Vão morrer mais negras e pobres. E a culpa será do Congresso, por Laura Capriglione

Cintia Alves
Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.
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Por Laura Capriglione

No Blog do Sakamoto

As inspiradoras (e em grande medida surpreendentes) mobilizações dos últimos dias contra o deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ) e seu projeto de lei 5069/2013, que visa dificultar o aborto legal em casos de estupro, evidenciam o surgimento de um novo tipo de feminismo. Trata-se de um feminismo que tem como ponto de partida o compartilhamento generalizado de experiências individuais dolorosas. Milhares de testemunhos agora públicos sobre o #PrimeiroAssédio permitiram a cada menina/jovem/mulher entender que pertence a uma parte da humanidade tratada como presa de outra parte, dos caçadores.

E, de repente, houve uma coagulação de solidões em um “nós” comum – uma menina juntando-se a outra e mais a outra. E a uma feminista histórica que nunca falou de seu próprio sofrimento, conquanto soubesse de cor a fala de Simone de Beauvoir que caiu no Enem.

Essas mulheres não tolerariam que mais um boçal como Eduardo Cunha viesse tocar em seus corpos, como tantas outras vezes ocorreu.

A constituição desse “Nós, Mulheres!” (aliás, nome de um jornal feminista dos anos 1970), grávido de esperanças em uma humanidade mais gentil e igualitária, entretanto, precisa reconhecer que milhões de integrantes desse imenso coletivo demarcado pelo gênero foram mais “caçadas” do que as demais.

Refiro-me especificamente às mulheres negras, à descendência dos homens e mulheres que foram por lei despojados de sua humanidade, oficialmente animalizados, carimbados como bens móveis, durante quase 400 anos!

Lembra Angela Davis, militante dos Panteras Negras, em seu “Mulheres, Raça e Classe”, de 1983, que os castigos impostos às escravas excediam em intensidade os sofridos pelos escravos, “porque as mulheres não eram apenas chicoteadas e mutiladas; elas eram também violadas”.

O dano colateral de uma tal violência generalizada foi a naturalização e, quando não, sua justificação na literatura tradicional sobre a escravatura. “O dono Henry Bibb forçou uma rapariga escrava a ser a concubina do seu filho; o capataz M. F. Jamison violou uma bonita rapariga escrava; e o dono Solomon Northrup forçou uma escrava ‘Patsy’ a ser sua parceira sexual.”

Está em um dos testemunhos na rede sobre o #PrimeiroAssédio: “Ele queria me convencer de que eu queria aquilo. Que eu gostava daquilo. Que ele estava errado em fazer aquilo comigo, mas que eu era muito mais errada, por consentir. E eu tinha apenas nove anos!”

Com as mulheres negras, abusadas durante a escravidão e depois nas mini-senzalas dos quartinhos de empregada, tentou-se o mesmo método de culpabilização da vítima. Elas seriam muito fogosas, “quentes”, sexualizadas. Segundo Angela Davis, “apesar do testemunho dos escravos sobre a alta incidência de violação e coação sexual, a questão do abuso foi tudo, menos posta a descoberto pela literatura tradicional (masculina, por excelência) sobre a escravatura; algumas vezes até foi assumido que as mulheres escravas acolhiam e encorajavam as atenções sexuais dos homens brancos.”

Isso ficou para trás?

Não.

Em março de 2010, durante audiência pública no STF sobre as cotas raciais nas universidades públicas , o então deputado federal pelo DEM, Demóstenes Torres, um antagonista das cotas, declarou, com o propósito de “demonstrar” a corresponsabilidade de negros no sistema escravista brasileiro: “Nós temos uma história tão bonita de miscigenação… [Fala-se que] as negras foram estupradas no Brasil. [Fala-se que] a miscigenação deu-se no Brasil pelo estupro. [Fala-se que] foi algo forçado. Gilberto Freyre, que é hoje renegado, mostra que isso se deu de forma muito mais consensual”.

Culpa delas. Cotas, reparação, por quê?

Não é preciso facilitar o aborto legal em casos de estupro apenas porque é cruel demais, sádico demais, forçar as vítimas a se tornarem mães dos filhos de seus agressores. Em último caso, as mulheres de classes mais abonadas, brancas em sua maioria, podem recorrer a um médico ou clínica particular, como sempre fizeram neste país de moral seletiva. Para as mulheres negras, moradoras nas periferias dos grandes centros urbanos, a vida é bem diferente. O aborto legal, feito pelo SUS em condições de segurança sanitária e com apoio psicológico, é uma exigência da civilização contra a barbárie que naturaliza a violência e culpa a vítima.

Como lembrava Angela Davis, para as mulheres negras e pobres, “a luta pelo direito ao aborto deriva da exigência de se realizar em segurança o aborto, não porque não se deseja ser mãe, mas porque não se tem condições de sê-lo”.

No ato público realizado em São Paulo, entrevistei uma jovem negra, Fernanda, de 20 anos, moradora na zona leste, que dizia o mesmo. “Estou participando porque acho que o PL5069 vai condenar à morte as mulheres da periferia onde eu moro. Prejudicará muito mais as mulheres negras, pobres e da periferia porque temos menos condições de pagar por um aborto seguro. Estupradas, as moradoras da periferia serão condenadas a fazer aborto clandestino em condições muito mais inseguras. Serão mais mortes na periferia.”

Angela Davis e Fernanda não podem ser esquecidas, se a luta é pra valer.

 

Cintia Alves

Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.

3 Comentários

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  1. Em vez da governabilidade, o nosso parlamento trata do aborto

    Sou totalmente contrário ao aborto. Legalizar de forma ampla e irrestrita o aborto seria contrário ao modelo constitucional adotado. Não há uma liberdade do próprio corpo que justifique o aborto de forma semelhante ao que ocorre nos EUA. Há inúmeros problemas que travam a possibilidade de legalização do aborto: modelo constitucional; política pública eficiente de saúde para amplo atendimento; impor celeridade nos procedimentos. A decisão de aborto precisa ser técnica, tendo em vista o risco para a gestante, que pode ser psicológico, dentro de uma concepção finalística das hipóteses legais. É necessário observar que uma coisa é o aborto dentro das primeiras 12 semanas, outra bem diferente seria o aborto depois de 30 semanas (homicídio).

    Se o Brasil adotar uma política de proibição total do aborto: um, a exemplo de outros países da America Latina, o Brasil seria condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos e obrigado a adequar a legislação à jurisprudência consolidada, em que a violência sexual é uma hipótese de aborto legal; dois, travar o sistema público de saúde para hipóteses de violência sexual seria prática de homicídio pelo Estado Brasileiro, a mulheres pobres, segregadas à sorte de um aborto clandestino; três, a legislação brasileira já atende de forma satisfatória a proteção da vida da gestante, assim como a proteção do feto, no sentido de que alterar a legislação seria opção absurda. 

    O aborto é um assunto muito técnico e a legislação – no Brasil – é adequada. Na dúvida quanto a eventuais providências, mantenham a legislação ao texto vigente. Se a questão é a interpretação da Bíblia, talvez poderiam buscar auxílio em estudos rabínicos. Garanto: podem buscar outro assunto mais importante no momento. O aborto – antes de ser tratado no campo parasitário das hipóteses – é um fato social, e como fato social merece respeito. Grande parte das mortes de mulheres hoje (talvez a maior) decorre de abortos clandestinos. Negar atendimento médico para vítimas de violência sexual é homicídio. Considerando que o Brasil, hoje, converte-se ao Nazismo talvez seja o propósito. 

    Repito: o aborto talvez seja a maior causa de morte de mulheres no mundo. Se vocês obstarem atendimento médico, serão responsáveis por mortes (decisão pessoal de vocês). 

  2. O preocupante é que  PESSOAS

    O preocupante é que  PESSOAS irão morrer.

    Os adjetivos são dispensaveis pois só servem para fazer politicalha em cima de algo muuuito sério…

  3. Lógica do leônidas

    Algum homem já morreu praticando aborto?

    Ah… mas mulher rica ou pobre, branca ou negra é um ser humano. Mas, antes disso, é um animal, antes ainda, é um mamífero, e assim por diante.

    Quer dizer:

    A preocupação deveria ser que mais seres vivos vão morrer em decorrência de abortos realizados em condições precárias. Caso contrário, esses “adjetivos” só servem para fazer politicalha.

     

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