Solidariedade aos familiares dos desaparecidos da Guerrilha do Araguaia

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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Jornal GGN – A Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos manifesta seu repúdio ao jornalista Hugo Studart e ao seu livro ‘Borboletas e Lobisomens’, alegando que a obra é carregada de mentiras e difamações. Segundo a Comissão, o objetivo do autor é reeditar a ‘teoria dos dois demônios’, igualando a violência dos militares à ação dos guerrilheiros que lutaram contra a ditadura.
 
A Comissão critica as zonas de silêncio diante dos esforços para a punição dos responsáveis, que levou o Estado brasileiro a ser condenado na Corte Interamericana dos Direitos Humanos da OEA. A Corte entendeu que o Brasil deveria responsabilizar criminalmente os autores dos crimes. Isso fez com que o Brasil criasse a Comissão Nacional da Verdade que, em seu relatório final, listou 377 torturadores, dentre eles muitos que atuaram no extermínio dos guerrilheiros do Araguaia.

 
Mas os principais pontos da sentença da OEA não foram cumpridos, e a proibição de acesso aos arquivos militares é um deles. Na contramão dos direitos dos familiares, Hugo Studart publicou livro em que relata, romanceia, distorce e dá uma visão desnecessária sobre o episódio e os militares que dele participaram.
 
Leia a nota a seguir.
 
NOTA DA COMISSÃO DE FAMILIARES DE MORTOS E DESAPARECIDOS POLÍTICOS 
 
Em solidariedade aos familiares dos desaparecidos da Guerrilha do Araguaia
 
A Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos vem, por meio desta nota, manifestar seu repúdio ao jornalista Hugo Studart no que tange à publicação do livro “Borboletas e Lobisomens”, de sua autoria, que contém múltiplas mentiras e difamações. Com a publicação, o autor evidencia seu objetivo de reeditar a “teoria dos dois demônios”, em uma tentativa de igualar a violência dos militares que cometeram crimes contra a humanidade à ação dos guerrilheiros que lutaram contra a ditadura.
 
A Guerrilha do Araguaia, desenvolvida no sudeste do Pará entre 1972 e 1975, constituiu-se em um movimento de resistência à ditadura militar. Caracterizada pelos conflitos fundiários, essa região assistiu à brutal violência exercida pelas Forças Armadas, utilizada em larga escala contra a população local. O terror e a intimidação instalados ganharam contornos especiais a partir da disseminação dos campos de concentração. Camponeses e indígenas foram aterrorizados com a prática generalizada da violência, sob a justificativa de se evitar “os efeitos multiplicadores” da guerrilha. De acordo com as investigações realizadas pela Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) e o Ministério Público Federal (MPF), a maioria dos guerrilheiros foi sequestrada, torturada e executada por agentes do Estado. Os fatos que envolveram este extermínio foram censurados e estiveram ausentes dos noticiários da imprensa por um largo período.
 
A presença de notórias zonas de silêncio acerca do ocorrido e a ausência de esforços sistemáticos para a circunscrição factual dos crimes da ditadura, com a decorrente punição dos responsáveis, levaram à condenação do Estado brasileiro na Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos), em 2010. De acordo com a Corte, o Brasil deve esclarecer esses crimes e responsabilizar criminalmente seus autores. As pressões decorrentes da condenação levaram o Brasil a criar a Comissão Nacional da Verdade (CNV) e a editar a Lei de Acesso à Informação, ampliando o debate público sobre o legado da ditadura. Ademais, a CNV publicou em seu relatório final os nomes de 377 torturadores, dentre os quais muitos atuaram no extermínio dos guerrilheiros do Araguaia.
 
Na atualidade, os principais aspectos da sentença da OEA ainda não foram cumpridos, sendo vedado o acesso aos arquivos militares aos integrantes da CNV, bem como aos familiares dos mortos e desaparecidos políticos. A despeito desse panorama desolador para as famílias, esse senhor defendeu uma tese de doutorado na UnB sobre a Guerrilha do Araguaia, transformado no livro mencionado acima, no qual afirma que sete guerrilheiros desaparecidos durante a repressão ao referido movimento estariam vivos e teriam estabelecido acordos de “delação premiada” com militares do aparato repressivo. O autor, entretanto, não apresenta nenhuma prova que confirme tais fatos, além de não mencionar os verdadeiros nomes dos militares repressores, que se constituem na fonte do referido do livro.
 
É digno de nota que, o autor do livro difama guerrilheiros com relatos imbuídos de misoginia e sexismo. Ele se refere à guerrilheira Áurea Elisa Pereira (1950-1974) – a qual teria sido presa com uma criança de colo e executada –, como alguém que se apaixonou pelo seu algoz e executor, transformando em ato de amor, o estupro que provavelmente foi perpetrado contra ela pelo agente do Estado. Nesse sentido, o relatório da CNV sublinhou que o estupro praticado contra militantes presos se transformou em prática corrente, conforme se pode ler abaixo:
 
“[…] Os registros da prática de violência sexual por agentes públicos indicam que ela ocorria de forma disseminada em praticamente toda a estrutura repressiva. Nos testemunhos analisados pelo grupo de trabalho “Ditadura e Gênero” são citados DEIC, DOI-Codi, DOPS, Base Aérea do Galeão, batalhões da Polícia do Exército, Casa da Morte (Petrópolis), Cenimar, Cisa, delegacias de polícia, Oban, hospitais militares, presídios e quartéis. […] (cf. CNV, Relatório, cap. 10, item 37, p.421)”.
 
O referido autor afirmou ainda que Criméia Alice Schmidt de Almeida, integrante da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, teria feito acordo de “delação premiada” e entregue à repressão seu próprio companheiro e pai de seu filho, André Grabois. Com efeito, Criméia atuou como guerrilheira do Araguaia entre 1969 e 1972, tendo sido sequestrada por agentes do DOI-Codi/SP, grávida de 7 meses, ao lado de seus sobrinhos, Janaína e Edson Luís, no final daquele ano. Ela foi torturada antes e depois do nascimento de seu filho no Hospital do Exército, localizado na cidade de Brasília, em fevereiro de 1973. Em seu depoimento concedido à CNV, ela relata esta experiência-limite (cf. registrado em https://www.youtube.com/watch?v=BM04VC_fd00 ).
 
Tão logo saiu do cárcere, a despeito das perseguições, Criméia foi trabalhar como auxiliar de enfermagem, dedicando-se a denunciar os crimes da ditadura e ao esclarecimento dos crimes de desaparecimento forçado, em particular daqueles ocorridos na região do Araguaia. Ademais, participou ativamente da campanha pela anistia aos perseguidos e presos políticos. Desde então, tornou-se uma das principais referências dos familiares e das demandas por “verdade e justiça” no país, além de ser copeticionaria da ação contra o Estado brasileiro na Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA. Sua dignidade e dedicação jamais foram questionadas. Não por acaso, o autor sublinha que Crimeia foi a única guerrilheira sobrevivente a denunciar as torturas a que foi submetida.
 
Diante da impossibilidade de justificar a atitude indefensável dos militares que torturaram, estupraram e executaram dissidentes, o mencionado jornalista tenta confundir as diligências e as lutas por “verdade e justiça”, conspurcando a memória e as ações das vítimas, em particular, dos protagonistas de conquistas no campo dos direitos humanos, tais como as sentenças internacionais que cobram do Estado brasileiro o esclarecimento dos desaparecimentos forçados e a punição dos autores dos crimes de lesa-humanidade, considerados, portanto, imprescritíveis.
 
Agosto de 2018.
 
Pelo esclarecimento dos crimes da ditadura!
Pela punição dos responsáveis!
Pela abertura dos arquivos das Forças Armadas!
Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

5 Comentários

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  1. Mas se foi um movimento de resistência à ditadura militar…

    Mas se a guerrilha do Araguaia, como você diz, foi um movimento de resistência à ditadura militar, então por que nunca foi lançado um manifesto exigindo a restituição do presidente deposto Goulart e a constituição de 1946?

    É evidente que a intenção dos insurretos era instituir um regime de partido único estilo cubano, que era o modelo de todos os revolucionários da época. Será que pretendiam convocar eleições diretas e depois entregar o poder? Você acredita nisto?

    Em tempo: que violência em larga escala era essa que o exército já estaria exercendo contra a população local na época? O que havia ali era a antiga luta de jagunços contra posseiros, muito anterior ao regime militar. O exército só se instalou ali e começou a reprimir a população depois que os guerrilheiros chegaram.

     

    1. As dúvidas que tu levantas

      As dúvidas que tu levantas são periféricas e só são cabíveis se inseridas numa perspectiva histórica. A questão fulcral foram os crimes perpetrados não contra guerrrilheiros ou combatentes, mas contra estes já dominados(rendidos), mas, e principalmente, tendo por alvo inocentes, incluindo feridos, mulheres e até crianças, a exemplo de torturas,desaparecimento de corpos, assassinatos etc. Apresente argumentos mais consistentes que esses de natureza apenas política-ideológica. 

      Independentemente do que acreditamos ou não, no Araguaia o que tivemos foi a arregimentação de forças consideráveis do Exército e em menor escala da Marinha e Aeronáutica (no mínimo 6000 e no máximo 10000) para combater 70 guerrilheiros. Forças essas que se excederam no mister de uma forma abominável e degradante para as Forças Armadas. Inúmeros foram os casos de torturas e mal tratos aos camponeses locais; alguns até assassinados cruelmente. 

       

       

       

      1. Porque os próprios militares denominam “Guerra suja”.

        Muitos militares ao falarem sobre os movimentos de repressão a guerrilha, tanto rural como urbana, dão a denominação a esta como uma “guerra suja”.

        Isto decorre do reconhecimento que este movimento de repressão correu fora de qualquer princípio que os militares de qualquer parte do mundo civilizado devem seguir numa luta armada, os princípios definidos sobre as convenções de Genebra ou pela Declaração Universal dos Direitos Humanos.

        Como numa guerra de guerrilhas com guerrilheiros não convenientemente identificados, estes não se encaixam na condição de milícias armadas, que seriam cobertas por uma série de direitos que impediriam não só a tortura ou outros atos cruéis e a execução sumária dos mesmos. Logo, não é possível reclamar condições de prisioneiros de guerra. Entretanto qualquer pessoa, independente da situação de definição de combatente, é coberta não pelas Convenções de Genebra, mas sim pela Declaração Universal de Direitos Humanos, que estende a qualquer humano o direito claro e expresso no seu artigo 5.

        Artigo 5°

        “Ninguém será submetido a tortura nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes.”

        Por outro lado, no décimo artigo prescreve o seguinte:

        Artigo 10°

        “Toda a pessoa tem direito, em plena igualdade, a que a sua causa seja equitativa e publicamente julgada por um tribunal independente e imparcial que decida dos seus direitos e obrigações ou das razões de qualquer acusação em matéria penal que contra ela seja deduzida.”

        Em resumo, qualquer ação policial ou militar, contra qualquer pessoa, armada ou não, que luta contra forças policiais ou militares, independente das ações destas forças serem consideradas legítimas ou não, deverão ser respeitados dois princípios dos artigos 5º e 10º da Declaração Universal de Direitos Humanos. Tudo que não respeitar estes princípios é considerado crime contra a humanidade, que são imprescritíveis e acima das leis vigentes nos países.

         

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