pensa o autor russo Pasukanis. Aliás, a respeito, transcrevo abaixo artigo recentemente publicado no Jornal da Associação dos Juízes para a Democracia (AJD) n. 60 (junho/agosto de 2013). O título do texto é “Direito de ir e vir versus (?) direito de mobilização – pequenas reflexões sobre as mobilizações de junho de 2013 no Brasil”:

 

“No início do Século XX, o jurista russo Pasukanis identificou o direito como essencial à ideologia capitalista, até por se tratar de componente indispensável à circulação de mercadorias. Por outro lado, como já lembrava Marx, as mercadorias não podem ir sozinhas ao mercado, precisando de sujeitos que a levem. Os trabalhadores devem sentir-se livres – ainda que não o sejam na realidade dos fatos -, para que também possam vender a única mercadoria da qual dispõem: sua força de trabalho. Tais sujeitos pretensamente livres e iguais aos demais proprietários seriam, pois, responsáveis pela circulação de mercadorias no capital, em especial da sua força de trabalho. Por fim, para que o ciclo se complete, torna-se indispensável a presença do estado, supostamente neutro.

Essas lições são fundamentais para uma análise incipiente das recentes manifestações no Brasil – não se aplicando apenas ao transporte público, mas a uma série de políticas públicas ali demandadas.

Ora, a livre circulação de pessoas, na realidade, interessa muito mais à de mercadorias do que ao deleite delas próprias. Enquanto “direito fundamental”, alimenta nossa falsa percepção de que somos livres e iguais a todos, enquanto proprietários. Caso perguntássemos a qualquer trabalhador se, mantidas as atuais condições de trabalho, ele preferiria ficar em casa ou ir ao trabalho, não temos dúvidas de qual seria a sua resposta. Os trabalhadores “livres” e “iguais”, na realidade, temem não chegar aos seus trabalhos, já que serão punidos pelo atraso ou pela falta. Na verdade, embora o fetichismo da figura do sujeito de direito faça parecer, não são nem livres e nem iguais. Se não temessem a perda do posto de trabalho, certamente, seriam sempre favoráveis a qualquer manifestação – inclusive a dos trabalhadores do transporte coletivo, que, quando param, são acusados de atentar contra o “interesse público”.

Como salientou o amigo Souto Maior, no caso das manifestações referentes ao transporte público, o conflito, a certa altura anunciado, beirava ao ridículo: como realizar o cotejo entre o direito de manifestação e o direito de ir e vir, quando se pretendeu pelas manifestações que as pessoas tivessem melhores condições exatamente de ir e vir?

Acredito que a postulação por passe livre no transporte público, observados os paradigmas atuais, se trata de pauta tipicamente capitalista, na medida em que o capital depende da circulação de mercadorias, que somente será possível pela circulação de pessoas “livres e iguais”. De preferência, não tão doentes (direito à saúde) para suportar uma jornada extenuante de trabalho e não tão deseducadas (direito à educação) para ser mais eficientes na circulação de mercadorias.

O capital, neste contexto, deveria promover, ele próprio, o patrocínio do transporte “público” gratuito. No entanto, seria ingênuo pensar que o faria. Para aumentar os seus ganhos, nada mais lógico do que se utilizar do estado “neutro” e garantir, por mecanismos como os subsídios, que continue a preservar a livre circulação de pessoas e, como consectário, de mercadorias.

A repressão policial, por sua vez, mantém o tal “interesse público” de que as pessoas se movimentem de forma livre. E, contraditoriamente, quando a polícia atua com as suas bombas e balas de borracha, é a que mais conspira contra o direito de ir e vir, fazendo crer que atua em nome daquele.

Com a rua sendo ocupada pelas pessoas, gradativamente, o tal “conflito de princípios” (se é que seria correto tecnicamente falar aqui em ponderação), com a vitória, em situações semelhantes, inexorável do “interesse público” consubstanciado no direito de ir e vir, foi sendo esquecido ou pouco utilizado no judiciário. Nas manifestações de junho, no meu sentir, esta “ponderação de princípios” teve papel reduzido, senão inexistente, como forma de seu controle pelo judiciário.

Fica uma lição, que não pode ser esquecida tão cedo: quando crescem as mobilizações sociais, a judicialização da política decresce, ficando em segundo plano. A mobilização popular é sempre o melhor antídoto para os excessos (inclusive interpretativos da lei e da constituição) do judiciário”.

 

Percebe-se, na linha do que já postei anteriormente, as ficções que são, no capitalismo, a liberdade e a igualdade dos trabalhadores. A lógica do sujeito de direito é concebida a partir da noção de sujeitos livres e iguais, para que a classe trabalhadora possa, como proprietária, vender a única mercadoria que possui: a sua força de trabalho. Como já frisado à exaustão, é exatamente da exploração do trabalho que o capital se realiza no seu insaciável processo de acumulação. Portanto, trabalhador “livre” e “igual” é condição indispensável à realização do capitalismo.

Ao lado dessas ideias, outra é também forjada, a de solidariedade. É claro que ainda essa noção precisa ser dimensionada a partir da forma jurídica. Sobre a solidariedade dei entrevista para o jornalista André Antunes da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) que se encontra parcialmente reproduzida na belíssima Revista Poli (http://www.epsjv.fiocruz.br/upload/EdicoesRevistaPoli/R38.pdf).

Transcrevo alguns trechos que não foram ali publicados, já que importantes para a compreensão da forma como vejo o tema sob a perspectiva marxista:

 

 

1.     O princípio da solidariedade está no artigo 3° da constituição, onde está escrito que um dos objetivos da República Federativa do Brasil é construir uma sociedade justa, livre e solidária. O que se pretendeu com isso? Tomando o contexto da época, com o país saindo de um período de ditadura, qual é a importância desse princípio? É uma inovação da Carta Magna de 1988?

A primeira Constituição do Brasil foi a do império em 1824. Nela, como nas demais constituições brasileiras (1891, 1934, 1937, 1646, 1967 – com emenda em 1969), não se vê disposição com redação semelhante à constante do art. 3º. do atual texto constitucional. Aliás, as constituições anteriores tinham por tradição, em seus dispositivos iniciais, cuidar de questões referentes à estrutura do estado e, somente mais adiante, dispunham sobre os direitos dos cidadãos, como era o caso dos direitos individuais (liberdade de expressão, direito à vida etc.) e, em algumas, dos direitos sociais (direitos do trabalho, à previdência social, à saúde etc.). Na constituição de 1988, os direitos relacionados à cidadania (burguesa, acrescento neste instante), pela primeira vez na história de nossas constituições, passam a assumir, inclusive na geografia constitucional, a primazia.

O art. 3º.  da Constituição emergiu em contexto de democracia (nos moldes burgueses, acrescento agora) recentemente instaurada no país, com o que razoável a sua introdução (…). A afirmação desses três postulados significa a tentativa de um compromisso nacional, consignado na Constituição de 1988, em torno de uma nova sociedade após os anos de ditadura. Aliás, qualquer constituição representa exatamente um pacto, que promove a fundação de uma nova sociedade.

2.     A Constituição de 1988 foi uma tentativa de implantar um Estado de bem-estar social no país? Qual é a relação entre esse projeto de sociedade que foi almejado e o princípio da solidariedade?

A Constituição de 1988 foi fruto de uma tensa disputa entre as mais diversas forças políticas do país. Não se pode dizer que havia uma expressa intenção dos constituintes de concretizar um Estado de bem-estar social. A maior parte dos componentes era de centro-direita e ocupavam o que, à época, foi denominado “centrão”. Essa força foi responsável, inclusive e pelo contrário, pela tentativa de implantação de um Estado liberal. Não obstante, os partidos e as forças de esquerda em torno da Constituição eram bastante articulados, e agiram de forma muito coordenada, aproveitando-se também dos ventos democráticos que assopravam no país. Com essa mobilização popular/partidária, conseguiu-se, sim, a obtenção no texto constitucional de diversas conquistas típicas de um Estado de bem-estar social. Basta ver os dispositivos referentes à seguridade social (saúde, previdência e assistência). São os mais modernos não só na história da nossa Constituição, como, certamente, não existem de forma tão ousada em qualquer Constituição do mundo atual. No entanto, esta tensão dos grupos (um desejando um Estado liberal, outro um Estado social) fica patente quando se promove a leitura dos diversos dispositivos constitucionais.

É interessante verificar, inclusive, que, quando o Brasil faz a inclusão de dispositivos relativos aos direitos sociais no bojo de sua Constituição, o mundo já estava em plena marcha neoliberal. Basta lembrar que os governos Reagan e Thatcher remontam ao final dos anos 70/início dos anos 80. Certamente que a implantação de um Estado social, que nunca existiu plenamente no Brasil (isso mesmo considerando os direitos sociais previstos na era Vargas), teria dificuldades de ser consolidado, ainda mais se considerarmos tais condições mundiais. Uma coisa é colocar direitos sociais (como direitos trabalhistas, à previdência social, à saúde ou à assistência social) na Constituição, outra coisa é efetivá-los no mundo dos fatos. Entre o desejo constitucional de proteção social e a sua efetivação corre um abismo, que nunca foi totalmente sanado…

Por outro lado, há que se constatar que o princípio da solidariedade no sistema de seguridade social vem sendo, no sistema jurídico brasileiro, extraído com mais frequência de outro dispositivo legal, o art. 194 da Constituição. Os julgados leem a solidariedade em previdência, assistência e saúde muito mais a partir dessa disposição do que do art. 3º.. Infelizmente, numa torção liberalizante, constantemente se diz que a solidariedade social se refere essencialmente ao custeio. Assim, utiliza-se o princípio da solidariedade muito mais para promover a busca incessante de aumento de numerário para os cofres públicos do que para realizar uma justa e adequada distribuição dos recursos públicos em políticas sociais. Esses são, no meu sentir, vícios de uma interpretação de tempos liberais em que se pretende muito mais um suposto saneamento das contas públicas do que a efetiva busca de justiça social.

3.     Qual foi a inspiração para a inclusão desse princípio no texto constitucional? No direito, onde se origina essa ideia de solidariedade? Quais os países onde esse princípio se materializou com sucesso?

O direito de solidariedade é expressão nascida na Europa no fim do século XIX e início do século XX, sendo que sua construção não se encontrava adstrita aos direitos sociais – tratando-se de “um conjunto de práticas jurídicas vistas como espaço fático, valorativo, normativo e cognitivo no qual procura-se fazer a articulação entre o direito e o social” (FARIAS, José Fernando de Castro. A origem do direito de solidariedade. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 05). Perceba-se que, no plano sociológico, o solidarismo já vinha sendo analisado por autores como Durkheim. No plano jurídico, os franceses foram os primeiros a fazer incursões solidaristas como se percebe de autores como Léon Duguit ou Maurice Hauriou, cada um ao seu modo. Na Rússia, há um intenso discurso solidarista jurídico de natureza comunitária em autores como Georges Gurvitch. Constate-se, variando em cada caso, que a presença do estado no discurso solidarista do início do século XX é bastante intensa. Verifique-se, também, a constante presença dos direitos sociais em especial no caso desse último autor. Por outro lado, entre 1950 e 1970, devemos lembrar que a Europa passou pelo auge do Estado de bem-estar social, com o que o discurso solidarista associado a essa morfologia estatal também teve, no período, grande apelo.

4.     O que significa dizer que a seguridade social é um sistema baseado na solidariedade? Qual é a concepção de solidariedade que está inscrita no capítulo de Seguridade Social da Constituição e de que forma ela deveria se materializar em termos de garantia de direitos sociais?  

Infelizmente, como dito anteriormente, a solidariedade no sistema de seguridade social é vista essencialmente sob a perspectiva do seu custeio. Assim, trata-se de princípio geralmente invocado a partir de dois postulados: redistribuição de renda e pacto entre gerações. Basicamente, se o sistema de seguridade estiver em dificuldades financeiras, basta invocar a solidariedade para se buscar dinheiro das diversas fontes de custeio (trabalhadores em especial, empresas e estado), para o reequilíbrio das contas públicas. De maneira vulgar, é como se falássemos o seguinte: se não aumentar o custeio para as gerações presentes, não haverá dinheiro para custear os benefícios e serviços sociais (ex: aposentadorias e pensões) das gerações futuras. Nunca se busca apurar a responsabilidade dos gestores da coisa pública previdenciária, por exemplo, sendo que suposto “déficit” é sempre arcado pela coletividade (leiam-se trabalhadores). No meu sentir, essa é uma forma bastante perversa de utilização do princípio da solidariedade social na seguridade. Venho defendendo (CORREIA, Marcus Orione Gonçalves; CORREIA, Érica Paula Barcha. “Curso de Direito da Seguridade Social”. 7ª. ed.. São Paulo: Saraiva, 2013): a) que a responsabilidade do gestor da coisa pública também seja considerada no conceito de solidariedade na perspectiva do custeio e, b) que o princípio passe a ser visto essencialmente na lógica dos benefícios. A redistribuição de renda passaria fundamentalmente por um aumento dos benefícios e serviços públicos de seguridade para todos os brasileiros. Somente assim, entendo, será possível ver a solidariedade jurídica concretizada na sua plenitude, considerado ainda o que vem insculpido no art. 3º. antes estudado. Hoje, a única coisa que interessa, quando se fala em solidariedade na seguridade social, é enfrentar o fabricado “déficit” da seguridade social

5.     Qual é a noção de solidariedade que o capitalismo neoliberal difundiu, por exemplo, com a ideia de responsabilidade social? É certo dizer que a solidariedade tornou-se um nicho de mercado? A ideia de solidariedade como está inscrita na Constituição se perdeu, na sua opinião?

Como dito anteriormente, a noção de solidariedade no capitalismo neoliberal é vista a partir da arrecadação de valores em especial dos trabalhadores, como suposta forma, que nunca veio, de redistribuição de renda. Em geral, as empresas são poupadas nesse processo em relação aos trabalhadores, como se percebe das atuais desonerações das contribuições sociais para diversos setores do empresariado – o que, aliás, é de se estranhar, já que sequer combina com o discurso de que em especial a previdência social é deficitária.

A ideia de solidariedade como forma de ação social, em especial com o advento das ONGs (Organizações Não Governamentais) e das OSCIPs (Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público), pode de forma reflexa ser extraída do art. 3º. da Constituição. No entanto, essa prática de solidariedade por meio de entidades supostamente sem fins lucrativos e tendentes a uma ação social, especialmente onde o estado não consegue atingir os seus fins, no meu sentir, é mais facilmente capturada pela lógica da mercadoria. Tem menor potencial transformador do que se propala, já que se insere facilmente na perspectiva da noção marxiana de valor de troca. O individualismo liberal permeia diversas dessas ações supostamente solidárias. Em geral, convalidam uma noção de responsabilidade social típica do capitalismo, na essência muito mais individualizante do que coletivista, embora na aparência se apresentem de forma contrária.

6.     A solidariedade é comumente associada a valores cristãos, como a caridade, e também à noção de Terceiro Setor. Em linhas gerais, qual é a diferença entre essas ideias de solidariedade e a que está inscrita na Constituição?

A diferença básica entre a solidariedade cristã é a solidariedade jurídica está baseada no fato de que a primeira seria supostamente espontânea e a segunda decorrente de obrigação legal. Como exemplo dessa obrigatoriedade bastaria ver o caráter compulsório do custeio com a seguridade decorrente de lei. Mesmo que não queiramos, por exemplo, no fim do mês, há um desconto no nosso salário para a previdência social. Isso é feito para criar um fundo para proteção das contingências sociais como um todo. Não fazemos por vontade própria, mas decorrente de obrigação legal. Já a solidariedade cristã existe quando a praticamos de forma supostamente espontânea, com base em valores religiosos. No caso da saúde, o exemplo mais comum desse tipo de solidariedade é o das santas casas de misericórdia. Por outro lado, aparentemente (mas apenas aparentemente), a solidariedade legal seria mais ficcional do que a primeira.  No entanto, embora não se queira fazer crer, ambas são ficcionais: a solidariedade cristã de uma ficção mística e a legal de uma ficção jurídica. Em ambos os casos, percebe-se que a coisa não vai dar certo. A solidariedade legal é fruto de uma determinação e não decorre de um ato espontâneo. A verdadeira solidariedade deve emergir livremente das nossas vontades. A solidariedade cristã decorre de uma convicção religiosa, que é muito mais mística do que baseada em laços efetivos de solidariedade. Há bem menos voluntariedade do que se pode pretender, já que somos guiados, em nossas intenções supostamente humanitárias, por seres imaginários (deus, cristo, anjos, santas etc.) e suas promessas divinas.

Por fim, a solidariedade existente na lógica do terceiro setor, retomando o que já foi dito, está muito suscetível a se render às forças do mercado (é por ela facilmente sequestrada). Ela reúne resquícios de uma solidariedade cristã e de uma solidariedade jurídica (baseada na lógica dos direitos humanos, o que já é um avanço, mas que apresenta também seus limites burgueses).

Somente há uma forma de se acabar com tantas solidariedades que são baseadas mais em uma ficção do que na livre vontade cooperativa dos homens: a verdadeira solidariedade somente é factível quando a desvincularmos de ilusões (como as religiosas e as jurídicas, por exemplo) e da lógica de mercado. Somente com o fim do capitalismo será possível a instauração de uma verdadeira lógica de solidariedade.

Redação

0 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador